quarta-feira, agosto 11, 2010

Relativismo genético - Uma proposta estética




A Escolha de Aurora

"Diferença entre um amador e um profissional. Um amador pensa que é engraçado vestir um homem como uma velhinha, sentá-lo numa cadeira de rodas e dar um empurrão na cadeira, para que ele desça ladeira abaixo feito uma bala e se esborrache contra um muro de pedra. Um profissional sabe que isso tem de ser feito com uma velhinha de verdade". (Groucho Marx)
A citação acima, impressa em letras garrafais, está afixada na parede da sala de estar da casa de Aurora Celeste. Artista e militante convicta da estética pós humanista, Aurora vive, ao contrario dos humanos, numa bolha repleta de objetos e coisas extravagantes. Ela é distinguida pelos amigos como uma pessoa de mente escancarada, que despreza qualquer forma de representação. Para ela, tudo tem que ser de verdade. O amor, a arte e a vida. Isto explica, em parte, a citação de Groucho Marx colada no centro da sala de estar. Além disso, ela não é de titubear, aceita sem restrições todo e qualquer paradigma contemporâneo.
Sua vida artística teve inicio numa tarde de outubro de 1999. Nessa ocasião Aurora estava ultra mobilizada pelo “bug” do milênio. Como tudo corria o risco de parar ela resolveu parar de vez com a vida de tiéte de artistas famosos e mergulhar de cabeça numa ideia genial. Nos dez anos que nos separa do inicio da Era do Conhecimento a obra de Aurora ganhou visibilidade. Tudo aconteceu subitamente, assim como acontecem os milagres.
Ela recorda com carinho aquela tarde quente de verão quando um amigo solicitou sua ajuda numa faxina em seu ateliê. No final do expediente, sob a soleira da porta, amontoaram uma pilha de edições antigas da revista Art Forum.
-Que destino você vai dar a essas revistas? Perguntou Aurora.
-Não sei! Não as quero mais. Talvez faça uma doação à biblioteca de uma escola de arte. Respondeu-lhe o amigo.
-Ah! Posso guardá-las para mim? Perguntou animada.
-Claro! Leve as que quiser.
Levou todas. Foi o que fez.
Durante uma semana inteira Aurora não foi a nenhum vernissage, não visitou galerias de arte nem museus, não leu jornais nem viu televisão, não navegou na internet ou mesmo falou com os amigos no telefone. Como não tinha o habito de ler livros, não sofreu o desgosto de abandonar uma boa leitura. Nesses sete dias de profundo recolhimento Celeste teve um lampejo que qualificou como semelhante ao que teve Jesus durante os quarenta dias que se recolheu no deserto em colóquio com o Pai, antes de dar início à pregação do Reino.
Foi nessa semana de intensa meditação que Aurora Celeste vislumbrou a luz criativa.
Dizem as más línguas que a artista ateve-se nesse tempo a folhear apenas três números das edições da Art Forum de 1974 e, maldosamente, insinuam que a jovem foi mentalmente abduzida pela onda de manifestos estéticos que usavam a genitália humana como modelo.
Os detratores falam que antes do insight que lhe trouxe fama, Aurora passava as tardes de sábado vasculhando brechós da Rua do Lavradio. Colecionava pequenos bibelôs e quinquilharias decorativas em ferro ou bronze, fundidos nos séculos XIX e XX e fotos antigas de personagens anônimos sobre os quais realizava intervenções. 
Era uma forma singela de reverenciar sua empatia com os ready made de Marcel Duchamp.
Todavia, ao dar de cara com um anúncio da sua exposição, publicado em 1974, na contra capa da revista Art Forum, em que a artista Linda Benglis, nua, de óculos escuros, ostentando um grande pênis e simulando a pose característica de um 'macho man', Aurora Celeste entrou em transe.



Também pudera, ela já estava prestes a surtar quando folheou as fotos da fatídica performance de Schwarzkogler, na qual o artista fragmentou gradualmente o próprio pênis com uma navalha.Esse episódio o levou à morte aos 29 anos.
Pouco importa o que comentem por ai. O fato é que Aurora ficou deslumbrada com a perspectiva que se descortinou a sua frente. 
Estava totalmente convencida de sua missão. Nenhuma critica ou argumento, por mais razoável que pudesse parecer, iria se contrapor ao seu empenho em desbravar o que considerava vital para a nova Arte do século XXI e uma verdadeira revolução política, digna de uma sala especial em qualquer Bienal do planeta.
As pesquisas sobre o sexo que fez na internet a levou a concluir que era preciso dar um basta a tanto sofrimento imposto por força do Determinismo Biológico .
-Quanto sofrimento tal determinismo impôs e ainda impõe ao homem. Pensou a artista.
–Diante do enorme conhecimento que hoje possuímos, da falácia das verdades absolutas e do enorme domínio tecnológico, o que a arte, juntamente com a ciência, pode fazer para ajudar os homens a adentrar a verdadeira felicidade? Essa foi a questão resultante das suas pesquisas.
-Até quando seremos compelidos a aceitar e a temer o autoritarismo dos genes? Balbuciava para si mesma.
Motivada por esses pontos Aurora Celeste mergulhou de cabeça nos debates mais quentes da ciência atual.
Numa das muitas consultas ao Google, esbarrou com um artigo cientifico que lhe despertou grande euforia.
A pergunta : “O que são e quantos são os gêneros que compõem a espécie humana?" que dava inicio a um texto, a levou ao orgasmo.Evidentemente,por motivações estéticas mais elevadas,um gozo não físico ou biológico.
-Que coincidência, a mesma questão que agora me atormenta. Disse a si mesma
Então, rolando freneticamente a ferramenta do oráculo cibernético, Aurora Celeste deu de cara com um conteúdo que a sacudiu na cadeira:

“O que determina o sexo de uma pessoa?”
Na leitura Aurora ficou sabendo que : “Ainda que a pergunta pareça fácil a resposta não é tão óbvia assim. 
Essa dúvida tem atormentado o meio médico, gerando debates acalorados e pilhas de estudos em alguns dos maiores centros de pesquisa do mundo. O senso comum diz que o sexo masculino acontece quando a pessoa tem um pênis e um par de testículos. E o feminino, quando há vagina e ovários. E não se fala mais nisso, certo?
Errado! 
Há pessoas que têm absoluta certeza de que pertencem ao sexo oposto àquele que seus genitais indicam.
Talvez,então, a resposta esteja nos hormônios sexuais. Errado de novo. 
Esse é um critério ruim porque os endocrinologistas já se cansaram de ver mulheres que têm maioria de hormônios masculinos no corpo e vice-versa. Então a resposta só pode ser a análise genética, já que todos sabem que se os genes se unem em cromossomos no formato XX a pessoa é mulher e se for XY a pessoa é homem. Outro erro, pois ocorre várias vezes o que os especialistas chamam de “mosaicos”,que são  misturas na formação cromossômica que podem desacreditar qualquer conclusão taxativa nesse campo. 
É melhor nem pensar que o que distingue o gênero masculino do feminino é o comportamento, porque as várias preferências sexuais reduzem à cinzas qualquer conceito radical de gênero(... )Essa dúvida, sobre o que realmente define o sexo de um indivíduo, está criando um drama ético crescente por causa de pessoas para quem nenhum desses critérios oferece uma resposta satisfatória.”
Ao ler essas anotações a jovem artista foi ao delírio.
Excitadíssima rolou rapidamente a página.
Foi então que ficou sabendo que um pesquisador brasileiro tinha uma teoria revolucionaria. Segundo ele:... “existem, na verdade, 11 sexos, sendo dez as versões masculina e feminina de heterossexuais, homossexuais, transexuais, gays e bissexuais e 1,o número ímpar, caberia aos hermafroditas.”
-Meu Deus! Exclamou esfuziante.
-Não se trata apenas de um novo paradigma artístico é algo para muito além de tudo que já foi proposto ou realizado pelos artistas do passado. Linda Benglis, Michelangelo, Schwarzkogler e muitos outros, se fixaram apenas no aspecto moral, quer dizer, nas convenções e tabus que atormentam os seres humanos e reprimem as sociedades. Concluiu a artista.
-Geeente! É isso que me aguardava. Minha missão é colocar a arte a serviço de uma causa em prol da liberdade, contra a tirania genética e as imposições da natureza que oprimem o homem.
De posse de um leit. motif a artista enfim repousou.
Na manhã seguinte,mal acordou, telefonou para Maldonado dos Santos, professor, critico de arte, teórico e curador de inúmeras bienais. Maldonado é uma espécie de bandeirante da arte política, revelador de novos e velhos talentos da vanguarda contemporânea.
-Maldo querido, veja o que descobri!
- Oi, Aurora estou agora numa reunião com todos os curadores da bienal. É um assunto muito longo? Perguntou Maldonado.
-É muito profundo, querido.
Oh!Deus, como preciso de você. Balbuciou Aurora
-Da pra resumir? Perguntou-lhe o amigo.
-Tentarei... Tentarei... Disse Aurora em tom titubeante
-O sexo é... Bem, o sexo de um indivíduo é um drama ético!
-Hein?! Como assim, querida? Retrucou o curador com espanto.
-Maldo, descobri que nenhum critério oferece uma resposta satisfatória para os seres que nascem com partes de genitais dos dois sexos: testículos, ovário, pênis e vagina combinados das mais diversas formas ou em dimensões incomuns. Alguns cientistas afirmam que não se trata de um drama raro, uma obra exótica da natureza.Eles afirmam que é um drama mais comum que se imagina.
-Entendo, respondeu o amigo.
-Então, é sobre esse...drama que pretendo conduzir minhas experiências em busca de uma nova estética. Uma estética biomolecular! Bradou Aurora.
-Genial!Respondeu Maldonado.
-Ah!Fico feliz com seu entusiasmo. Vou mergulhar nesse projeto agora mesmo. Até o final dessa semana terei alguns resultados práticos, quer dizer, plásticos.
Aliás, como está aquela situação da curadoria da Bienal do Turquestão Oriental?Complementou Aurora Celeste.
-Ótima!Estávamos falando disso na reunião. Estou confirmado, serei um dos curadores da Bienal do Turquestão Oriental. Respondeu Maldonado.
-Geeente!Que maravilha! Eu rezei tanto pra isso!
-Você acha que dá para me indicar com essa nova pesquisa, para bienal do Turquestão? Emendou a artista.
-Claro! Sua proposta se encaixa perfeitamente com a linha que pretendo adotar para aquele evento. Não quero nada convencional que se limite aos paradigmas pós modernos. Quero algo provocador, um laboratório aberto que esmiúce as questões políticas e interaja com a problemática sexual dos homens e mulheres do Oriente, da Ásia e do mundo. Pretendo que essa bienal seja um barril de pólvora no seio do fundamentalismo arcaico. Uma verdadeira revolução nos preconceitos que ainda perduram no ambiente artístico cultural . Essa bienal irá desnudar a hipocrisia em prol de um mundo mais justo.
-Geeente, que maravilha! Vou começar a trabalhar agora mesmo. Um beijo, querido.
-Outro grande pra você, querida. Tchau!
-Tchau!
Clic.