sexta-feira, agosto 13, 2010

Nada que é humano me é estranho

Eu sou homem e nada do que é humano me é estranho. O Carrasco de si
Terêncio - Roma [-185--159]

-Quanto custa um corpo humano? Perguntou Donald Kimberley, o pop star da arte inglesa contemporânea, ao plantonista da madrugada na delegacia do distrito de Bayswater em Londres.

-Depende! Existem inúmeras categorias. Alguns custam mais que outros. Além disso, se você pretende comprar um corpo humano vivo em bom estado é um preço, um mulambo é mais em conta, morto, dependendo da origem, também pode variar de preço. Entenda, por favor, que o preço desses corpos não tem qualquer relação com o valor e a qualidade de vida da pessoa ou da riqueza que desfrutou em vida. Respondeu o sargento O’Hara.

-O senhor é humorista? Instilou debochadamente o star.

-Ora, cidadão. O senhor está com sorte. Se eu não fosse humorista o senhor estaria agora chorando numa cela.

-Engraçadinho! Retrucou Donald

-Não! O senhor é que é um deprimido. Respondeu o sargento.

-Como se atreve dizer tal coisa sem me conhecer? Bradou Donald

-Ora, é simples meu caro. O que um sujeito cheio de pompa, envergando roupas caras, abraçado numa garrafa de champanhe que daria para pagar mais de dois meses do meu salário vem, às 3 horas da manhã, fazer numa delegacia policial? Passear?Buscar diversão em meio à ralé, putas, proxenetas, ladrões, assassinos, viciados e traficantes enclausurados e ferozes? Completou asperamente O’Hara

-Não! Respondeu Donald timidamente, olhando para o piso de mosaico carcomido.Não, sargento. Não é nada disso. Eu sou um artista, acrescentou Kimberley.

Depois de um breve silencio e sob o olhar inquisidor de O’Hara, Donald depositou a garrafa de Perrier-Jouët no piso, pegou delicadamente a mochila Louis Vuitton, abriu e retirou de seu interior três luxuosos livros. O brilho das capas excitou as pupilas do sargento e os títulos em letras de ouro refletiram no fundo das retinas de seus olhos escancarados. Quando o foco se ajustou O’Hara conseguiu ler: Donald Kimberley Complete Works Book I -1988 – 2000 – Donald Kimberley Complete Works Book II 2001 – 2005 e Donald Kimberley Complete Works Book III 2006-2010.

-Nem mesmo o Exército Real possui um prontuário tão luxuoso!Exclamou o sargento. Nunca vi nada igual. Completou.

-Toda minha vida está dentro desses volumes. Disse Donald.

-Como assim?Retrucou O’Hara

-Minha obra artística completa está contida nesses três volumes. Repetiu o artista

-Desculpe perguntar, o senhor me parece bastante jovem. Como uma pessoa tão jovem tem três volumes de obras completas antes mesmo de morrer, perdão, parar de produzir, melhor dizendo, se aposentar?

-Porque sou muito famoso e extremamente rico.

-Bem! Que me conste esses não são valores artísticos. Retrucou O’Hara.O preso da cela 18 é um traficante extremamente rico e famoso. Pelo que sei, não possui nem mesmo um álbum de figurinhas completo.Afinal, cidadão, o que o senhor deseja? A fila de clientes atrás de si está crescendo.Concluiu o sargento

-Eu queria comprar um corpo humano. Quer dizer, dois corpos humanos; um vivo e um morto. É isso que preciso no momento, afirmou o artista.

-Ok! Sente-se naquele banco ali atrás e espere enquanto consulto nosso estoque. Ordenou O’Hara com o habitual sarcasmo que usa no trato com os indivíduos que se entregam à policia por crimes que nunca cometeram.

Sentado no velho banco de madeira Donald deu três largos goles no precioso liquido Perrier-Jouët, abriu a mochila e dela retirou um grosso catálogo. Na capa, de um belo azul profundo, impresso em letras negras, lia-se: The Human Body – The Art of Günter Von Hagens. Donald pousou o exemplar no colo, deu outra talagada no champanhe e abriu o catálogo numa página marcada por um grande recorte de jornal. Repleto de fotos, a página estampava no alto à direita da logomarca do jornal, os dizeres: Critical section of Taxidermy Contemporary Art.

- Son of a bitch! Exclamou Donald. Seu desabafo foi tão alto que o sargento O’Hara retrucou imediatamente.

-Siiihhhhh!Silencio!Isso aqui não é um pub.

-Não posso me calar diante desse roubo!Exclamou Donald.

A jovem russa algemada, sentada a seu lado, deu um pulo do banco e saiu correndo para um canto escuro da delegacia esbravejando:

- Я ничего не делал, я невиновен! До вчерашнего дня был на вечеринке в Москве вчера и проснулась в постели гражданского служащего, где английский язык был удален со стороны полиции. . Боже мой, что происходит? (nota do tradutor: Não fiz nada! Sou inocente! Anteontem estava numa festa em Moscou.Hoje, fui brutalmente acordada pela policia londrina na cama de casal de um alto funcionário publico inglês em Chelsea. Meu Deus! O que está acontecendo comigo?)

-Sem dar atenção ao chilique da moça, como se ela nem mesmo existisse, Donald continuou seu protesto:

-É inadmissível! Eu sei que o estilo taxidermista não me pertence pelo fato de tê-lo criado e tornado sustentável pela critica,curadores e pelo mercado. Também sei que artistas de regiões menos influentes artisticamente adotaram o estilo taxidermista o incorporando a seus precários repertórios. Sou um sujeito generoso e vejo esses seguidores mais pobres do terceiro mundo como uma conseqüência previsível do meu enorme poder criativo. Mas, isso não me obriga a calar diante da desfaçatez. Há mais de dez anos tento realizar minha obra imortal e só tenho esbarrado em dificuldades. Logo depois da exposição de 1989 que teve uma repercussão global, eu venho me esmerando para concluir o diptico The possibility of the Death of the Mind in a living brain (nota do tradutor: A possibilidade da Morte da Mente num cérebro Vivo). Essa será uma obra de rara intensidade.


Será um diptico, onde um corpo humano vivo reproduzirá a mesma posição de um corpo morto. Esses dois corpos em pé, lado a lado, seriam abrigados em um compartimento hi tech protegido por vidros blindados.Dessa forma atravessarão a eternidade.

Nesse ínterim, toda a clientela da delegacia, policiais,escrivãos e faxineiros admiravam atentamente o orador.

Arrebatado pela audiência, procurou na mochila o exemplar do Donald Kimberley Complete Works Book II. Abriu as primeiras paginas e continuou folheando, exibindo para a platéia um verdadeiro zoológico taxidermizado flutuando em líquido colorido.Essa sessão extraordinária proporcionou aos ouvintes embasbacados uma visita guiada as suas obras. Folheava freneticamente as paginas cheias de ilustrações maravilhosas enquanto falava das sensações, dos estímulos e das referencias de cada imagem com a Historia da Arte.

Após a exaltação sentou-se lentamente.Cabisbaixo confidenciou com a voz embargada pela angustia:

-Enquanto isso Von Hagens aparece ao mundo como um astro da arte taxidermista. Uma mentira! Eu fiz tudo muito antes dele ter se curado da frustração de não conseguir nem ao menos ser um anatomista alemão de sucesso. Como cientista é um blefe! Seu controvertido processo de "plastinação", nome de sua invenção dos anos 70, é desprezado pela comunidade científica.Depois de convencer um marchand de Berlim, os curadores, a imprensa e o publico de que o que fazia era arte, tornou-se famoso em seu país. Pior ainda é que esse sujeito ganhou as manchetes internacionais com as exposições que realizou sobre os vários estágios da vida humana que incluía cena de sexo entre cadáveres além de outros 200 corpos inanimados.Miserável!Bradou Donald.

-Sim! Respondeu em coro a audiência. Um depravado, um miserável que impede os corpos de mergulhar dignamente nos abismos da morte.

Donald levantou-se e com os olhos fixados no chão como se vislumbrasse uma trilha nas frestas imundas do mosaico carcomido, atravessou por entre corpos vivos da clientela estupefata,se dirigiu para a porta.Atravessou-a e adentrou o negrume da madrugada londrina resmungando:

-Oh Deus!Que ódio! Esse bosh conseguiu corpos humanos em grande quantidade. E eu, aqui penando para conseguir ao menos um corpo humano vivo e outro morto. Estúpida burocracia inglesa ! Depois não sabem porque os alemães são tão adiantados,ricos e admirados.