Para RáAntunes a palavra ateliê é apenas uma menção nostálgica e
antiquada de um lugar mítico onde artistas da antiguidade pós moderna criavam e
produziam obras de art. Rá,é um expoente da primeira casta de artistas do
pós-humanismo. Ele é um sujeito dinâmico e ultra-flexível. Sua ascensão ao
pódio das celebridades das artes ocorreu em paralelo ao esgotamento das
tendências estéticas pautadas nas ideias duchampianas, beyusianas e
similares. Sua chance apareceu quando os artistas e amantes dos produtos
estéticos oriundos de uma subteoria remendada com recortes de
antropologia cultural acabaram com o estoque de materiais inéditos de uso
artístico corrente e as questões artificiais, relativas ao uso dos materiais,ruínas,escombros e
entulhos de tempos distintos, não resultavam em pesquisas extravagantes para resultados simplórios e não entusiasmavam mais ninguém. O mundo das artes precisava de algo NOVO.
Foi nesse interregno que Rá entrou de sola.As balelas
relativas ao uso imaginativo dos materiais cansou os deslumbrados e
seguidores e as pesquisas se tornaram coisas do passado,saíram de
moda.Rá foi o precursor da arte imaterial criada simultaneamente em diversos
laboratórios espalhados nas centenas de bienais que ocorrem em todo o planeta.
Mas, antes de falar das virtudes de Rá é adequado que eu os apresente seu
principal teórico e articulador político. É bom que saibam de antemão que no pós-humanismo
não existe arte sem política, marketing pessoal,polêmicas artificiais e
seguidores apatetados. Nesse novo mundo tudo é artificial, sobretudo, a arte.
Dionísio Pepper é, nesse contexto, uma peça crucial das estratégias avançadas
de Rá.
Mas, quem é Dionísio?
Uma biografia resumida, já que a militância artística de Dionísio é
veloz e sucinta, nos informa que ele formou-se em economia numa faculdade de
Alagoas. Por força de sua simpatia e entrosamento com a alta sociedade local
foi o único em toda a instituição a ser beneficiado com uma bolsa de estudos em
Londres onde, durante um longo e penoso ano, freqüentou um curso de marketing
financeiro num famoso MBA inglês. De volta ao Brasil,amparado pela rede de
contatos políticos em sua terra natal, não teve dificuldades em obter um bom
emprego num grande banco paulista.
Durante sua temporada londrina compactou seus desejos numa estratégia de
objetivos precisos. Dependia dos seus conhecimentos em economia para
sobreviver,contudo, sua sensibilidade para arte também podia ser aplicada
economicamente.
-Por que não?Estava convencido de que nos dias de hoje, qualquer pessoa
que junte Lé com Cré pode se destacar no ambiente cultural.
-No conjunto de experts que atuam no campo da arte no Brasil, eu sou um
gênio!Especulava entusiasmado.
Como ninguém é de ferro, nas horas vagas Dionísio passeava nos museus
ingleses. Numa dessas andanças, extasiado diante de uma obra de Damien Hirst,
Dionísio esbarrou em Herbert Ward. Na troca de desculpas e gentilezas
os dois terminaram sentados na cafeteria do museu trocando figurinhas. Após as
apresentações de praxe Herbert foi direto ao ponto revelando que se colocara
intencionalmente como um obstáculo entre Dionísio e a obra do mais famoso star
da arte pós-humana. Hesitante por alguns segundos, Ward acrescentou que fez
isso porque ficou comovido com a visão de entrega total de Dionísio à obra de
Hirst e que isso o havia provocado profundamente. Emocionado, Dionísio esqueceu
os compromissos da tarde e os dois saíram a passear pelas simpáticas ruas
londrinas. Num bucólico trecho da Carnaby Street, Ward confidenciou que essa
tarde havia sido maravilhosa para ele. Disse baixinho que antes do encontro com
Dionísio estava tenso e angustiado pois, por coincidência, nessa mesma tarde, a
comissão do Royal Scholl of Art estava reunida para decidir entre três nomes,
aquele que seria o curador da mais nova bienal do planeta- A Bienal do
Cazaquistão.
Os dois se despediram na frente da entrada do metro, não sem antes Ward
propor trocarem seus números de telefones.Na oportunidade insinuou que gostaria
de comunicar a Dionísio a decisão do Real Conselho.
Ward se tornou curador. Logo se entende o que os dois comemoraram a luz
de velas num restaurante próximo ao Royal Museum, local onde haviam se
conhecido. Depois desse comovente jantar os dois passaram a dividir um único
lençol e a comungarem a mesma profissão.
Desse entrosamento afetivo nasceu o Dionísio que conhecemos. Teórico,
professor de arte, curador e consultor artístico de grandes empresas e coleções
de arte brasileiras. Ainda que seu maior êxito editorial seja a enorme coleção
de passaportes integralmente carimbados e com todas as folhas,frente e verso,
esgotadas.Dionísio deu muitas entrevistas e publicou quatro livros sobre arte
contemporânea. Todos, direta ou indiretamente, vinculados à obra de Rá. O texto
mais notável de Dionísio teve o triunfante titulo: Das Glorias de ser curador
de Bienal.
Nesse ínterim Rá dava murros em ponta de faca para vencer os
contratempos e o fervor moral dos pós – pós - modernistas.
Suas experiências laboratoriais estavam travadas por falta de
compreensão das autoridades e absoluto desinteresse do mercado de arte.
O problema com o mercado era facilmente resolvido já que Rá tinha uma
malta de fiéis seguidores dentro da burocracia cultural Planaltina. Sempre que
podiam o colocavam num projeto incentivado. O clube dos curadores
sistematicamente o indicava para uma Bienal.Seja do Mercosul,Veneza ou
Venezuela.Vai daí que Rá participava em media,num ano, de dezoito bienais mundo
afora.Tudo devidamente subvencionado.
Não esqueçam que Rá já havia participado de duas quadrienais de Kassel.
Sua ultima participação foi motivo da publicação de um caderno especial da
Folha de São Paulo pleno de elogios. Até o ministro da cultura participou da
iniciativa comprando uma página inteira do caderno para publicar um anuncio do
governo.
Mas, mesmo esse sucesso todo não tranqüilizava Rá. Ele queria mais!Sabia
que podia mais!
Suas pesquisas NeuroEstéticas estavam ocorrendo na clandestinidade. Isso
o aborrecia terrivelmente.
Rá estava estafado, ansioso e revoltado. Uma editora especializada em
arte pós humana estava insistindo há mais de um ano para que ele publicasse
mais um livro de Obras Completas.
-Ora, já fiz nove livros de obras completas em 12 anos de carreira
artística. O que esses caras querem de mim?Sugar meu sangue? Esbravejava pelos
cantos do seu laboratório doméstico. Um apartamento no Leme totalmente decorado
com suas incisões estéticas. Esse era seu refugio que, aliás, já tinha sido
mostrado ao publico pela mídia quando de uma entrevista sobre seu sucesso
internacional e suas idéias para a nova arte global.
-Às favas o meu estupendo prestígio se o que desejo me impedem de realizar. Resmungava por entre tubos de
ensaio, fios condutores, plasmas e cérebros humanos imersos em líquido colorido
dentro de compartimentos vítreos.
-É o moralismo religioso dessa gente hipócrita!Dizia em tom baixo, quase
inaudível.
-A reação dos marchands que investiram pesado na arte pós pós moderna é
de um conservadorismo atroz e depravado. Coisa do passado remoto, ainda
protegido pela fé duchampiana. Vocês não imaginam como esse troço atrapalha os
avanços estéticos e atravanca minhas experiências! Confidenciou Rá a seus
embasbacados admiradores mais íntimos.
Todavia, o providencial retorno de Dionísio ao Brasil salvou o futuro de
interveniências antiquadas e improdutivas.
Vejam o que diz Rá sobre isso:
-Minha ultima IncisãoEstética proposta para a Bienal foi quase vetada
porque um bando de petulantes resolveu impedir que Dionísio em co-curadoria com
Hebert Ward mais aquela senhora de Kassel que não lembro o nome e o curador
atual da Bienal do Cazaquistão;Severino Albuquerque Cavalcanti, tornassem o
primeiro andar do pavilhão da Bienal de São Paulo um laboratório neuro-estetico
a céu aberto,quer dizer,não totalmente aberto, já que estaria protegido pela
construção.
- Meu Deus, isso é pura ignorância! Protestou Mairá Deware, a mais
famosa instaladora artística do pós humanismo.
-Cai de joelhos, em transe religioso, quando visitei esse ano sua
exposição Caos Cibernético, no palácio do governo da Bahia.Meu Deus!Como
proibir o povo de ver aquela maravilhosa fileira de homens e mulheres, com o
tampo da cabeça decepado, porém, vivos, cérebro à mostra, sobre os quais você
motivava impulsos elétricos estimulando as áreas do prazer e da dor?Gente
imbecil, nem ao menos sabem que o cérebro não sente dor!Tive um ataque de
nervos quando um artista provinciano que tem o nome de um centurião romano
resolveu quebrar tudo e liberar os suportes, quer dizer, os corpos humanos. Pra
mim, o cara quis fazer um “contra evento” e criar fama internacional nas suas
costas! Disse Mairá.
-Deixa pra lá, são os ossos do oficio. Retrucou Rá, que sempre se refere
aos órgãos do corpo humano em suas especulações filosóficas,estéticas e até
mesmo políticas.
-É verdade!Complementou Ermenegildo Silva um artista
sub-intelectualizado em voga no momento.
-É inesquecível!Aquelas fileiras humanas dispostas simetricamente. Para
mim era uma critica contundente ao nazismo.Não via quem não quisesse ver,ou
tivesse olhos pra ver.Me emocionei ainda mais com aquela tenda negra,misteriosa
e impenetrável que com uma luz tênue a piscar randomicamente, nos remetia aos
mistérios da mente,quer dizer,do cérebro,ou melhor dos dois,né?Concluiu
Ermenegildo.
Para o bem geral e irrestrito, a rede de relações políticas e midiaticas
de Dionísio, o apoio do presidente da Bienal e de um grande numero de artistas
comprometidos com o pós humanismo, firmou-se num pacto que protegeu com
determinação e empenho a liberdade de expressão contra os ataques de uma gente
preconceituosa,moralista e que nada entende de arte, . A pós humanidade é mais
uma vez devedora do esforço e dedicação de poucos para o beneficio de muitos
e,sobretudo, para o avanço da Arte, a qualquer custo.