segunda-feira, agosto 02, 2010

Expandindo o campo da pintura



entrevista com Luciano Trigo postada no site Maquina de Escrever em 15 de julho de 2010 às 17:16

Adriano de Aquino inaugura exposição e critica o evangelho da arte pós-moderna.

Reflexos e Aparecimentos é o título da exposição que Adriano de Aquino inaugura neste sábado, a partir das 16h, no POP – Pólo de Pensamento Contemporâneo, no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro. Os dez trabalhos reunidos pelo artista dão continuidade à série “Formas magnéticas transitórias”, que ele desenvolve desde 2007. São telas pintadas sobre aço carbono com pigmentos e substratos de ultima geração, num esforço de expansão do campo da pintura. Nesta entrevista, o artista plástico fala sobre a sua obra, faz uma retrospectiva de sua carreira e elabora um comentário crítico sobre a situação atual da arte contemporânea.




- Os trabalhos reunidos em sua nova exposição exploram a noção de formas magnéticas, que a meu ver estabelecem um diálogo com a gramática das formas e cores desenvolvidas por Josef Albers e outros teóricos da Bauhaus. Você concorda? Qual são as suas inquietações como artista hoje?


ADRIANO DE AQUINO: Minha escolha pela abstração geométrica passa por inúmeros fatores. Origina-se, certamente, do impacto germinal com a pintura de Dacosta, penetra e se expande a partir de muitas experiências e reflexões. A que mais me encanta se funda no enorme poder de transformação gerado pelo pensamento construtivo. Desvinculado da representação naturalista e não submetido a analogias emotivas e episódios cotidianos, o Construtivismo expressa uma parte vital da experiência humana. A geometria é o domínio mais adiantado da cultura. É o experimento humano mais radical frente ao universo, a natureza e aos acontecimentos mutáveis da vida social. É um discurso único que marca de forma peculiar a passagem e a construção do homem sobre a Terra. Nada na natureza a induz. Arrisco dizer que nesse domínio os homens são iguais, separados apenas pelas concepções estéticas e formais, fruto das suas consciências que escoam como ricas contribuições ao conhecimento e ao mistério da existência. Os artistas vinculados a essa vertente tecem um repertorio infinito de conjecturas. Nesse sentido, sem qualquer propósito referencial, pois a criação geométrica é fruto de tessituras ilimitadas, num determinado ponto do trajeto encontro Albers,Malevitich, Mondrian, Newman, Volpi, Lygia, Helio, Carvão, Reinhard e muitos outros artistas. Porém, encontrar meu próprio lugar é o grande desafio. Essa é minha maior inquietação como artista.
Foi essa inquietação que me conduziu a inúmeros experimentos, como esses que deram origem à série Formas Magnéticas Transitórias, iniciada em 2007.O magnetismo, utilizado nas obras dessa série, se apresenta como um fenômeno peculiar, na medida em que autoriza o espectador a ampliar seu contato com a pintura manipulando as formas sobrepostas à superfície pictórica. Não apenas o olhar, mas o tato solicita a participação do espectador. Essa particularidade só foi possível com a substituição do suporte. Essas obras são pintadas sobre aço carbono com pigmentos e substratos de última geração. Do ponto de vista formal, meu trabalho permanece vinculado ao pensamento construtivo de aparência geométrica. A substituição do suporte adicionou o reflexo como um novo elemento visual.
Reflexão, num dos desdobramentos do termo, é a tomada de consciência, o exame e a análise dos fundamentos ou razões de algo ter ocorrido. Numa associação livre e poética, refletir é espelhar. Os espelhos d’água refletem o entorno e, de certa forma, dele se apropriam. Essas pinturas recorrem a esse fenômeno. Espelham o entorno, olham para o espectador fortuito. Há, sem dúvida, uma alusão a Narciso, o herói paralisado de amor por sua imagem aprisionada no espelho d’água. Essa insinuação veio ao encontro de algumas cogitações sobre a vida contemporânea repleta de imagens, simulacros e cultos personalistas que “espelham” aparecimentos narcísicos.
Resumindo; essas obras se distinguem da mera reprodução ou mesmo representação da realidade. O real é ali espelhado. A ausência do gesto e da caligrafia “sensível” deu lugar à manipulação das formas magnetizadas pela ação do espectador. Esse procedimento ultrapassa minhas intenções durante o processo criativo. Pra finalizar, a manipulação das formas se mescla, até certo ponto, às praticas interativas de uso corrente na realidade virtual.


- Fale sobre seus anos de formação. Em que momento você decidiu tomar o rumo das artes plásticas? Quais foram os encontros decisivos que dispararam e conduziram esse processo?
ADRIANO: As origens do meu desejo de fazer arte e os primeiros passos da educação artística surgiram na adolescência, na minha família. Minha mãe tinha dons poéticos. Meu pai teve aulas com Guignard, desenhava muito bem. Porém, a necessidade da vida os levou por outros caminhos. Os dois gostavam de falar sobre arte, e na nossa casa havia muitos livros de arte. Neles vislumbrei, ainda jovem, a obra dos grandes artistas. Adorava desenhar e me metia a copiar as obras que admirava. Essas edições eram importadas e se concentravam nos clássicos. As obras mais modernas não iam muito além de Picasso, Dali, Braque, Cézanne, Kandinsky, além de alguns pintores do modernismo alemão e do realismo americano não tão famosos. As edições brasileiras nesse campo eram raras. Um dia, acompanhando meu pai na visita a um amigo, vi uma pintura da fase geométrica de Milton Dacosta. Na ocasião eu tinha 14 ou 15 anos. Esse primeiro contato me causou um grande impacto. Perturbador e inesquecível. A sala de estar, as cortinas pesadas e a decoração eclética, que juntava detalhes modernos ao mobiliário de aparência colonial, motivou em mim uma vertigem de espaço/tempo que se imprimiu definitivamente em minha memória.
- Você tinha pouco mais de 18 anos quando participou da exposição Opinião 65, no MAM-RJ. Fale sobre essa experiência e sobre os debates que dominavam o meio artístico da época.
ADRIANO: Após o assombro com a pintura de Dacosta eu quis saber mais sobre os significados daquilo que me encantara. Os livros sobre arte brasileira eram raros. Afora uma ou outra edição sobre Portinari e a Semana de Arte Moderna, nada encontrei nas livrarias. Desconhecia o ambiente artístico brasileiro moderno, e a busca sobre o tema nas livrarias não deu resultados positivos. Procurei por materiais artísticos, telas, cores e outros apetrechos de pintura e me pus a fazer coisas desconexas, apenas para dar vazão à vontade e ao prazer de pintar. Meus pais chamavam minha atenção para a vida dura de um artista. Deviam pensar que se tratava apenas uma ânsia passageira, uma ocupação tranqüila e menos perigosa que as aventuras no mar do Leblon. À medida que pintava, eu via descortinar diante de mim um mundo de sensações. Além dos livros de arte meu mundo artístico gravitava entre as fronteiras do bairro. A turma da rua era o publico, e meus amigos os críticos.
Um dia, informado por um amigo que se sonhava poeta, assim como eu me sonhava pintor, fiquei sabendo que estavam abertas as inscrições para o Salão Nacional de Arte Moderna, em 1962. Provocado pelo meu publico e incitado pela aventura, embrulhei duas pinturas pequenas de leve conotação geométrica e me dirigi para o local de inscrição. As inscrições ocorriam no anexo do Palácio Capanema, então sede do Ministério da Educação e Cultura, onde também acontecia o evento. Impressionado pela quantidade e domínio técnico das obras empilhadas no salão, achei que seria mais prudente aumentar minha idade. As circunstâncias me sugeriam que aquele episódio era mais sério que burlar um porteiro de cinema para assistir um filme para maiores de 18. Em 1962, eu tinha 16 anos. Assim fiz ! Entreguei a inscrição e as pinturas a Dona Isaura. Qual não foi minha surpresa quando soube que as pinturas haviam sido selecionadas. As duas! No dia da inauguração fui escoltado pela turma do Leblon. No recinto, diante das obras, eu os informei: “Agora,vocês não são mais meus críticos e espectadores exclusivos. Pertenço ao mundo!” A gargalhada foi geral!
Nesse dia tive o primeiro contato com o meio artístico “contemporâneo” brasileiro. Não conhecia ninguém e pouco sabia sobre o que os artistas faziam. Ali, naquele evento, passei a conhecer as obras de meus contemporâneos e também alguns artistas. Nesse ínterim, Angelo, meu irmão, que se sonhava poeta, também inclinou para a pintura. Entre outras qualidades, Angelo apresentava uma performance social incansável. Em pouco tempo suas investidas no ambiente artístico tornaram a casa dos meus pais um lugar de encontros e festas. Alguns artistas atuantes começaram a freqüentar, consolidando amizades e promovendo a troca de idéias. Nesse convivo fui, aos poucos, percebendo as tensões entre as tendências que coabitavam o ambiente artístico propriamente dito.
Esse foi um tempo de importantes decisões. Concentrei-me no estudo e procurei de maneira objetiva o aprendizado de técnicas complementares. Isso me levou a freqüentar como ouvinte o ateliê de gravura orientado por Adir Botelho na Escola Nacional de Belas Artes e cursar aulas de desenho e pintura, de acordo com os meus interesses. Foi nesse período que abri mão da idéia de tentar o vestibular para a Faculdade de Filosofia e me debrucei sobre o desejo de fazer arte. A partir de então, passei a me dedicar mais intensamente ao conhecimento de técnicas e saberes da arte.
Um dia, numa época em que os marchands tinham curiosidade e, certamente, indicado por um dos amigos artistas que viam e comentavam as minhas pinturas, recebi a visita de Ceres Franco e Jean Boghici. Eles viram o que eu estava fazendo e me convidaram para integrar a exposição Opinião 65. Eu tinha,então, 18 anos.Foi através dessa exposição que entrei no meio artístico e comecei a participar de algumas exposições como Propostas 66, Vanguarda Brasileira e outras mais.
Em 1964 os militares tomaram o poder político. As coisas se complicaram, pois se juntou às minhas investidas estéticas uma vontade de participar, de forma ativa, contra a natureza opressora de um sistema político imposto. Se assumir a vida artística já era um desafio temerário, ver partir a liberdade democrática tornou tudo mais difícil.
- De que formas o fato de vivermos sob um regime militar foi determinante para os rumos das artes plásticas no Brasil nos anos 60 e 70?
ADRIANO: Não posso afirmar que o regime militar tenha sido um fator determinante para os rumos das artes no país. Os artistas que passei a conhecer tinham carreira afirmada, alguns haviam participado de movimentos artísticos, e seus trabalhos já apresentavam um alto grau de profissionalismo. Isso quer dizer que os novos rumos das artes plásticas no Brasil já estavam em processo quando o regime militar tomou o poder. Houve um corte abrupto, mas não houve uma paralisia completa do pensamento. Pude perceber isso à medida que adentrava esse território. Dava para sentir intensamente os impulsos elétricos provenientes do curto-circuito entre vertentes do pensamento estético, as disputas intelectuais e o calor da fogueira das vaidades.
O raquitismo do mercado de arte, a esclerose do modelo imperial dos salões oficiais e uma burocracia cultural pachorrenta (a cultura brasileira tem uma atração incrível por longos períodos de padrão dominante) desenhavam um panorama provinciano que se chocava com os movimentos de ponta das décadas de 50 e 60. Esses movimentos foram determinantes na construção de uma nova mentalidade estética. Para um jovem artista, a sensação era a de cruzar uma linha do tempo absurda. Nas ruas e nos espaços públicos, havia a presença ostensiva de um Estado policial. Nos centros de ensino, as atitudes se dividiam entre a ousadia e revolta e, em casos lamentáveis, a complacência e a sujeição aos ditames dominantes. Os simulacros de modernidade eram constantemente reeditados. Essa situação levava qualquer ser pensante às raias da loucura, pois acentuava a impotência da sociedade brasileira.
As contradições se tornavam mais dolorosas porque na ocasião eu percebia uma disposição incrível de muitos artistas para o debate, a contestação dos modelos convencionais e toda forma de conservadorismo. Todavia, essas atitudes se chocavam com as representações anacrônicas que ocupavam a maior parte do palco. Sob o foco de luz, vultos esquisitos brilhavam no ambiente e apareciam, quase modernos, para os aplausos do publico. Do outro lado da rua, nas cantinas, bares e ateliês proliferavam as atitudes contra o servilismo mercantil de uma arte feita e aceita como adereço para o deleite burguês – termo de uso corrente no período. Como era muito arriscado confrontar as armas do Estado opressor, o burguês tornou-se o inimigo número 2 dos avanços sociais, por conta da Marcha da Família pela Liberdade. Coitada da burguesia, acabou vendo seus filhos partirem ou serem presos e torturados. Sociedade maluca!
Por outro lado, do ponto de vista institucional é inegável que o regime militar foi determinante para a implantação de um novo modelo de intermediação entre Estado e cultura. Bem, qualquer feito que agitasse a pasmaceira colonial era, até certo ponto, suportado. Nesse período foi criada a Funarte, e alguns dispositivos das exposições oficiais foram alterados. Apesar de alguns fatores positivos, nem tudo resultou em melhores condições para a difusão e apoio mais amplo à arte e a cultura de forma a alterar os modos de ação de grupos e as condições de trabalho dos artistas, pois os materiais de alta qualidade eram importados. A restrição de mercado tornava caro e difícil o acesso aos insumos básicos para a pintura. Hoje isso deixou de ser um problema, contudo se gasta mais para manter a burocracia cultural surgida com o novo modelo do que em investimentos diretos em beneficio dos produtores de arte e cultura. Sociedade maluca! De novo?

- Fale sobre a importância da sua temporada em Paris. Que contatos estabeleceu lá? Com que artistas dialogava? Que laços mantinha com o Brasil?



ADRIANO: Em 1973, as ilusões de viver num Brasil moderno e democrático haviam se despedaçado. Numa exposição que ocorreu na Galeria da Maison de France no Rio, fui agraciado com uma bolsa de estudos em Paris, onde residi até 1977. Essa bolsa foi extremamente útil pois me concedia acesso livre a uma serie de cursos. Ainda que a Escola de Belas Artes de Paris fosse minha referência de pesquisa, era possível freqüentar cursos de filosofia e conferências que me interessavam em outras unidades de ensino, bastava para isso justificar tais procedimentos nos meus relatórios.
Fui atraído para as atividades que aconteciam na Universidade Paris VIII. A famosa Vincennes era um centro universitário experimental onde atuavam importantes pensadores como Foucault, Deleuze, Lyotard, Popper etc, e proliferava o inconformismo. Fundada após maio de 68, Vincennes encerrou suas atividades em 1980, ou talvez um pouco depois. Os núcleos ofereciam aulas, conferências e debates memoráveis. Franqueada aos não-bacharéis, Vincennes era um território livre, onde artistas e pensadores descortinavam uma nova atuação entre a universidade e o mundo exterior. Lá fora, o mundo pulsava transformações vigorosas. Tudo parecia fazer sentido. Para alguém como eu, oriundo de um país marcado pela restrição das liberdades civis e pelo medo, Vincennes era um oásis do saber e um local de intenso tráfego de idéias. Esse foi um período fundamental para o desenvolvimento do meu pensamento sobre arte e para o meu crescimento como individuo.
Durante minha estadia em Paris, eu me aprofundei nas experiências estéticas e nas reflexões sobre a vertente construtiva na arte brasileira, sobretudo, a produção dos artistas dos anos 50/60, que me parecia a corrente mais fértil. Essa escolha me aproximou do pensamento construtivo russo e do abstracionismo formal norte americano, com os quais identificava, em alguns aspectos, as tendências da produção estética brasileira. É importante assinalar que essa corrente da arte brasileira registra o primeiro episódio concreto em que uma proposta estética não oriunda dos centros culturais hegemônicos era tão avançada quanto a produção internacional de ponta. Em alguns casos, estava à frente. Esse vínculo me levou ao encontro de alguns artistas franceses do grupo Suport/Surface e a conhecer Le Parc, um artista argentino residente em Paris, que ficou conhecido pelo conceito serialista que movia sua produção.
Nessa ocasião meu trabalho convergiu para uma equação que encontrava ressonância com a arte brasileira que eu admirava e as correntes estéticas internacionais que eclodiam. A forma do chassi e seus limites tornaram-se um problema a ser enfrentado. Essa proposta apresentava dois desafios: o primeiro tocava no formato como uma imposição a ser superada. É possível que existisse um paralelo com a metáfora neo-concreta sobre o quadro e o mundo. O outro desafio consistia em realizar uma operação de supressão cromática e formal, sem com isso abandonar o campo da pintura, desviando para o conceitualismo que se consolidara como um movimento de grande visibilidade.
É muito difícil falar sobre o que fazemos, como fazemos e por que fazemos. Durante um longo período, até a elaboração das obras da Serie Cinza, em 1977, meu trabalho transitou entre equívocos, novas tentativas e raríssimos êxitos. Coisa, aliás, que vira e mexe ocorre durante as investidas em que proponho desestabilizar um sistema formal que me aprisione a formulas plásticas duradouras. Nos anos finais de minha temporada parisiense, abriu-se uma perspectiva de atuar nos Estados Unidos, a partir de contatos com uma marchand que comprou algumas obras iniciais da Serie Cinza. Mas a minha estadia em Nova York foi mais curta do que eu desejava, pois a atividade política no Brasil, no final da década de 70, apresentava um novo panorama. As eleições livres para os governos estaduais estavam sendo aventadas, e eu vi despertar, nessa oportunidade, uma perspectiva de avanço social concreto. Retornei para o Brasil.
- Quais eram as questões que moviam a sua pesquisa pictórica até os anos 80? Qual era o seu projeto como artista e de que maneiras ele evoluiu?
ADRIANO: Nos anos 80, as minhas experiências com a Série Cinza, apresentada na Petite Galerie, de Franco Terranova, em 1977 e 1979, já estavam esgotadas. Vaguei, novamente, entre tentativas que só obtiveram um razoável êxito na elaboração da Serie Negra, que teve inicio nos primórdios dos anos 80. Nesse período já me dedicava intensamente à ação política, integrando o gabinete cultural de Darcy Ribeiro, no primeiro governo de Leonel Brizola.
- Como você avalia o impacto (para o bem e para o mal) de Helio Oiticica e Lygia Clark na arte brasileira?
ADRIANO: Helio e Lygia são artistas de grande potência. Suas obras contribuem para uma nova fase da criação plástica brasileira.
- A década de 80 parece ser um divisor de águas nas artes plásticas, com a emergência das teses pós-modernas no mundo e no Brasil. Como você avalia esse fenômeno? Quais são suas causas, qual é sua lógica, qual é seu impacto na produção artística?
ADRIANO: Vendo hoje, identifico dois focos distintos que ocorriam no inicio da década de 80. É claro que havia muito mais que isso, porém dissertarei apenas sobre esses dois pontos. Um convergiu para o aprofundamento das questões estéticas mais avançadas e, paulatinamente, por força de uma ideologia eminentemente econômica que começava a se impor, perdeu visibilidade. O outro recorreu a réplicas alegóricas das ações e atitudes da década antecedente, sistematizando-as e banalizando seu poder renovador. Mais pragmáticos, um grande número de artistas se conectou à nova ordem econômica e, lamentavelmente, no jogo cultural, eles saíram vencedores.
Vejamos o que ocorria no inicio dessa década. Foi ali, no final da década de 70 e inicio da de 80, que vi florescer uma produção estética que se concentrava na expansão dos meios de produção, sem, todavia, se armar em preconceitos infantis sobre o envelhecimento de alguns procedimentos tradicionais. A morte da pintura era colocada em questão, debatida e confrontada. As argumentações tinham que ser consistentes, se não o ouvinte se refugiava no tédio. Era uma opção mais excitante. Não existia ainda, na forma disciplinar que hoje se apresenta, um movimento hegemônico, alheio ao debate e que se eleva sobre o túmulo de uma ou outra forma de expressão. Claro que alguns artistas evocavam o esgotamento de certas idéias e formulas estéticas do passado. Os mais profícuos se concretizavam em ações plenas de consciência critica, fundadas em escolhas que transcendiam os meios tradicionais ou modelos “quase modernos” que detinham visibilidade.
A originalidade desses atos se encerrava na efemeridade do gesto, do movimento ou do próprio ato. Não se tratava da consolidação de um código estético. Nisso residia sua força, beleza e inteligência. Porém, ao se cristalizar em disciplina estética, tudo que havia de maravilhoso se diluiu no ar, tornou-se imediatamente palatável ao negocio da arte e se disponibilizou, clara e objetivamente, como um código a ser usado por uma malta de “seguidores”, ávidos por significados para preencher seus “vazios”, e substância para a elaboração de planos culturais estratégicos. Nada é mais nocivo para a grande arte que uma cambada de discípulos “fiéis”, dispostos a traduzir os oráculos de um mestre ou defender ardentemente teorias alheias. No correr dessa década, inúmeros fatores convergiram para a elevação de personagens lúgubres, que instrumentalizaram suas mais pérfidas vocações enterrando nas profundezas e inviabilizando o acesso do publico à multiplicidade estética.
É comum para as celebridades a reunião, em torno de si, de um bando de admiradores que se arrogam anunciar ao mundo coisas que nem mesmo o próprio artista cogita. Afinal, as celebridades são gestadas no âmago do culto personalista, agenciadas por um grão-vizir da comunicação e marketing e planejadas em laboratórios acadêmicos (a bienal fez um). Nesse ambiente as germinações artificiais e as adulterações “inspiradas” são muito frequentes. A maior parte das curadorias de hoje se monta sobre essa lógica primária e objetiva.
Eu tive a sorte de, nos anos mais agitados das décadas de 60 e 70 e parte dos 80, ver surgir e participar de um momento que contribuiu de forma estupenda para o pensamento estético, com liberdade criativa e ousadia artística. Entretanto, a partir de meados dos anos 80, ao constatar a “conversão” – no sentido religioso, mesmo! – das instalações e outras ações efêmeras em modelos estéticos “permanentes”, comecei a me preocupar com o que viria mais adiante. O terreno se tornou propício às batalhas devastadoras. As tropas aliadas ao pensamento desconstrucionista eram numerosas. Vêm daí, dos meados da década de 80, minhas cogitações sobre a reedição do velho método de consolidação acadêmica de mais uma “convenção” artística. Dessa vez ajustada aos anseios supostamente indóceis de uma nova geração – convenhamos, tão “indóceis” que uma alavancada de mercado e um conjunto de fatores institucionais e visibilidade midiática, aplacaram rapidamente. A vanguarda desconstrucionista e o ideário do relativismo cultural chegaram ao poder.
Vêm daí as primeiras manifestações artísticas com o rotulo pós-moderno. Antes disso, o termo era usado por setores da sociologia e crítica, sobretudo nos Estados Unidos, para demarcar aspectos da cultura após as transformações ocorridas em relação à “crise dos grandes relatos” – A condição pós moderna, livro de Lyotard escrito no início da década de 70, analisa as regras dos jogos da ciência, da literatura e das artes frente ao impacto com um novo saber empenhado na construção de novas tecnologias. Para o pensador, o saber que se empenhava na construção de teorias especulativas sobre a condição da humanidade e as questões abstratas desvinculadas da produção de técnica e produto perderam valor. É nesse momento que o saber adquire função estritamente técnica.
Nesse momento o relativismo cultural, aliado ao pragmatismo empreendedor, se torna o molde comportamental de alguns artistas mundo afora. Resumindo: O vale-tudo artístico encontrou território fértil para implantação e sustentabilidade de modelo.
A frase “O tempo não pára” é bacana nos brados juvenis. Nas práticas culturais as fórmulas e códigos têm o poder de congelar o tempo, blindando uma mentalidade estética dominante, escondendo os sinais de decadência e estendendo sua permanência por longo período. Isso é um fato e ocorreu na frente dos nossos olhos com a substituição nominal de manifestações artísticas correntes nos anos 70, reeditadas e consagradas posteriormente como arte avançada.
Afora a qualidade, talento e ousadia de uns poucos artistas – coisa que é recorrente na historia da arte, afinal grandes artistas sempre existirão, mesmo sob pressões terríveis, eu me pergunto: os êxitos financeiros e a grande visibilidade de alguns artistas contemporâneos são nítidos, mas como avaliar a contribuição para a expansão da percepção e do saber diante da profusão de meios, da explosão demográfica de artistas por metro quadrado planetário e da montanha de gadgets e dinheiro que circula no mercado de arte? Tirando a ampla difusão midiática da vida insossa das celebridades artísticas, os fatos glamorosos de uma atividade supostamente livre e os estrondosos preços alcançados pela arte da atualidade, nada mais merece atenção ou se impõe como “desordem” que ameace as idéias ou modelos dominantes. Nada ocorre que nos estimule a pensar sobre o conjunto de fatores que hoje atrofiam e banalizam a arte e a existência humana.
Hoje, com a quase extinção da critica autônoma,a crise da grande imprensa, as ambigüidades do estado,a decadência das instituições culturais e a ascensão do mercado, a academia entrou forte no jogo de influencias no campo artístico cultural, abocanhando um naco de poder considerável. Penso que a atual configuração dos departamentos de artes das universidades carece de reflexão extramuros, quero dizer, da sociedade. A idéia de que a academia é o lugar onde se investiga e se propõe o que há de mais avançado nas artes e no conhecimento é insustentável diante da velocidade com que as transformações vêm ocorrendo por força da atuação intelectual aberta e integrada às pressões do mundo e dos recursos disponibilizados por novos meios tecnológicos. No campo da ciência a idéia é, até certo ponto, aceitável, entretanto,nas artes é uma crença frágil e precária. No entanto, ninguém parece preocupado com o assunto. É o tabu da ocasião.
Ocorre, de fato, que ainda que tenha um desenho diferente da velha academia imperial de artes ou do regime acadêmico das belas artes, as academias contemporâneas espelham um poder similar, que vem sendo usado politicamente, de forma cruel. A disciplina curricular da academia de arte atua diretamente na formação de indivíduos. A adoção e difusão de modelos ideológicos por parte dos artistas/ professores/ teóricos é a chave que possibilita o acesso do corpo docente às instituições publicas e privadas. Trata-se aqui de uma estratégia de ocupação não só política ou mesmo comprometida com a distribuição de conhecimento, mas um fator econômico. Não podemos abstrair o fato de que o conjunto de artistas/ educadores /curadores, funcionários da academia interage de forma uníssona nas políticas das instituições culturais. Afinal,são artistas e também membros de uma corporação com acesso facilitado pelos teóricos/ curadores, colegas de cátedra, que atuam nas organizações culturais carcomidas pelo desgaste e infiltradas por interesses difusos, como é o caso das Bienais, alguns museus e exposições de representação oficial.
Em minhas ponderações sobre o tema eu me deparei com uma problemática complexa e danosa. Em alguns casos, ela é mais perniciosa para a arte contemporânea do que as ações do mercado. Afinal,o mercado não opera com idéias e muito menos é responsável pela formação de indivíduos. Para ser eficiente, ele se escora nas tendências em voga e cede às pressões de oferta e procura.Quando muito, marqueteia expectativas de consumo. Nesse sentido o mercado é transparente. Suas vitimas estão dispostas e satisfeitas em obedecer à tutela do sistema. Mas a influência e a participação de membros de carreira da academia de arte em segmentos institucionais, públicos e privados, é inquestionável. Como nenhuma questão sobe à superfície, as pessoas tendem a deixar pra lá.
Mas não podemos desprezar o fato de que no intestino do processo rola dinheiro e abrem-se portas de acesso a estratégias mercantis. Os diversos eventos artísticos, financiados com dinheiro público, têm funcionários da academia como curadores. Curiosamente, os mesmos acadêmicos/ curadores que escalam o time de artistas de uma grande exposição oficial são, também, colunistas de jornais, comentaristas exclusivos de alguns artistas, curadores de um museu, ministram palestras em ciclos temáticos, escrevem os textos de catálogos, livros e folders das galerias comerciais etc. Os artistas considerados “suspeitos” pelos membros desse comitê acadêmico enfrentam enorme resistência para transpor as barreiras institucionais. Isso sucede porque membros das academias de arte se tornaram parte ativa das estratégias de algumas fundações – poucas lhes escapam a influencia – e centros culturais por onde escoa uma boa quantidade de grana, oriunda de incentivos fiscais.
Ocultos sobre o manto do saber desinteressado (ops!) e do entrosamento institucional, alguns membros da corporação acadêmica se revezam nos eventos culturais patrocinados por todo país. Esse esquema poderoso impôs o silencio no setor artístico. É compreensível, porém, não aceitável, que os artistas que ficam na margem silenciem por temerem prejuízo ainda maior. Inseguros e angustiados, eles se desdobram para mostrar sua produção e evitar confrontos. Sabem que não podem contar os dias até a chegada de uma aposentadoria confortável. Vida dura! Como vimos, existem motivos imperiosos para a proteção das fronteiras culturais. Isso explica, em parte, o embate oco contra a crítica autônoma, o desinteresse pela produção de artistas fora do esquema, a defesa intempestiva contra qualquer critica a produção de artistas do eixo, a exaltação aos parceiros e o emperramento do fluxo de ações estéticas efetivamente inovadoras. Nem mesmo D. João VI armaria um ferrolho tão eficaz




- Na série Imagem & Memória, você trabalhou com imagens captadas na Internet. De que forma as artes visuais podem ser impactadas pelas rápidas transformações tecnológicas que vivemos?
ADRIANO: Numa das reviravoltas da minha prática pictórica, eu me impus uma nova equação. Ainda que relegue a um segundo plano as questões gerais sobre a morte da pintura, uma questão recaía sobre a minha própria pratica. Uma das mais preciosas contribuições da alta modernidade reside na idéia de ruptura. É bom esclarecer, logo de cara, que jamais me iludi com a fantasia da reprodução de um evento histórico. Se acreditasse nisso, estaria certamente integrando o quadro de autores pós-pós-modernos. Seria mais uma voz no vazio de idéias. Frente às tentativas de revirar o modelo que eu mesmo, por escolha própria, havia adotado, abri diante de mim questões que precisavam ser investigadas, pois, caso contrário, eu cairia num impasse de profundas conseqüências existenciais. Diante disso, a tendência de permanecer “integro” – não sei exatamente o que essa palavra significa, certamente inclui uma integridade pacífica, alheia às questões do mundo – no desempenho de minha atividade pictórica realizada até então, através de meios tradicionais. Essa era uma possibilidade perturbadora. A fim de não sublimar o problema, tive que enfrentar uma série de demandas.
Uma intenção sincera não aponta, necessariamente, na direção de algo em que valha a pena investir. Hoje tudo é possível, até problematizar um pomar de maçãs usando apenas Cézanne como referência histórica. Ninguém agüenta mais o uso indiscriminado de grandes personagens da arte para endossar qualquer propósito estético. Contudo, esse tipo de artifício é freqüente. As referencias históricas há muito deixaram de ser confiáveis e, na maior parte das vezes, não resultam de uma análise criteriosa. Tornaram-se fórmulas promocionais com finalidades objetivas.

A pintura é um campo do saber, e me arriscar em direção a algo diferente, que pudesse ampliar minha ação nesse campo, tornou-se urgente. Fechei o ateliê por um período e me concentrei nas investigações sobre a minha prática. A internet funcionou como uma fonte de recursos para ensaios descompromissados. Se fosse um budista, diria que funcionou como retiro espiritual. Essa situação me colocou diante de uma profusão de imagens desprovidas de carga sensível. Levou um tempo até que eu percebesse que ali se originava uma forma diferenciada de trocas simbólicas. Portanto, um fenômeno cultural de larga extensão. Quando entendi, já estava envolvido num processo de coleta de imagens anônimas, manipulando-as digitalmente e as reenviando para a rede. Com o passar do tempo eu havia gerado muitas imagens, que, sob o titulo Imagem & Memória, foram expostas na sala anexa às pinturas da série Divisões Internas no Paço Imperial, em 2007.
Algumas pessoas que acompanham meu trabalho criticaram esse ensaio como um desvio sem propósito do campo da pintura. Outras elogiaram. Ora, Imagem & Memória não é, na origem, muito menos nas obras, uma investida pictórica. Um pintor pode investigar outros territórios sem que isso signifique um impasse em sua atividade ou renúncia a uma prática. Eu a considero importante para a seqüência de experimentos que me levaram as pinturas da série Formas Magnéticas Transitórias, que venho desenvolvendo desde 2007. As pinturas dessa série, mostradas na Galeria da Caixa Cultural Rio/São Paulo, em 2008, provocaram reações curiosas. Alguns pintores e amigos não as absorveram como pinturas. Esse é um debate recorrente, que sempre propus enfrentar. Há muito tempo debato sobre as convenções e as fronteiras que limitam a pintura a paradigmas predefinidos. A pintura é um campo vastíssimo, que se renova constantemente pela aptidão de incorporar procedimentos e experimentos ao longo da historia. A série formas magnéticas transitórias se integra ao campo da pintura não apenas por vontade do autor,gosto ou designação. A pintura não é um campo fechado, regido por tratados, disciplinas ou modos pré estabelecidos. As obras da série Formas Magnéticas Transitórias são pinturas! Podia ser outra coisa, mas não é.
- O que te levou a se tornar gestor de políticas públicas para a cultura, em pelo menos três ocasiões? Que lições e conclusões você traz dessas experiências? Qual você entende que deve ser a atuação do Estado na cultura em geral e nas artes visuais em particular?
ADRIANO: Minha crença no potencial da arte e da cultura de produzir um choque social transformador há muito tempo caducou. Os avanços do sistema educacional e a ética política são objetivos e princípios cada dia mais longínquos. No inicio dos anos 80 eu dava como certo que contar com a cultura como uma ferramenta de ampla transformação social era pura ingenuidade. Eu e outros artistas de áreas distintas centramos esforços nas transformações sociais pela via política de Estado. Atuamos na campanha pela abertura e na primeira eleição livre para o governo estadual, no Rio de Janeiro. Vitoriosos, ocupamos cargos na administração publica. Participei da direção de órgãos públicos da cultura, a convite de Darcy Ribeiro e Edmundo Moniz, quando foram Secretários de Estado de Cultura. Eram dois intelectuais respeitáveis e grandes amigos. Posteriormente, eu mesmo ocupei o cargo de Secretario de Estado da Cultura. Hoje, passado tantos anos e presenciado tantas incongruências, passei a desacreditar no poder transformador das políticas de Estado. Veja como são as coisas!
Tecer considerações sobre essa experiência seria longo e penoso para uma entrevista em que as políticas públicas não são o tema central. Minhas indagações sobre o poder político nos dias atuais são extensas e áridas. Todavia, em minhas inquietações percebo uma brecha de luz por onde vislumbro movimentos crescentes de atuação social do individuo através das redes virtuais e das organizações honestas da sociedade civil. Num rápido esboço sobre as grandes tensões da modernidade. o desenho revela que elas culminaram na crise do Estado. O Estado, na forma que hoje se apresenta,é uma instituição frágil, entregue a pressões que atravessam e se sobrepõem à autoridade instituída pelo voto do cidadão e pelo respeito à ética. Dizem por aí que política e a ética são substâncias que se repelem. Os que acreditam nisso alcançaram o paraíso. Nunca se viu tamanha aversão entre dois princípios.
A globalização e a crescente centralidade da economia tornaram o Estado uma mera representação. Quem manda de fato é a economia. Não precisamos de nenhum mago para deduzir que a expansão descontrolada da economia só é factível com a anuência do Estado. E o Estado que permite a expansão econômica incontrolável não manda nada, apenas obedece para continuar parecendo confiável. Quer dizer, confiável para o poder econômico! O grosso do tesouro publico tornou-se lastro para os financistas, é direcionado para a máquina de guerra ocupar territórios estrangeiros e, em casos mais prosaicos, fazer populismo concedendo migalhas aos famintos, enquanto os bancos explodem de tanto ganhar dinheiro.
- Num momento em que a técnica e o talento são considerados categorias obsoletas até por muitos professores de artes, o que um jovem artista precisa fazer para obter sucesso e reconhecimento hoje? Em que redes precisa se inserir?
ADRIANO: Obedecer A um dos evangelhos do pós modernismo – cada acadêmico tem o seu – e não pensar. Apenas fazer, fazer, fazer… Mais do mesmo. As redes de influência no circuito da arte contemporânea são tecidas com fiapos de esquemas arcaicos. Já falei sobre isso. Quem sonha com visibilidade e reconhecimento veloz deve seguir os 10 passos do sucesso:
1) Ter sempre ao lado um grão-vizir em comunicação e marketing;
- O que pensa dos artistas contemporâneos internacionais mais valorizados hoje, como Damien Hirst e Jeff Koons? Que influência eles exercem sobre os jovens artistas brasileiros?
ADRIANO: Esses ícones são as “células-tronco” do negocio de arte mundialista, e o Brasil é um país integrado ao sistema de arte mundialista. Certamente nenhum artista brasileiro atingirá a dimensão cênica e financeira desses astros. Contudo, para quem gosta de se sentir importante e estar up to date com as tendências de maior visibilidade, o fim da fila das celebridades do mundo das artes não deixa de ser um mérito.