sexta-feira, agosto 06, 2010

Reencontros - Os olhos da Asya


(3)Os olhos da Asya.

2007-Aeroporto de Congonhas-saguão de embarque da Ponte aérea Rio/São Paulo

Um sujeito alto, vestido num terno escuro impecável, decorado por uma gravata de tiragem limitada, parou na minha frente e perguntou:
-Adriano, se lembra de mim?
Num reflexo educado disse que sim, mas, de fato, não tinha a menor idéia de quem se tratava.
De súbito, levantei-me com olhar indagador e me coloquei diante dele.
Ele percebeu meu desconforto e abreviou o trabalho da minha ferramenta de busca.
-Nicolau, Paris 1973.
-Caramba! Nicolau, quanto tempo.
Ele abriu um sorriso sincero quando atinou que meus neurônios atravessaram velozmente as camadas do tempo.
Eu o havia reconhecido!
Para evitar um esquecimento posterior vou deixar anotado aqui quem é Nicolau e como o conheci.
Nicô era a forma carinhosa que minha amiga Françoise pronunciava o diminutivo de Nicolau.
Nicô, segundo Françoise, era um sujeito extrá.Militante de esquerda,bonito,culto e,segundo ela; charmand. Seu frances era impecável,além disso, sabia muito sobre literatura “revolucionaria” , historia e política. Estudava na L’Ena –Escola Superior de Administração- na época era o equivalente a freqüentar o Olimpo.Essa escola formou vários presidentes franceses,ministros e grandes lideres empresariais.Nicô era emfim  um “eleito” pois a admissão nessa escola exigia enorme desempenho intelectual do aluno.
Outro detalhe importante da personalidade de Nicô era o fato de não freqüentar a comunidade brasileira no exílio e muito menos trocar mesuras e participar da roda de samba dos brasileiros residentes em Paris.
-Nicô detesta feijoada, me disse uma vez Françoise.
-Bien sur,entendi Françoise. Isso facilita tudo, você não precisa se esmerar em nos apresentar. Já conheço muitos brasileiros que residem em Paris, disse eu.
Françoise não ficou nem um pouco feliz com meu pouco caso. Ela era uma militante imbuída do espírito de “união” entre os desprotegidos do terceiro mundo (naquela época esse termo era politicamente correto. Hoje, deixou de ser). Não só Nicô merecia sua atenção e admiração. Eu,assim como Tourée,intelectual do Senegal que resolveu confrontar a “democracia” de Senghor, percebeu rapidamente que era melhor para sua saúde protestar em Paris que em Dacar- e outros desterrados,éramos amigos de Françoise e frequentávamos suas festas.
Um belo dia recebo um telefonema de Françoise
-Voila !Disse ela, vou dar um jantar e gostaria que você viesse.
-Boa Françoise, isso quer dizer que você achou uma solução para me apresentar à Nicô. Não sendo você brasileira acho que ele não sofrera nenhum trauma em ser apresentado a outro brasileiro pela Joana D’Arc do terceiro mundo,respondi.
Foi assim que conheci Nicô.
No correr dos três anos seguintes nos tornamos bons companheiros.
Discutíamos sobre arte, literatura, cinema e, claro, política, sobretudo, do terceiro mundo,além de impressões sobre imperialismo,guerra do Vietnam e etc.
Se alguém queria saber de alguma passeata de esquerda seja em Paris, Nanterre ou Lion consultava Nicô. Ele sabia de todas, inclusive, listava os artistas e intelectuais que estariam presentes na manif, os que iriam discursar e os que haviam subscrito o manifesto da hora.
Nicô era o cara!
No seu aniversario,Nicô convidou uns poucos amigos para queijos e vinhos em seu chambre de bonne, que ficava no topo de um edifício bacana no Boulevard de Vaugirard, em Montparnasse.
Decorado no estilo “aparelho”, seu espaço era todo revestido com pôsteres de revolucionários históricos. Uma grande foto de Marx revestia toda porta de entrada. Sobre o sofá/cama cintilava uma foto enorme de Daniel Cohn-Bendit em ação numa das passeatas de maio de 68 –Cohn - Bendict era o ídolo de Nicô. Ao lado dessa foto uma pequena foto de Mao, espremida entre a do Daniel e uma enorme de Fidel discursando.Esse mosaico revelava uma característica do anfitrião,sobretudo,pela desproporção de tamanho das imagens que deixara o líder chinês numa dimensão insignificante. Não entendi porque Mao merecia uma foto tão menor que a do  líder cubano. Essa situação me molestou tanto que acabei perguntando a Nicô o porquê dessa hierarquia. Não fazia sentido que sendo Mao mais gordo e mais velho e a China uma imensidão territorial e populacional,  Fidel merecesse um lugar de destaque na decoração.
Além da deselegância com os mais velhos, o decór  era incompleto. Havia, num porta retratos sobre uma pequena mesa, duas fotos de Regis Debray e nenhuma de Che Guevara..
-Como pode isso, companheiro?Perguntei.
Todos entraram na brincadeira e Nicô deixou rolar comentários engraçados sobre os personagens dos  sonhos dos jovens revolucionários.
Sobre sua mesa de estudo repousava uma edição de luxo, encadernada em couro marrom com letras em ouro, do Das Kapital - original alemão. Isso mesmo, entre outras virtudes, Nicô falava fluentemente alemão.
Outro fato memorável sobre o personagem Nicô aconteceu quando os amigos, depois de muita discussão, concluíram que deviam cotizar para comprar uma linda e cara edição de La Comedie Humaine de Balzac, para darmos à ele como um presente coletivo por seu aniversario. Nicô agradeceu porém, não demonstrou grande alegria com o presente, menos ainda com o autor.
Dias depois,quando lhe perguntei se havia gostado do presente, ele respondeu que não havia lido porque considerava o autor conservador e royaliste. Enfim, um reacionário.
-Como assim?Balzac pode até ser tudo, mas é um escritor extraordinário, um critico mordaz dos costumes e um dos fundadores do romance popular, disse eu.
-Ah!Deixa pra lá, resmunguei em seguida, você tem razão. As teorias políticas e econômicas tocam mais profundamente a alma humana. Quem sabe um dia se tornarão as mais estimulantes das ficções.
De volta ao futuro, sentados diante das xícaras de café, conversamos sobre as pessoas que conhecíamos e sobre Paris dos anos 70.
Entramos no avião lembrando alguns fatos que participamos juntos. Um rapaz que estava na poltrona ao lado da minha ofereceu trocar de lugar com Nicô e assim continuamos nossa conversa durante o vôo.
No percurso fiquei sabendo que no final dos anos 70, ele tinha decidido ir estudar em Moscou. La se instalou por muitos anos, casou com uma russa com quem teve dois filhos. Durante sua residência ele fez muitos contatos políticos e empresarias. Com o tempo associou-se a um grupo financeiro canadense, ficou milionário, se separou da primeira mulher e casou, em seguida, com uma jovem e linda ucraniana, portadora de olhos azuis que na foto me pareceram semelhantes aos de um rusky siberiano.
Sua primeira mulher, uma intelectual,  ocupou cargos públicos de destaque na administração soviética.
Nos profícuos anos do casório os dois ficaram muito ricos. Agora, ela vive com os filhos num belo apartamento em Londres, comprado na primeira década do lucrativo casamento. Ele, numa mansão digna de um xeique, em Montreal.
-E o Das Kapital, Nicô? Já deu tempo para fazer uma critica dos postulados marxistas?
-Permaneço fiel à esquerda. Hoje, contudo, todos sabem que os ajustes de objetivos é uma estratégia fundamental para a preserverança das ideologias de esquerda.
-Entendo!Disse eu. Mas, no plano social imediato, ainda subsiste a luta de classes?Perguntei.
-Claro!Adriano. Não vê quem não quer.
Sim!Afirmei. Mas,com isso, confirmas que a nova classe dirigente, oriunda dos movimentos de esquerda, precisa urgentemente de um exame oftalmológico.
Ah! Meu amigo, eu vivo há muito tempo no Canadá. Vez por outra, por conta de interesses financeiros, venho ao Brasil e posso constatar como as coisas por aqui mudaram.
-Do ponto de vista do capital ou do Das Kapital?Perguntei
A pergunta fixou sem resposta.
A partir de então a conversa tomou outro rumo. Falamos sobre as belezas da vida e de Asya, sua linda mulher. Despedimos-nos relembrando com saudade da época em que os desejos de mudança e justiça social das juvenis utopias revolucionarias.