quarta-feira, agosto 18, 2010

O Bem e a Verdade



-O bem ou o mau, assim como a verdade ou a mentira são, no entendimento de quem está no comando da ação prática e sob os efeitos do relativismo cultural apenas - o Bem e a Verdade. A adoção geral e irrestrita dessa mentalidade é tão confortável quanto os assentos da primeira classe deste avião de carreira. Aliás, se perguntarmos para os passageiros que só viajam na primeira classe, certamente as opiniões serão relativas. Alguns dirão que o conforto oferecido merece melhorias. Falarão que as aeronaves precisam ser aprimoradas tornando as viagens internacionais menos sofridas e desgastantes e que os vinhos e o serviço de bordo precisam melhorar, assim como os toaletes devem ser maiores e mais iluminados. Outros dirão que se sentem privilegiados por viajarem em condições similares a dos anjos. Para mim, essa poltrona da classe turística é terrivelmente desconfortável, o avião uma merda e a tripulação parece aflita e despreparada para atender tantas solicitações.

-Por favor, Frederico! O que está havendo? Por que está reclamando tanto do avião desde que partimos? Foi você que quis embarcar nas condições que te ofereceram.

-Não tinha outra alternativa, Salomé. A minha palestra é amanhã à noite. Ontem, quando telefonei para agencia, fui informado que a classe executiva estava lotada. O que eu podia fazer? Essa universidade só paga passagens na classe turística para os palestrantes. Devem pensar que um palestrante é alguma espécie de turista. Intelectual não é turista nem quando viaja a passeio para um país exótico. Ele chega ao povoado sabendo mais da vida e da cultura nativa que os próprios habitantes.

-Querido, à parte o seu mau humor eu adorei a estocada no relativismo. Já deu pra perceber que esse seminário vai pegar fogo. Li anteontem que Carlos Sacii, o mais destacado pilar do relativismo cultural, vai fazer uma palestra fartamente ilustrada sobre as correntes estéticas contemporâneas.

- Eu sei! Li trechos do paper dele. Embora Sacii não seja um relativista autentico, está mais para um oportunista inescrupuloso, é um esgrimista ligeiro e talentoso com as palavras. Sua língua é diariamente lubrificada com manteiga de cacau, escorregadia e pronta pra convencer gregos e troianos a comprar armas na Pérsia. Além disso, para confirmar sua incerteza no relativismo cultural,Sacii aposta na loteria mais do que investe em arte e cultura. Já ganhou fortunas no jogo e vive reclamando da loucura de preços que sacode o mercado de arte, apesar de apenas vender,jamais comprar.Sua rápida ascendência na carreira acadêmica é só um detalhe. Alías, um detalhe rebuscado, já que foi projetada pelas mais ambiciosas mentes do marketing cultural e apoiada por muitos partidários de aluguel. Numa mesma frase Sacii é capaz, sem pausa para o diafragma se recuperar, de submeter tanto a reitoria como comprometer o governo e subjugar os professores e funcionários, se os lucros forem promissores.

-Bem!Nisso ele não é muito diferente de vários colegas. Fred deixa isso pra lá, ainda falta muito para chegarmos. Fale-me mais sobre sua abordagem critica ao relativismo cultural. Vou ficar atenta, juro que não vou cochilar.

- Ora!Salomé, por que não lê o trabalho?

-Porque eu prefiro quando você fala, desdobrando o rigor do texto corrido e inundando a paisagem mental do ouvinte com expressões divertidas.

-Ih!Dando uma de Sacii?

-Nada disso!Você sabe que não é isso.

-Há quanto tempo venho te dizendo que a expansão do relativismo cultural é conseqüência de um largo espectro de idéias que ambicionam controle, poder e...lucro,altos lucros. Abordá-lo e desbravá-lo, na sua totalidade, exige do investigador um esforço hercúleo.

-Humm!Humm!Há muito tempo você toca nesse tema.

-À medida que pego uma ponta do sistema, outra surge envelopada dentro dela. Lembra-me uma historia de ficção científica onde um robô auto-programável reconstrói-se indefinidamente. A auto programação robótica é o sonho dos escravos da tecnologia! Ela encerrará, antes mesmo do que se imagina e aqui mesmo na Terra e ainda no século XXI, o frenesi humano de uma guerra futurista e intergaláctica do homem versus máquina.

-Meu Deus! Espero que esse avião não tenha esse recurso tecnológico adaptado nos seus vários computadores de bordo. Brincou Salomé.








-Os procedimentos relativistas estão preparando as mentes para o paraíso robotizado, onde os homens serão escravos da técnica em troca de um conforto pré - programado pelas maquinas humanizadas. Se você me perguntar se existe uma estratégia nesse processo eu, de imediato, responderia que sim. Porém, temo que ao afirmar tal suposição meu pensamento tangencie equívocos sucessivos e danosos. Pra me prevenir, escapo por outra saída. Penso sobre o “boom” das atitudes politicamente corretas, o sumiço da critica apurada, o desprezo por critérios bem fundamentados,a desvalorização do trabalho humano bem realizado e o pouco caso com a especulação intelectual sobre a vida e o homem.Curiosamente, esses acontecimentos surgiram simultaneamente, na fronteira dos anos 80/90. O que essa conjunção de fatores pode nos dizer? É isso que me anima a investigar as razões que tornaram possível a predominância do tecnicismo, do pragmatismo e do imediatismo no pensamento contemporâneo. O fato é que, ainda que não se delineie como um método visível, tais procedimentos se incrustaram de tal forma na mentalidade atual que tentar abordar o problema já dá uma trabalheira danada. Quem hoje ousaria contestar que a ética e o conhecimento tornaram-se valores tão estranhos a ponto de se antagonizarem?

-É mesmo!Em todos os cantos da vida contemporânea esse se tornou um comportamento padrão. Retrucou Salomé.

-Na política, na cultura e nas atividades humanas mais banais a relação entre ética e conhecimento se dissipou por completo.

A corrupção e a degenerescência proliferam em ritmo veloz. As inverdades e incertezas cotidianas e o amesquinhamento da alma humana, tornaram-se circunstancias, atitudes e sentimentos passivamente tolerados. Basta que um indivíduo tenha os meios para realizar seus objetivos e os obstáculos desaparecem num passe de mágica. Numa sociedade extremamente técnica, meio é o que não falta. Uma idéia brilhante (sic) é rapidamente apresentada como mais uma retumbante realização da mediocridade. O relativismo cultural protege o medíocre. Afinal, pra que serve o dispositivo politicamente correto? Como ninguém vai criticar, o produto se basta. Esse modelo “genial” pôs pra funcionar uma espécie de justiça cultural que, anulando os critérios que dificultavam a ascendência da mediocridade no circuito artístico, defende a inclusão de qualquer afoito, não importando o que façam, pensem ou produzam. O pacto deve seguir em frente. Os produtos são para ser expostos à venda. Dinheiro e um esquema de marketing são capazes de inflar o ego de qualquer aventureiro desprovido de um grama de talento e honestidade. Basta isso, para termos diante dos olhos mais um fenômeno das artes, da política e dos negócios. Quem ousará contrariar uma maquina com poderes estupendos de criar mitos da noite para o dia. A instrução subliminar é muito eficiente e vem estampada na compra do figurino politicamente correto. A instrução número 1 consiste em obliterar, denegrir e achincalhar qualquer critica através da argumentação simplória de que todos têm liberdade para fazer o que bem entender. A instrução número 2 informa que toda critica é uma forma de coerção. Quem quer ser, num mundo padronizado, um estranho no ninho? Um chato de galocha! É mais fácil ser sedutor e agradável e assim se integrar a massa dos contentes. Sou obrigado a reconhecer que nesse laboratório o robô auto - programável vem realizando uma façanha digna de um Titã. Milhões de mentes são tragadas, processadas e devolvidas aos seus portadores humanóides todas as manhãs. No dia seguinte as pessoas não sentem nenhuma diferença substancial do que eram no dia anterior. Apenas notam que seguem com mais entusiasmo para a fila de produção e consumo. Não há queixas, lamurias ou decepções, apenas uma frustração estonteante que serve de estimulo para produzir mais, ganhar mais dinheiro e comprar o que ontem parecia impossível. Quando nada se ajusta as necessidades, o crime é uma opção viável ao alcance da mão. Não se assuste, já existe uma solução justa para essa circunstancia: para os ladrões de galinha, traficantes, assaltantes e pobres; a morte ou a cadeia. Para os gatunos de alta estirpe e os políticos escroques as manchetes dos jornais e algum aborrecimento na hora do almoço. Uma úlcera, em casos extremos.

Essa ideologia se tornou um senso comum. A idéia de que fazendo o melhor para você, estará contribuindo para o Bem de todos é um marco de nossa era. Ainda que o objetivo do indivíduo não seja fazer necessariamente o Bem, o milagre desse preceito sobrevém,mesmo contra a vontade do sujeito. Essa instrução vem funcionando as mil maravilhas. Ninguém duvida dessa Verdade. Aliás, ela se tornou a melhor Verdade do império do relativismo cultural.

-Meu Deus! Onde foi parar o meu passado histórico?Brincou Salomé.

- Nesse admirável mundo novo a critica tornou-se um estorvo e os critérios bem fundamentados, assim como a especulação intelectual sobre a vida humana, foram colocadas em segundo plano. As antigas alusões aos valores e princípios perderam o sentido. Algumas pensatas do gênero ainda permanecem agregadas aos portais decorativos das fachadas dos velhos templos do conhecimento por puro esquecimento. As relações entre a ética e conhecimento tornaram-se, de um tempo para cá, códigos incompreensíveis.

O curioso disso tudo é que o desaparecimento da critica apurada deu lugar a fartura de teorias acadêmicas. Nunca na historia se produziu tanta teoria. No campo da estética todo dia lançam uma nova teoria. A publicação de teorias estéticas acelerou. Nesse ritmo,em breve, disputará corrida com as rotativas dos jornais de grande circulação.

-É! Algumas tão inacessíveis à compreensão quanto os testes do Enem. Comentou Salomé.

-Estilos proliferam. O mais recente de que tenho noticia porta o rótulo de Arte Fetiche. Ninguém até agora tem a mínima idéia do que se trata. Porém, se é fetiche, deve ser ao menos pitoresco.

- Fantástico né?Li algumas coisas a respeito. Disse Salomé.

-Mal tomo conhecimento de uma novo estilo no dia seguinte surge outro para lhe sobrepor. A pluralidade criativa está concorrendo com a velocidade de oferta dos produtos de tecnologia de ponta.As inúmeras nominações da arte contemporânea parecem inspiradas num índice de pesquisas científicas. Não é de hoje que sabemos que a ciência é o território da perfeita clareza. As experiências científicas da atualidade são regidas por exigências e metodologias rigorosas de comprovação da Verdade. A legitimação de uma teoria cientifica só é aferida na superação de regras muito bem definidas. Todavia, a aferição de uma Verdade artística é uma ambição sem propósito. Porém, essa mania se infiltrou de tal forma na mentalidade artística de nossos dias que hoje se tornou comum os produtos artísticos se imiscuírem com paradigmas científicos, sem qualquer pudor. Prospecção criativa é coisa do passado. Hoje, uma sacada esperta tem o mesmo valor de uma descoberta. Além disso, pra que esforço? Tudo pode ser rapidamente apropriado nos meios, nas técnicas e saberes complementares. A inspiração, por exemplo, pode surgir, numa consulta superficial a algumas teses da antropologia cultural.

-Essas reflexões me lembram um episodio engraçado que aconteceu num seminário na USP. Lembra?

-Não!

-No meio da sua fala um artista protestou a plenos pulmões: A Arte é vida, a vida é arte!

Ah! Claro que lembro!

-Então! Lembra que a platéia emitiu um zumbido desaprovador e que eu te disse depois que me contorci na poltrona esperando você mandá-lo à merda?

-É mesmo|!

- Qual não foi minha surpresa quando você, incorporado pelo alter ego Dalai Lama, sorriu e respondeu: - Companheiro, não restrinja a arte a apenas um fenômeno. Arte é vida e também é morte. A arte nos ofereceu no correr da historia e ainda nos oferece, obras maravilhosas que mergulham no mistério da vida e da morte. Mesmo hoje, nos dias atuais, muitos artistas tentam sofregamente encarar esses mistérios e nos encantar com sua arte. Alguns obtêm êxito, outros nem tanto. Sempre que reduzimos a arte a um único fenômeno - o da Vida -por exemplo, obliteramos nosso horizonte e reduzimos as experiências artísticas a um só ponto de vista. Afinal, sobre qual aspecto da vida estamos falando? Da vida individual, ou seja, da estetização de uma autobiografia, dos humores pessoais, da vida social e política, da vida das células, da natureza, dos insetos e das plantas ou da vida como tema genérico? Em qualquer dos casos citados e outros esquecidos a vida está presente. Seja atraves da manifestação de uma estética mórbida, hoje na moda, ou, em uma plena de alegria. Concorda? Entendo sua proposição, no entanto, você há de convir que não é necessário mais que quatro neurônios para concluir que seres vivos só podem se expressar através da vida. Todavia, nem toda expressão humana é um fenômeno artístico. Donde, é licito supor que, só através dela, da vida, podemos refletir, criar e produzir arte.

-Lembro! Lembro inclusive que durante os debates o sujeito se esforçou para explicar seu conceito de arte/vida. Enrolou-se todo e achou melhor resumir o assunto afirmando que tudo que uma pessoa faz ou produz é arte. As pessoas riram maldosamente. Eu, confesso, fiquei constrangido. Não me apraz fazer chacota com a dificuldade alheia. Meu respeito pela ingenuidade é sincero. Se ele fosse um petulante, um sujeito rempli de soi meme, eu teria ficado puto. Mas, não era o caso.

-Perdão interromper, disse a aeromoça.

- Pois não!Retrucou Salomé

-Um casal da primeira classe lhes oferece essa garrafa de champanhe.

-Oh! Quanta gentileza. Completou Salomé.

Sobre a bandeja da oferenda havia um cartão de visitas escrito em elegante caligrafia, onde se lia: Com os cumprimentos de Carlos Sacii e Aurora Celeste.