terça-feira, julho 11, 2006

Para Além das Vanguardas*

Merde d'Artiste
P.Manzoni
maio de 1961

Adriano de Aquino
Uma avassaladora onda de protestos surgiu nos anos 60 e atravessou os 70. As manifestações decorrentes desse período firmaram essas décadas como das mais notáveis do século passado. Foram vinte anos agitados por diversos movimentos políticos, propostas revolucionárias e estéticas. Na América Latina a onda atingiu em cheio o campo político/ideológico transbordando do palco institucional para a disputa social. Os anseios por mudanças tomaram as ruas e uma parte da vanguarda estudantil se inclinou para a luta armada. Golpes fulminantes condensaram-se em ditaduras militares que se espraiaram pelos países do cone sul. No Brasil, o cerceamento das liberdades democráticas imperou durante 21 anos.

Nos Estados Unidos as idéias da Nova Esquerda empolgavam os jovens que se contrapunham às corporações multinacionais, ao Estado e a academia por considerá-los prisões burocráticas. Os protestos de Malcolm X iniciados nos anos 50, repercutiam nas atitudes e gestos dos Panteras Negras atuantes nos anos 60. O conturbado episódio Rosa Parks (1955 - Rosa, uma negra, se negou a dar seu lugar em um ônibus para uma mulher branca e por isso foi presa) juntou diversas lideranças negras para organizar um boicote aos ônibus de Montgomery e protestar contra a segregação racial em vigor no transporte. O boicote foi encerrado apenas depois da decisão da Suprema Corte Americana que tornou ilegal a discriminação racial em transporte público. Essa manifestação pacifica, liderada por Martin Luther King, foi fecunda para o êxito das profundas mudanças que se seguiram. Em 1968 Luther King foi assassinado. Dois anos antes (1966) Mao Tsé -Tung dava inicio a Revolução Cultural chinesa.Como na China nada pode ser pequeno, essa revolução se chamava na integra A Grande Revolução Cultural Proletária.Entre 1966 e 1976, estudantes e trabalhadores revolucionários investiram contra indivíduos e instituições anunciando um combate sem trégua contra a influencia estrangeira, os tradicionalismos regionais e a burocracia que tomava conta do partido comunista chinês.No curto espaço de 10 anos o povo chinês sentiu na própria pele a grandeza do terror e da intolerância. Na Europa os estudantes ocuparam as ruas contestando as antiquadas disciplinas das instituições universitárias e toda forma de autoridade. Maio de 68, com epicentro em Paris, se alastrou para além fronteiras. A Guerra da Indochina que iniciou em julho 1954 obrigou os franceses a abandonarem o Vietnam em 1960. Foi assumida e redimensionada em dezembro de 1961 pelo Presidente norte americano John Kennedy ao assinar o White Paper, intensificando o crescimento da ajuda militar, técnica e econômica ao regime de Ngo Dinh Diem. Somente na manhã de 30 de abril de 1975, depois de milhares mortes e espantosa destruição, as armas silenciaram no Vietnam. Catorze anos e milhares de mortos não foram suficientes para que os EUA alcançassem seu objetivo. De forma estabanada abandonaram o território que invadiram dando fim à guerra da Indochina. Os russos chegaram atrasados, mas, chegaram. Em 1985 a Perestroika decreta o fim da União Soviética. O povo soviético olha estupefato para as ruínas de um Império erguido sobre fundações utópicas do trabalho descomunal, cerceamento das liberdades individuais e muito sofrimento. Quando dão conta do tamanho do fracasso econômico gerado pelo regime já não tinham mais pão nas mesas. Quatro anos depois, comunistas alemães persistentes caem em prantos ao assistirem a implosão das fundações do Muro de Berlim, erguido em 1961 e destruído em 1989.A ditadura militar brasileira, que teve início em 1964, encerrou-se em 1985, assim como as ditaduras de outros países latino-americanos.
Nesses vinte anos escorraçou-se, matou-se e prendeu-se milhões de indivíduos sob as alegações mais estapafúrdias.
Todavia, os rios de suor e sangue dificilmente se tornam ensinamentos palpáveis. Ainda parecem insuficientes para livrar do autoritarismo, da miséria e da ignorância inúmeros povos e protegê-los contra o rompante de manipular o eleitorado, os parlamentos e as leis para impetrar seu domínio sobre a nação. Um arquivo indecente se oculta por trás do êxito dos indicadores econômicos na tentativa de esconder a omissão diante dos sucessivos fracassos educacionais e das reais pendências sociais. A preleção da prosperidade para todos fez da farsa política uma pratica louvável, reeditando o populismo à condição de unanimidade nacional.
Atravessando a fronteira idealizada que distingue as artes das atividades sociais práticas, adentramos os domínios do imaginário e deparamos com a tela cortada pelo gesto do artista. As vanguardas estéticas sacudiram as convenções. Foi novamente declarada a morte da pintura, agora “definitivamente estrebuchada”, diziam alguns. Iniciou-se o tempo da polivalência estética e da expansão das formas contemporâneas de arte. Um intenso fluxo de estilos espalhou-se pelas artes.O foco sobre as ideias e obras modernistas que já vinham sendo contestadas, ganhou entusiasmo.Sobre a tela se precipitou tal quantidade de códigos e apetrechos diversos que o plano pictórico rompeu-se definitivamente. Foi um período de muitas convulsões seguidas de várias mortes da pintura.Pra quem se comprometeu com o novo, as altas doses de novismo o tornou banal. Acrescente-se a esses fatores os brados e as atitudes radicais da época. A mais emblemática delas, para além das vanguardas, não é uma pintura, uma escultura ou objeto, mas, detrito humano, melhor dizendo, excremento humano enlatado e intitulado Merda d'Artista.Trata-se de uma lata contendo 30 gr. de merda, conservada ao natural, feita e enlatada no mês de maio de 1961. Um produto Piero Manzoni, made in Italy, vendida em grama, segundo a cotação do ouro no dia!Merda d’Artista pode parecer para alguns apenas uma piada, para outros o marco zero da arte contemporânea, e outros mais podem identificá-la como uma critica mordaz a arte moderna chafurdada na merda burguesa. Não pretendo explicar o gesto do artista ou justificar as preferências da cultura de uma época. Porém, é bom lembrar que quando Manzoni fez a Merda d’ Artista a pintura moderna era contestada por ter se destacado nas altas cotações do mercado de arte. Certamente por isso, tornou-se alvo de ataques radicais. Seu êxito econômico era visto por muitos como a corrosão de sua vitalidade artística.
A dinâmica social é a fonte onde bebe a ironia. Anos mais tarde, um dos desdobramentos do gesto de Manzoni, ocorrido em 1989 na galeria Pailhas em Marseille, quando Bernard Bazile procedeu em publico à abertura de uma das latas de merda d'artista. Segundo alguns, ali se realizou um autentico “gesto d'artista” que gerou, de passagem, mais-valia no mercado, porque o preço de uma lata - com valor inicial de centenas de milhares de francos - dobrou, depois do episódio de sua abertura. Não pretendo aqui me alongar em explanações de caráter econômico sobre um fenômeno estético ou discorrer sobre teorias culturais. Acho melhor ir direto aos fatos, ou melhor, descrever o teatro onde os fatos acontecem. O primeiro ato é o gesto de Manzoni. O cenário um cubo branco, o enredo é inspirado num caleidoscópio estético cultural da modernidade e o pano de fundo a historia da arte e do pensamento estético moderno. No segundo ato a platéia é o palco dos acontecimentos. Experts, acadêmicos, colecionadores, historiadores, estudantes de arte, antropólogos, empresários, críticos, jornalistas, artistas in e out, amantes da arte etc.
Um compacto desses atos, com tomada inicial em close up do gesto de Manzoni e em fade out no desdobramento do gesto realizado por Bazile 28 anos depois, independentemente de sua crescente valorização no mercado de arte, afirma, categoricamente, que o gesto do artista é parte indelével do repertorio artístico moderno. Nesse ponto o gesto de Manzoni se funde com a imagem do mictório de Duchamp, tendo ao fundo o monologo: Ser ou não ser... Arte é um negocio de arte.
Ao final do espetáculo a audiência sai comentando sobre a obra. Uns perguntam se o gesto do artista é uma contribuição indelével no conjunto das investigações modernas. Outros comentam em detalhes o gesto de Manzoni e outros mais avaliam seu grau de interferência na percepção do mundo ou sobre a acida contestação ao culto do toque de Midas de artistas como Picasso, por exemplo, que ao assinar um rabisco sobre um guardanapo do restaurante o dono do estabelecimento se tornava possuidor de uma obra de arte mais valiosa que seu patrimônio comercial.
Alguns artistas da vanguarda contemporânea entenderam literalmente o gesto de Manzoni. A merda legitimada como matéria prima artística se tornou meio século depois significado, nas instalações de Paul McCarthy e nas fotos de Andrés Serrano
Nos anos 70 intensificou-se o combate ao autoritarismo e ao arsenal modernista oriundo, inclusive, das rupturas identificadas com a vanguarda histórica, então consagrada. Os artistas mais radicais desse período viram no reconhecimento mercadológico e na consagração publica das obras e dos artistas do modernismo um golpe mortal no coração da vanguarda. Com essa visão muitos contestaram a assimilação das obras modernas nas repartições publicas, nos museus, nas galerias, coleções oficiais, etc.
Jovens artistas, inclusive eu, ironizavam o louvor e a vertiginosa escalada de preços das obras modernas, tornadas objetos fixados no sistema dominante, endossando suas praticas espúrias.
Wahrol com suas reproduções seriadas das celebridades, produtos de consumos e fatos cotidianos colocados num mesmo plano, volta a ironizar o culto à valorização. Tempos depois Wahrol se deixou filmar mijando sobre as telas que estava pintando, colocando uma questão em sua trajetória como pintor e introduzindo, de novo, o excremento humano no repertorio artístico. Quer dizer, reafirmando um moto continuo que se tornou referencia para alguns artistas pós - modernos. Cruel ironia, décadas depois, o próprio Wahrol e suas obras tiveram o mesmo destino.
Talvez se possa dizer o mesmo das idéias, mas não das obras, que nortearam o termo Bad Painting que introduziu pelos idos dos anos 80/90 as pinturas pós-modernas. Nesse ponto retorno à introdução desse texto. Descolando-se do contexto critico/político da modernidade, onde as obras dos artistas acima citados se inseriam, os artistas da Bad Painting fizeram a opção pelo cinismo. Entediados diante de uma realidade inabalável divagavam sobre a inutilidade da criação original, da critica criteriosa e da contestação. Certamente, para eles, a cultura artística era apenas um alvo, um objetivo e a originalidade, coisa do passado. Não é apenas uma coincidência que entre as últimas duas décadas do século passado é onde se fixa o marco fundador do vale tudo artístico e estréia o mercado de arte no formato que hoje se apresenta. Plagiando a ambigüidade característica das atitudes de Wahrol, a intenção do rotulo “bad” era salientar, em tom debochado, a rivalidade com estética elegante e as investigações plásticas e perceptivas dos minimalistas, em voga nas décadas precedentes.
Contudo, o estilo Bad Painting não anuncia nenhuma contribuição notável para experiência pictórica e à expansão da percepção. Esse é o preço do cinismo! Nem mesmo seus espectros superficiais sobre a veleidade humana, os repetitivos e maçantes patchworks neo psicodélicos, pastiches da pop arte, replicas de segunda mão de obras celebres e outros adereços vulgares, elementos caros aos fãs da emotividade criativa, os destacam como relevantes no âmbito da arte. Apesar disso, constituiu, no conjunto, um modelo de rápida assimilação midiática e uma antecipação da escalada grandiosa das ações mercantis. Quadros dos astros desse estilo valem fortunas.
Talvez, a polivalência estética tenha esgotado anteriormente o que restava de radical no fazer artístico, por isso, não se deram ao trabalho de ir mais longe.
A única coisa que até agora se confirma é que as décadas de 60/70 e seus proclamados feitos colocaram uma pedra no caminho do modernismo ao indagar a relação entre o objeto,gesto simbólico e a sociedade. Além disso, adicionaram uma nova dificuldade para os artistas das gerações subseqüentes ao introduzirem, de modo efêmero, qual uma ação clandestina de grande mobilidade, novas modalidades estéticas que, mais tarde, vieram a se consolidar como modelo para os artistas pós - modernos.
Esses, por sua vez, estabeleceram sobre o modelo herdado um padrão estético que prolifera até hoje nas grandes mostras, nas galerias e nas instituições de ensino da arte. A simplificação acentuada da plasticidade, a banalização dos meios, a justaposição e proliferação de códigos e ícones da cultura popular e dos gadgets industrializados, a institucionalização precoce, a sacada esperta e a escalada de preços da banda mais famosa do pós modernismo evanesceram a negatividade dos segmentos de intermediação social, neutralizando a potencia da criação plástica. Ao invés de iluminar suas intenções essa tática as tornou opacas. A aparente supressão dos conflitos entre arte, instituição e mercado é um paradigma forjado em objetivos concretos. Isso levou os críticos mais criteriosos a considerá-los orgânicos ao sistema.
Vendo através do prisma dilacerado da contemporaneidade, percebe-se que grande parte das manifestações estéticas recentes, vaga por entre causas, suplicando por um lugar onde obtenha a anuência do espectador.