segunda-feira, julho 24, 2006

Fronteiras Imaginarias

http://pt.wikipedia.org/wiki/Complexo_do_Alemão / Berlim
Os dois séculos passados foram marcados pela contribuição do gênio alemão nos mais vastos domínios do saber.A genialidade impar dos seus pensadores ampliou e aprofundou os significados da razão, da estética, da ética, da lógica, das artes e das ciências.Uma forte determinação e um fluxo original de idéias consagrou escolas e solitários pensadores. F. Nietzsche, para não estender por muitos exemplos. Esse pensador,durante toda sua vida confrontou os cultos ao establishment de sua época.Contra tudo e contra todos sua obra se constituiu, como uma das mais extraordinárias contribuições para o pensamento das sociedades do século XX.Um respeitável numero de escritores, músicos, pintores, a notável arquitetura e o talento especial para concepção técnica de máquinas e equipamentos refletem a complexidade de uma imponente sociedade moderna.Contudo, nem mesmo a poderosa tradição cultural e os aparatos intelectuais e morais de que dispunham conseguiram deter o avassalador crescimento de uma liderança populista messiânica que fortalecida pela paixão, conduziu as massas à intolerância, ao terror e a violência.Mesmo a extraordinária historia de lutas entre povos, que outrora integravam o Império Romano e que se consolidou mais tarde na nação alemã, foram impotentes diante do poder avassalador e destrutivo da segregação e do ódio.Apesar dos desatinos que conhecemos,antes mesmo do inicio do século XX, os alemães ja exerciam influencia política em alguns paises latinos americanos.No México por exemplo, treinaram e equiparam o exercito nacional para enfrentarem as forças Zapatistas e conter o poder expansionista do poderoso vizinho do norte.Se resultado de suas armas e estratégias, ou não, o fato é que Zapata jamais chegou ao poder, porém, lamentavelmente, os mexicanos que se tornaram soldados ao estilo germânico perderam suas vidas sem impedir a tomada de suas terras pelos ianques.Com o score de 1x1 os conselheiros militares alemães voltaram para casa. Nos dias atuais as divisões de força são bem diferentes. Recentemente uma revista internacional de política externa publicou um ensaio do ex-chanceler mexicano Jorge Castañeda no qual nos apresenta uma curiosa analise sobre as novas tendências da esquerda na América Latina.A leitura me suscitou paralelos com desenhos de fronteiras imaginarias, bem ao estilo do realismo fantástico latino americano, cabíveis no jargão que hoje identifica a luta entre as forças do bem contra as do mal.Para quem desconhece ensaio,colo aqui um breve resumo: dentro de uma lógica (não germânica) o ensaísta nos propõe a diferença crucial entre os lideres latinos de esquerda, hoje no poder.Nesse panorama, Castañeda coloca o presidente brasileiro Lula e a presidente chilena Bachelet como os representantes da banda do bem ficando para os presidentes Morales da Bolívia, Chaves da Venezuela e Khirchner da Argentina a banda do mal.
Diante da inovação pergunto: porque tantos duvidam da liderança espontânea do presidente Bush sobre a política das Américas? Digo espontânea pelo fato de que o presidente norte americano não precisou de armas para convencer alguns intelectuais latinos de que a guerra do bem contra o mal é uma realidade e não um artifício hipócrita e mentiroso para justificar a invasão do Iraque.
Comecei de fato a me preocupar com o efeito Castañeda quando li os artigos de alguns cientistas políticos nacionais avaliando positivamente o populismo latino do bem.A principio pensei tratar-se apenas de mais um artifício eleitoreiro.O velho e persistente oportunismo.Afinal,os pensadores "partidários" necessitam de substancia teórica para justificarem as praticas assistencialistas do governo a fim de fortalecerem a campanha de Lula nos setores sociais mais preparados, visando o grosso dos votos das regiões urbanas.Esse é um ponto sensível e crucial na eleição que se aproxima.Nesses dias de violência muitas pessoas aceitam as praticas assistencialistas,mesmo sabendo de suas graves conseqüências para a vida política nacional.Partem da lógica de que o mediocre crescimento econômico não consegue atender as necessidades preementes por empregos e associam os crescentes bolsões de miséria que invadem as ruas dos grandes centros urbanos, com focos potenciais de crime e violência.
Seguindo a tradição os personagens do circo político nacional permanecem se lixando para as conseqüências das tais praticas populistas e iniciaram a pregação de idéias inspiradas em lendas políticas carismáticas que dedicam toda uma vida a causas em prol do povo sofrido.Os mais delirantes propõem a redefinição de uma nova estética para o tradicional culto a personalidade e o restabelecimento da crença popular da - "mão caridosa" - porque aparentemente democrática, dos governos populistas do bem.Trata-se de mais um movimento renovador da tradicional e abundante mediocridade continental.
Nesse quadro bizonho proliferam os fungos e o cheiro de bolor tornou o ambiente irrespirável. Os mais tímidos se sentem pouco à vontade quando justificam sua adesão ao governo através do aforismo de que a corrupção escachada que presenciamos é um fenômeno natural, um processo indissociável da cultura política latina americana.Dedicados que são devem estar gestando uma teoria para encaixar a corrupção do bem em oposição à do mal.Os mais discretos partidários do governo já  alegam há algum tempo que a corrupção é um mal endêmico, como a malaria, abundante nos trópicos, e com a qual teremos que nos habituar a conviver. Sobre a alegação de que aqui sempre houve corrupção, não se inventou nada, o ministro da cultura Gilberto Gil assim definiu para um jornal carioca as malfadadas ações dos membros do governo e diretores do PT, suspeitos de corrupção, próximos ao presidente da republica .
O ministro Gil é um músico reconhecido e tem um nome a zelar.A sua opinião,sempre clara,objetiva e precisa teve a força de um raio sobre minha consciência.De maneira tranquila,pausada e segura o ministro me transmitiu a fisicalidade de uma muralha ao volátil conceito de imponderabilidade.
Mais grave contudo são os elementos desprovidos de caráter.Eles olham mais longe quando afirmam que a insignificância econômica da corrupção justifica o desinteresse em se investigar e punir.Arrogantes exibem uma tabela para mostrar que os desvios financeiros da corrupção são inexpressivos se comparados ao volume dos benefícios sociais que o governo vem transferindo para os pobres através das bolsas contra a fome.
Também não deve ser tratada com desdém a argumentação dos grupos ligados a mais importante frente de luta do PT que é a reeleição do presidente Lula.No foco dessa luta encontramos o núcleo paz e amor e sua lógica de difícil assimilação.Como eles não demonstram nenhum pudor em revela-la acredito que ela será o tema central e slogans de campanha.Ela parte do principio de que nenhum crime ficou patente e ninguém conseguiu provar o envolvimento de parlamentares e membros do governo com a corrupção.Segundo essa lógica inexiste, portanto, corrupção do bem no governo do populismo do bem.As CPIs confirmam essa assertiva e por isso se tornaram programas cômicos de grande sucesso popular.
Costumamos não dar atenção quando pessoas irresponsáveis falam bobagens.Aí reside o perigo. Começamos a nos preocupar quando intelectuais sérios se metem em aventuras irresponsáveis.Talvez porque então as coisas ja desandaram demais .Não desprezo o fato de que alguns cientistas políticos honestos sejam simpatizantes do governo.As pessoas costumam admirar o mundo que inventam.O que me preocupa é quando eles começam a se manifestar publicamente de forma irresponsável.Recentemente, entusiasmado pelas idéias de Castañeda ou não, o cientista político Luiz de Fiori anunciou que estamos vivendo uma nova onda nacionalista mundial.Ele entende que as renegociações por “preços justos” com as petroleiras são reflexos de uma nova atitude politica. Dentre outras explicações sugere que estamos diante de um revival nacionalista mundial.Fiquei surpreso com a ideia.Num texto ambíguo sobre questões energéticas o ilustre cientista político afirma que somente a idiotia conservadora considera como populismo latino americano o que é um reflexo coerente dos governos da região sintonizados com uma nova onda nacionalista mundial.
Em seu artigo ele alude a ocorrências dispersas, identificadas pelo New York Times como a ressurgência mundial das políticas nacionalistas.O diário nova-iorquino serve pra tudo.
Nesse caso serviu para credenciar na mídia local a lógica do autor.Seus argumentos sobre as atitudes dos novos governos da região interagindo com uma vanguarda politica mundial me pareceu absurda e ingênua para servir como fundamento de um novo nacionalismo em oposição à economia global e a cultura mundialista.Para os prepotentes é sempre bom lembrar que a idiotia conservadora,dementes e mentecaptos também foram vitimas de um projeto nacionalista absurdo que banhou a Alemanha de sangue. Sabemos desde criancinhas que as discussões sobre reservas minerais, insumos energéticos e preços são, na maioria das vezes, batalhas travadas sobre o fio da navalha, ou melhor, das baionetas.Nem por isso desfralda-se por ai bandeiras de novos nacionalismos.Será que de Fiori tem duvidas sobre o conteúdo e a nobreza de princípios que defende a eternização do populismo do bem nos bucolicos recantos latino americanos?
Adriano DE AQUINO
Imagens GoogleEarth

terça-feira, julho 11, 2006

?Como Viver Junto!


Apesar das inúmeras mudanças que vem ocorrendo em todos os setores da sociedade, é lamentável atestar as tímidas variações nas instituições artístico-culturais em nosso país.
A edição 2006 da Bienal de São Paulo insiste em manter ativos conceitos esgotados.Até o momento a polemica em torno do evento está restrita a pretensão de Edemar Cid Ferreira em presidir a instituição.Encarcerado, acusado de crime financeiro - segundo a acusação ele faliu fraudulentamente o banco que presidia - pretende de novo comandar a instituição cultural.Alguns consideram sua posse um ultrage e pretendem tomar atitudes, outros não acham o assunto tão relevante e comentam despreocupadamente.Outros mais, piadistas, admitem que o candidato tem atração por falências.
Entretanto, poucos questionam se as intervenções em espaços consagrados já deram o que tinham que dar.
Uma esquisita rotina nos escaninhos da burocracia cultural exige que os curadores e outros experts funcionais da arte, definam o tema que inter-relacionará os trabalhos artísticos sobre o quais a mostra se organizará. Talvez seja apenas um motivo para convidar artistas ou definir o marketing da mostra, contudo, devo acrescentar que a incessante repetição da fórmula de eleger um tema para as grandes mostras, tornou-se uma pratica enfadonha.
Como Viver Junto, tema da próxima Bienal, me parece um tópico comum nas palestras dos psicólogos de terapias de casais ou pedagogos que avaliam a adaptação das crianças ao sistema escolar. Mesmo sabendo que o referido tema não pretende subordinar a produção artística que reunirá, o método revela a força do hábito de se fazer como sempre se fez.Para que minha crítica não tenha apenas a rudeza do deboche, justifico: se o tema queria direcionar o olhar dos artistas e do publico para as condições atuais do convívio global acho que fracassou.Primeiro porque tornou o foco da proposta por demais difuso e, depois, pelo fato de que as angústias que afetam a vida em comum, sobretudo as geradas pelas múltiplas sensações de insegurança planetária que tencionam a convivência entre Ocidente e Oriente, palestinos e israelitas, cristãos e muçulmanos, homens e mulheres, etc... são mais bem compreendidos quando definidos de forma objetiva,como na recente Bienal norte americana do Whitney, que focou na guerra do Iraque.
Caso a ampla abertura do tema dessa Bienal de São Paulo pretenda abrigar manifestações estéticas que reflitam sobre questões relativas ao convívio conjugal, relações familiares, comunais, profissionais etc... seria prudente que antes de definir seu tema avaliasse uma citação sobre os dias atuais atribuída ao financista George Soros: as pessoas não mais se relacionam, elas transacionam. Assim, estaríamos seguros de que o tema dessa Bienal focaria questões cruciais da atualidade.
Além disso, é licito imaginar que a abrangência do tema permite conceber um país com elevado grau de tolerância capaz de Viver Junto, cordialmente, com o uniforme emporcalhamento da vida política nacional.
Nas sociedades subdesenvolvidas, onde a viscosidade dos velhos hábitos arrasta uma pesada estrutura provinciana, sabemos que as mudanças levarão mais tempo.Porém, quem sabe, numa próxima grande mostra estrangeira um prestigiado curador resolva expor as obras que escolher, simplesmente expondo-as, alheio a temas e outras invencionices.
Será que a partir de então os curadores pelo mundo afora seguiriam a nova tendência?O que vemos hoje são as grandes mostras se adaptarem, circunstancialmente ao padrão, em circuito fechado, dos curadores. Contudo, devo admitir, eles não escondem, o alvo é a mídia e os glamurosos doping’s centers.
Adriano DE AQUINO
Comentários> Jacob Klintowitz sobre as cerâmicas da artista Shoko Suzuki

Para Além das Vanguardas*

Merde d'Artiste
P.Manzoni
maio de 1961

Adriano de Aquino
Uma avassaladora onda de protestos surgiu nos anos 60 e atravessou os 70. As manifestações decorrentes desse período firmaram essas décadas como das mais notáveis do século passado. Foram vinte anos agitados por diversos movimentos políticos, propostas revolucionárias e estéticas. Na América Latina a onda atingiu em cheio o campo político/ideológico transbordando do palco institucional para a disputa social. Os anseios por mudanças tomaram as ruas e uma parte da vanguarda estudantil se inclinou para a luta armada. Golpes fulminantes condensaram-se em ditaduras militares que se espraiaram pelos países do cone sul. No Brasil, o cerceamento das liberdades democráticas imperou durante 21 anos.

Nos Estados Unidos as idéias da Nova Esquerda empolgavam os jovens que se contrapunham às corporações multinacionais, ao Estado e a academia por considerá-los prisões burocráticas. Os protestos de Malcolm X iniciados nos anos 50, repercutiam nas atitudes e gestos dos Panteras Negras atuantes nos anos 60. O conturbado episódio Rosa Parks (1955 - Rosa, uma negra, se negou a dar seu lugar em um ônibus para uma mulher branca e por isso foi presa) juntou diversas lideranças negras para organizar um boicote aos ônibus de Montgomery e protestar contra a segregação racial em vigor no transporte. O boicote foi encerrado apenas depois da decisão da Suprema Corte Americana que tornou ilegal a discriminação racial em transporte público. Essa manifestação pacifica, liderada por Martin Luther King, foi fecunda para o êxito das profundas mudanças que se seguiram. Em 1968 Luther King foi assassinado. Dois anos antes (1966) Mao Tsé -Tung dava inicio a Revolução Cultural chinesa.Como na China nada pode ser pequeno, essa revolução se chamava na integra A Grande Revolução Cultural Proletária.Entre 1966 e 1976, estudantes e trabalhadores revolucionários investiram contra indivíduos e instituições anunciando um combate sem trégua contra a influencia estrangeira, os tradicionalismos regionais e a burocracia que tomava conta do partido comunista chinês.No curto espaço de 10 anos o povo chinês sentiu na própria pele a grandeza do terror e da intolerância. Na Europa os estudantes ocuparam as ruas contestando as antiquadas disciplinas das instituições universitárias e toda forma de autoridade. Maio de 68, com epicentro em Paris, se alastrou para além fronteiras. A Guerra da Indochina que iniciou em julho 1954 obrigou os franceses a abandonarem o Vietnam em 1960. Foi assumida e redimensionada em dezembro de 1961 pelo Presidente norte americano John Kennedy ao assinar o White Paper, intensificando o crescimento da ajuda militar, técnica e econômica ao regime de Ngo Dinh Diem. Somente na manhã de 30 de abril de 1975, depois de milhares mortes e espantosa destruição, as armas silenciaram no Vietnam. Catorze anos e milhares de mortos não foram suficientes para que os EUA alcançassem seu objetivo. De forma estabanada abandonaram o território que invadiram dando fim à guerra da Indochina. Os russos chegaram atrasados, mas, chegaram. Em 1985 a Perestroika decreta o fim da União Soviética. O povo soviético olha estupefato para as ruínas de um Império erguido sobre fundações utópicas do trabalho descomunal, cerceamento das liberdades individuais e muito sofrimento. Quando dão conta do tamanho do fracasso econômico gerado pelo regime já não tinham mais pão nas mesas. Quatro anos depois, comunistas alemães persistentes caem em prantos ao assistirem a implosão das fundações do Muro de Berlim, erguido em 1961 e destruído em 1989.A ditadura militar brasileira, que teve início em 1964, encerrou-se em 1985, assim como as ditaduras de outros países latino-americanos.
Nesses vinte anos escorraçou-se, matou-se e prendeu-se milhões de indivíduos sob as alegações mais estapafúrdias.
Todavia, os rios de suor e sangue dificilmente se tornam ensinamentos palpáveis. Ainda parecem insuficientes para livrar do autoritarismo, da miséria e da ignorância inúmeros povos e protegê-los contra o rompante de manipular o eleitorado, os parlamentos e as leis para impetrar seu domínio sobre a nação. Um arquivo indecente se oculta por trás do êxito dos indicadores econômicos na tentativa de esconder a omissão diante dos sucessivos fracassos educacionais e das reais pendências sociais. A preleção da prosperidade para todos fez da farsa política uma pratica louvável, reeditando o populismo à condição de unanimidade nacional.
Atravessando a fronteira idealizada que distingue as artes das atividades sociais práticas, adentramos os domínios do imaginário e deparamos com a tela cortada pelo gesto do artista. As vanguardas estéticas sacudiram as convenções. Foi novamente declarada a morte da pintura, agora “definitivamente estrebuchada”, diziam alguns. Iniciou-se o tempo da polivalência estética e da expansão das formas contemporâneas de arte. Um intenso fluxo de estilos espalhou-se pelas artes.O foco sobre as ideias e obras modernistas que já vinham sendo contestadas, ganhou entusiasmo.Sobre a tela se precipitou tal quantidade de códigos e apetrechos diversos que o plano pictórico rompeu-se definitivamente. Foi um período de muitas convulsões seguidas de várias mortes da pintura.Pra quem se comprometeu com o novo, as altas doses de novismo o tornou banal. Acrescente-se a esses fatores os brados e as atitudes radicais da época. A mais emblemática delas, para além das vanguardas, não é uma pintura, uma escultura ou objeto, mas, detrito humano, melhor dizendo, excremento humano enlatado e intitulado Merda d'Artista.Trata-se de uma lata contendo 30 gr. de merda, conservada ao natural, feita e enlatada no mês de maio de 1961. Um produto Piero Manzoni, made in Italy, vendida em grama, segundo a cotação do ouro no dia!Merda d’Artista pode parecer para alguns apenas uma piada, para outros o marco zero da arte contemporânea, e outros mais podem identificá-la como uma critica mordaz a arte moderna chafurdada na merda burguesa. Não pretendo explicar o gesto do artista ou justificar as preferências da cultura de uma época. Porém, é bom lembrar que quando Manzoni fez a Merda d’ Artista a pintura moderna era contestada por ter se destacado nas altas cotações do mercado de arte. Certamente por isso, tornou-se alvo de ataques radicais. Seu êxito econômico era visto por muitos como a corrosão de sua vitalidade artística.
A dinâmica social é a fonte onde bebe a ironia. Anos mais tarde, um dos desdobramentos do gesto de Manzoni, ocorrido em 1989 na galeria Pailhas em Marseille, quando Bernard Bazile procedeu em publico à abertura de uma das latas de merda d'artista. Segundo alguns, ali se realizou um autentico “gesto d'artista” que gerou, de passagem, mais-valia no mercado, porque o preço de uma lata - com valor inicial de centenas de milhares de francos - dobrou, depois do episódio de sua abertura. Não pretendo aqui me alongar em explanações de caráter econômico sobre um fenômeno estético ou discorrer sobre teorias culturais. Acho melhor ir direto aos fatos, ou melhor, descrever o teatro onde os fatos acontecem. O primeiro ato é o gesto de Manzoni. O cenário um cubo branco, o enredo é inspirado num caleidoscópio estético cultural da modernidade e o pano de fundo a historia da arte e do pensamento estético moderno. No segundo ato a platéia é o palco dos acontecimentos. Experts, acadêmicos, colecionadores, historiadores, estudantes de arte, antropólogos, empresários, críticos, jornalistas, artistas in e out, amantes da arte etc.
Um compacto desses atos, com tomada inicial em close up do gesto de Manzoni e em fade out no desdobramento do gesto realizado por Bazile 28 anos depois, independentemente de sua crescente valorização no mercado de arte, afirma, categoricamente, que o gesto do artista é parte indelével do repertorio artístico moderno. Nesse ponto o gesto de Manzoni se funde com a imagem do mictório de Duchamp, tendo ao fundo o monologo: Ser ou não ser... Arte é um negocio de arte.
Ao final do espetáculo a audiência sai comentando sobre a obra. Uns perguntam se o gesto do artista é uma contribuição indelével no conjunto das investigações modernas. Outros comentam em detalhes o gesto de Manzoni e outros mais avaliam seu grau de interferência na percepção do mundo ou sobre a acida contestação ao culto do toque de Midas de artistas como Picasso, por exemplo, que ao assinar um rabisco sobre um guardanapo do restaurante o dono do estabelecimento se tornava possuidor de uma obra de arte mais valiosa que seu patrimônio comercial.
Alguns artistas da vanguarda contemporânea entenderam literalmente o gesto de Manzoni. A merda legitimada como matéria prima artística se tornou meio século depois significado, nas instalações de Paul McCarthy e nas fotos de Andrés Serrano
Nos anos 70 intensificou-se o combate ao autoritarismo e ao arsenal modernista oriundo, inclusive, das rupturas identificadas com a vanguarda histórica, então consagrada. Os artistas mais radicais desse período viram no reconhecimento mercadológico e na consagração publica das obras e dos artistas do modernismo um golpe mortal no coração da vanguarda. Com essa visão muitos contestaram a assimilação das obras modernas nas repartições publicas, nos museus, nas galerias, coleções oficiais, etc.
Jovens artistas, inclusive eu, ironizavam o louvor e a vertiginosa escalada de preços das obras modernas, tornadas objetos fixados no sistema dominante, endossando suas praticas espúrias.
Wahrol com suas reproduções seriadas das celebridades, produtos de consumos e fatos cotidianos colocados num mesmo plano, volta a ironizar o culto à valorização. Tempos depois Wahrol se deixou filmar mijando sobre as telas que estava pintando, colocando uma questão em sua trajetória como pintor e introduzindo, de novo, o excremento humano no repertorio artístico. Quer dizer, reafirmando um moto continuo que se tornou referencia para alguns artistas pós - modernos. Cruel ironia, décadas depois, o próprio Wahrol e suas obras tiveram o mesmo destino.
Talvez se possa dizer o mesmo das idéias, mas não das obras, que nortearam o termo Bad Painting que introduziu pelos idos dos anos 80/90 as pinturas pós-modernas. Nesse ponto retorno à introdução desse texto. Descolando-se do contexto critico/político da modernidade, onde as obras dos artistas acima citados se inseriam, os artistas da Bad Painting fizeram a opção pelo cinismo. Entediados diante de uma realidade inabalável divagavam sobre a inutilidade da criação original, da critica criteriosa e da contestação. Certamente, para eles, a cultura artística era apenas um alvo, um objetivo e a originalidade, coisa do passado. Não é apenas uma coincidência que entre as últimas duas décadas do século passado é onde se fixa o marco fundador do vale tudo artístico e estréia o mercado de arte no formato que hoje se apresenta. Plagiando a ambigüidade característica das atitudes de Wahrol, a intenção do rotulo “bad” era salientar, em tom debochado, a rivalidade com estética elegante e as investigações plásticas e perceptivas dos minimalistas, em voga nas décadas precedentes.
Contudo, o estilo Bad Painting não anuncia nenhuma contribuição notável para experiência pictórica e à expansão da percepção. Esse é o preço do cinismo! Nem mesmo seus espectros superficiais sobre a veleidade humana, os repetitivos e maçantes patchworks neo psicodélicos, pastiches da pop arte, replicas de segunda mão de obras celebres e outros adereços vulgares, elementos caros aos fãs da emotividade criativa, os destacam como relevantes no âmbito da arte. Apesar disso, constituiu, no conjunto, um modelo de rápida assimilação midiática e uma antecipação da escalada grandiosa das ações mercantis. Quadros dos astros desse estilo valem fortunas.
Talvez, a polivalência estética tenha esgotado anteriormente o que restava de radical no fazer artístico, por isso, não se deram ao trabalho de ir mais longe.
A única coisa que até agora se confirma é que as décadas de 60/70 e seus proclamados feitos colocaram uma pedra no caminho do modernismo ao indagar a relação entre o objeto,gesto simbólico e a sociedade. Além disso, adicionaram uma nova dificuldade para os artistas das gerações subseqüentes ao introduzirem, de modo efêmero, qual uma ação clandestina de grande mobilidade, novas modalidades estéticas que, mais tarde, vieram a se consolidar como modelo para os artistas pós - modernos.
Esses, por sua vez, estabeleceram sobre o modelo herdado um padrão estético que prolifera até hoje nas grandes mostras, nas galerias e nas instituições de ensino da arte. A simplificação acentuada da plasticidade, a banalização dos meios, a justaposição e proliferação de códigos e ícones da cultura popular e dos gadgets industrializados, a institucionalização precoce, a sacada esperta e a escalada de preços da banda mais famosa do pós modernismo evanesceram a negatividade dos segmentos de intermediação social, neutralizando a potencia da criação plástica. Ao invés de iluminar suas intenções essa tática as tornou opacas. A aparente supressão dos conflitos entre arte, instituição e mercado é um paradigma forjado em objetivos concretos. Isso levou os críticos mais criteriosos a considerá-los orgânicos ao sistema.
Vendo através do prisma dilacerado da contemporaneidade, percebe-se que grande parte das manifestações estéticas recentes, vaga por entre causas, suplicando por um lugar onde obtenha a anuência do espectador.


quinta-feira, julho 06, 2006

As Profundezas da Superficie Reluzente


Imagem e texto
Adriano DE AQUINO

Para o público atento a arte contemporânea não mais reflete um compromisso dos artistas com a inovação. O “choque do novo” em arte foi definitivamente esgotado nos anos sessenta, mesmo antes. O fim da dimensão de constituído, proveniente, em parte, do discurso da vanguarda, contribuiu para esvaziar a idéia de que a arte é o lugar do novo.

Desde o modernismo as incessantes mudanças de estilos tornaram-se um preceito aceitável. Hoje, o abandono da narrativa em uma obra ou evento e o desprestigio da critica apurada - fatores determinantes para a crescente valorização da polifonia interpretativa - elevou a emoção dos admiradores de arte ao mesmo patamar da reflexão critica criteriosa. Em suma: gostar de uma obra ou avaliá-la criticamente tem hoje o mesmo valor.

Nesse texto abordarei essas questões pelo viés do artista e não das circunstancias geradas pelos agentes de intermediação curatorial, institucional ou mercadológica.

No alto modernismo a originalidade de uma obra ocupava o topo da cadeia cultural. No pós - modernismo a diversidade substituiu a originalidade e se constituiu como fator determinante para a hierarquização da produção contemporânea. Essa substituição de critérios,convenhamos,merece o Nobel da Esperteza. Originalidade criativa é uma categoria facilmente percebível enquanto a diversidade,assim como os eventos naturais, não se abre a verificações criteriosas ou julgamento de valor. Resumidamente, a diversidade e a originalidade se tornaram os termos mais comuns para diferenciar dois momentos da arte recente: a originalidade é moderna e a diversidade é pós-moderna.

Todos sabem que atualmente as experiências estéticas podem ocorrer em qualquer circunstancia, agrupando referencias diversas e heterogêneas sobre os mais variados suportes. Os regimes estéticos foram pro brejo. Contudo, é nesse desvio que se instalou uma curiosa indagação da contemporaneidade: a égide da diversidade aniquilou a distinção entre uma proposta estética legitima de um pastiche vibrante e sedutor. Sem uma hierarquia de valor bem fundamentada, mas com a ambição desmedida por reconhecimento e glória, forjaram uma cópia grotesca do mecenas do renascimento italiano. Os novos investidores, orientados pela tabula rasa de Gagossian ou Saatchi, vagam no limbo, com os bolsos e paredes recheados de cifrões. A citação de Charles Olson: ”O que não muda é a vontade de mudar”, associado ao poder econômico astronômico alerta que a vontade dos poderosos tudo pode mudar, sobretudo, para pior.
Por quê?

A necessidade de estabelecer algum parâmetro qualitativo, um julgamento de valor sobre as coisas do mundo é uma angústia inerente à espécie humana?

O esvaziamento da autoridade critica e a flexibilização das formas de partilha da arte trouxe para a superfície muitas questões. A polifonia interpretativa é, sem duvida, uma forma mais branda de intermediação entre fazeres e saberes da arte contemporânea. Mas, esse fato em si, responde as duvidas de nosso tempo?

O gosto pessoal é fruto da associação que fazemos entre um objeto e uma sensação desejável. Porém, crer que desejo vivenciado é um segmento natural das indagações existenciais de um indivíduo inserido numa sociedade complexa e altamente competitiva, é reduzir o largo espectro da experiência humana a um leque de sensações desejáveis. Além do mais, esse é um campo minado, extremamente manipulado pelo conhecimento avançado da mídia, da propaganda, do marketing e do mercado.

O poder da comunicação é hoje tão grande que se inocula desejos com a mesma facilidade com que se dá nome a pessoas, objetos e coisas.
Faz sentido que jovens artistas se oponham aos critérios que balizaram os movimentos estéticos antecessores. Porém, a vida nos ensina que as coisas do mundo não se desintegram apenas porque as desprezamos. É preciso mais que isso para desalojar um paradigma de seu casulo.

As sucessivas e velozes substituições de conceitos anunciam que algo de diferente está entre nós, porém, ruptura com regimes estéticos, políticos e econômicos precedentes não ocorre por eficácia da nomenclatura.

Eles ficam em suspensão. Quando necessário, antigos conceitos voltam a valer, sobretudo para fundamentar manifestações culturais emergentes. Uma dicotomia que solicita mais reflexão dos movimentos estéticos da atualidade.

Ocorre presentemente que as sucessivas mudanças vêm pressionando grande número de artistas a adentrarem, mesmo de forma involuntária, a lógica da produção pós-moderna.O público, soterrado pela avalanche de modos, conceitos e estilos, acabou por considerá-los banais. Não é raro vermos visitantes em grandes exposições atravessarem uma proposta estética e penetrarem outras, absorvendo os diferentes estímulos estéticos como se passeassem num parque de diversões. Independente da capacidade de resistência de cada individuo ou grupo social, o gigantesco poder de absorção e a flexibilidade dos mecanismos da nova economia se apoderaram de todas as categorias de produção. Se no âmbito mais amplo da sociedade essas mudanças provocaram grande impacto, no ambiente artístico cultural ele foi contundente. A rigor, nas artes, essas mudanças também ocorrem no choque com o público. Nesse contexto o pouco que podemos perceber nos revela que o entendimento ou o aprofundamento nos significados de uma obra parecem itens desprovidos de interesse. Hoje, a constante visibilidade de um artista na mídia, sua participação em eventos realizados por um pool de galerias em lugares freqüentados pelas elites cosmopolitas internacionais e as estratégias de estimulo mercadológico nos sugerem sua preeminência sobre os demais valores. Esses efeitos tornam-se ainda mais nocivos nos países de precária estrutura sócio culturais onde grandes marcas são certificados mercantis de reconhecimento global, quando, de fato, são nada mais que ferramentas promocionais.

É um teatro onde os atores trocam lendas pessoais e a platéia confirma sua atração por sensações inéditas. O vendedor interpreta o ambíguo papel de “connaisseur” sofisticado e confiável e o comprador se credencia culturalmente para ascender ao patamar contemporâneo. Todos integram o elenco de orgulhosos possuidores de códigos identificados com as mais recentes tendências internacionais. Prezados pelo grupo com o qual se relacionam e com aqueles que ambicionam impressionar. Na seqüência, a obra de um “outsider” se agrega as demais marcas no alto da cadeia cultural.
Nesse novo mundo a descentralização da economia, que a tornou ainda mais flexível e poderosa, e os novos meios tecnológicos que trouxeram maior mobilidade para a comunicação, tornaram-se os vetores principais das mudanças. Para quem considerava o modernismo e seus valores um projeto sem fim, o momento é de incertezas.
Habermas,
um importante pensador moderno, acreditava que o abandono dos processos e valores inclusos na modernidade incidiria em retrocesso. Os adeptos das mudanças atuais morrem de rir! Não vêem retrocesso algum, ao contrário, só identificam avanços. Para eles a superfície da pós-modernidade reflete prosperidade.

Para os que vêem o fim do projeto moderno como a brecha aberta à invasão da barbárie, as coisas se tornaram angustiantes.Para eles o abandono dos princípios e critérios outrora dominante vem contribuindo para a corrosão dos valores éticos e estéticos e aumentando o sofrimento das pessoas que vivem pressionadas por uma realidade cada dia mais inóspita. Criticam o atual modelo e seus cultos à celebridade e ao consumismo.

De fato é curiosa a mentalidade das elites cosmopolitas cultas e bem informadas no enfrentamento das mazelas de uma sociedade fragmentada que mal consegue planejar o dia de amanhã que, com certeza, será recheado de acontecimentos e surpresas.Quando penetramos os pensamentos predominantes na atualidade nos perguntamos: como uma sociedade como a atual manteria vigente uma linha graduada de valores que, para o modernismo, encontrava-se emaranhada na experiência social em territórios bem distintos?

Para o artista que preza o valor intrínseco de sua obra e deseja preservar certa autonomia, o atual momento impõe uma árdua tarefa. A começar redefinindo os paradigmas que o permita criar e produzir menos exposto às pressões, demandas e estímulos externos de forma a não se tornar um vassalo das agendas promocionais, um convertido convicto dos fundamentos imediatistas de fama e fortuna e outras exigências carreiristas. Consolidar,criticamente,propostas estéticas que neguem a reprodução de sistemas consagrados,renovar-se, e ainda assim, sobreviver.
A pergunta que se coloca é: vivemos uma época de mais liberdade?Ou, estamos submersos nas rasas profundezas de uma superfície reluzente? Imersos em lugar nenhum, onde revoluções, mudanças e transformações tornaram-se slogans de uma vitrine plena de produtos artísticos, assim como, dos mais recentes equipamentos de alta tecnologia. Será a liberdade somente um titulo de uma estatua ou uma antiga estação de trem? Hoje, ao contrario de outrora, poucos artistas parecem preocupados com esse assunto. Afinal, a liberdade é mais estimada quando inserida numa linha graduada de valores. Se essa linha desaparece, abrir mão da liberdade criativa é o mesmo que abrir mão de coisa alguma.
Os que hoje acreditam na transgressão ou no exotismo recondicionado como uma nova onda estética, podem estar olhando somente para o rótulo da embalagem.
Nos tempos atuais a liberdade tornou-se um item, se preferir, um acessório, agregado ao produto artístico contemporâneo.
Como disse no inicio desse texto é difícil encontrar alguém que hoje defenda a idéia de que a arte tem compromisso com a inovação.Será que existe alguém capaz de dizer o mesmo em relação à liberdade criativa?



Comentarios> Claudia Mogrovejo :...entre as vanguardas modernistas e o fenômeno pós-moderno.

quarta-feira, julho 05, 2006

Terrorismo:Estética e Estratégia





Adriano de Aquino
Em 11 de maio de 2004, Steven Kurtz, professor e artista contemporâneo, fundador do Critical Art Ensemble CAE - Nova York foi preso por utilizar substancias letais, bactérias e outros agentes químicos, sinteticamente processados, em suas performances e instalações que simulavam atos de terrorismo bacteriológico. Ele não é o primeiro artista retido por agencias de segurança. Com os perigos que rondam o planeta, certamente, não será o ultimo.
Muitas pessoas consideraram Kurtz um tolo exibicionista. Outros aproveitaram a reação oficial para protestar contra os reacionários, as agencias de segurança, a policia, o pai castrador, a mãe super protetora e toda ordem constituída. Os mais avisados não engoliram a isca. Sabem que chocar a sociedade tornou-se rotina. Além disso, convenhamos, a casta de artistas contemporâneos que arroga para si uma clarividência extraordinária e messiânica encontrou nesses recantos obscuros uma fonte de inspiração. Esse artifício tornou-se, nos últimos anos, uma chatice insuportável.A ânsia de arrebatar um público planetário parece uma ambição comum a muitos artistas contemporâneos. Heróis apocalípticos fazem um sucesso estrondoso. Al Gore, por exemplo, é um herói apocalíptico arrumadinho, bem alimentado e bem penteado. Esses personagens messiânicos encontraram na insegurança planetária um território fértil para suas proezas. Claro que artistas graduados pelas academias de arte não poderiam ficar fora dessa nova onda global. Os equívocos de suas manifestações amontoam problemas. Indiferentes as conseqüências, esses Don Quixotes enfiam os pés pelas mãos quando se metem a estetizar ou pontificar sobre o arsenal bacteriológico e a rede de conexão global. Patetices tornam-se, da noite para o dia, espetáculos arrebatadores porque são planejados para interagir em rede. Reproduzem os eventos gestados dentro de cavernas escuras do Afeganistão ou em sombrios gabinetes de Washington que visam às múltiplas conexões da rede de comunicação global em tempo real, com objetivos recíprocos de potencializar o medo e a insegurança onde quer que seja. Quem navega na internet já teve oportunidade de ver filmes sobre ações militares, realizados por soldados norte americanos no Iraque como se fossem imagens de grupos estudantis em férias no estrangeiro.Entre as inúmeras manifestações após os ataques as torres do WTC a de um artista merece destaque especial.Stockhausen afirmou que o atentado de 11 de setembro se tratava, sobretudo, da maior obra de arte de todos os tempos”. Sua frase nos colocou diante de um complexo problema. Sua declaração rompeu as fronteiras da representação apropriando-se de um evento em tempo real. Foi duramente criticado, por ter usado inadequadamente uma tragédia que extirpou mais de três mil vidas apenas por que em sua cabeça “criativa” estabeleceu paralelos entre o 11 de setembro e um gesto artístico de dimensões inéditas. Tipo um concerto de Três Tenores banhado de sangue, distribuído em tempo real pela rede de computadores mundo afora. Ele vislumbrou no episodio uma nova versão da tragédia grega em tempo real e escala global.
Mesmo aqueles que viram nessa declaração uma performance em si foram comedidos em suas considerações. Outros, mais moderados, entenderam as palavras de Stockhausen como uma constatação da obsolescência dos princípios éticos que transitam no mundo atual, porém, se pronunciaram discretamente.
O 11 de setembro deu inicio a uma serie de especulações que com o tempo vai acabar encobrindo a dimensão da tragédia.Para os militantes de um pacto pacificador 11/09 foi o gatilho que acionou os meios para atingir uma ambição política anunciada. Para o jornalista John Pilger o 11 de setembro foi utilizado politicamente como uma oportunidade imperdível, capitalizada para legitimar ações contra nações visando o controle de recursos energéticos globais. Para artistas e arquitetos uma nova possibilidade para revelarem ao mundo seus talentos. Depois de cinco anos concluímos que 11 de setembro de 2001 mudou o mundo de forma não prevista na ocasião dos atentados. Sobretudo, porque os ataques levaram não apenas à chamada guerra contra o terror, eles fizeram eclodir a guerra do Iraque. Uma guerra que já dura quase tanto quanto o envolvimento americano na Segunda Guerra Mundial. Até o momento não há qualquer tipo de conclusão à vista.

Uma significativa mudança oriunda do 11 de Setembro também pode ser percebida na degradação das instituições políticas mundo afora.
No Cone Sul instalou-se a estratégia do desconhecimento sobre atividades espúrias contra o erário público praticada por representantes do povo. Após mais de dez meses de espetáculos contínuos de pura sordidez, encenados nos palácios e no Congresso Nacional, o governo, em parte eleito para dar um basta na perversa tradição política local, infiltrou mais gases tóxicos no ambiente político nacional ao estimular novas forças a cometerem os mesmos crimes de sempre. Continuamos respirando o fedor da carniça. Aqueles que tinham expectativa numa gestão de transparência administrativa deram de cara na corrupção infame. Quando questionado o supremo líder ofende-se, alegando possuir mais ética do que qualquer cidadão. Porém, esquece de dizer-nos onde encontrá-la em seu governo.
De volta ao hemisfério norte vemos a performance de Steven Kurtz que, a titulo de contestar os discursos hipócritas, expõe o publico diante de um arsenal de substancias tóxicas.
Segundo ele, seu ato é uma critica ao terrorismo e as manipulações políticas de um evento terrível. Porém, nem os indivíduos da comunidade e nem as autoridades americanas viram assim. Oh!Deus!Como são reacionários!Deve ter pensado o artista em sua cela. Consideraram a eloqüente obra a favor da paz com uma ameaça terrorista. Hoje ele se defende perante a justiça enfatizando a legalidade e a segurança de todas as ações do CAE, ressaltando que sempre consultaram especialistas e nunca infringiram a lei. Esforça-se para provar que o CAE não é um grupo terrorista. Aqueles que consideram a frase de efeito de Stockhausen sobre o triste acontecimento de 11 de setembro como uma espécie de performance “per si” também devem achar a instalação de Kurtz uma obra profética que desintoxicara o espectador através de uma nova consciência.

Falar da Obra de Arte

Aquele que lê minhas palavras as está inventando
J.L.Borges Ainda bem que, o que se diz sobre uma obra de arte, é fantasia, só faz suscitar algumas dúvidas que servem apenas como material de reflexão. Pintar, por exemplo, é um ato difícil que exige do artista método e sentimento, gestos: violentos, lúdicos, suaves, contraditórios, inocentes e paradoxais... 
Tudo para ocupar um espaço branco cheio de história, campo de pouso do enigma do belo. É o drama da pintura, ou melhor da arte. A obra de arte é muitas vezes, uma superfície para o olhar pretensioso do observador arremessar inquietações e localizar fantasmas. Se quem olha inventa realidades, quem escreve imagina no texto verdades suspeitas, que apenas aproximam ou interrogam o trabalho do outro. Recomenda-se ficar em silêncio, para se escutar o diálogo dos personagens que desenham a paisagem do objeto de arte. Eles fazem parte da memória da arte. Escutar o som que vem das cores, das formas e das linhas e os acordes de um movimento brusco de um pincel, que deixa rastros que marcam a certeza e a incerteza da mão. Estamos sempre falando para inventar um discurso sobre o trabalho do outro, mas ele está sempre do outro lado do texto. Diz Adorno: “as obras falam como as fadas nos contos”. Quando pensamos que estamos comentando uma obra de arte, ela nem aparece na superfície do texto. 
Almandrade
Imagem
Adriano DE AQUINO

terça-feira, julho 04, 2006

Substituindo Castas

Para que todo quede tal cual.
Tal cual, en el fondo: tan sólo una
imperceptible sustitución de castas
Il Gattopardo
G.Tomasi DI LAMPEDUSA
Diante da epígrafe muitos ousariam contestar Don Fabrízio, príncipe de Salina.Contestariam certos de que as novas tecnologias estão transformando as sociedades contemporâneas.Para eles as mudanças nos meios de comunicação são itens cruciais na consolidação dessas mudanças.
Creem que se descortinou um futuro incerto para as grandes empresas jornalísticas, enquanto, por outro lado, abriu-se um amplo e inédito horizonte para a comunicação livre entre os homens.As empresas que se reestruturaram conseguem superar os desafios surgidos nas ultimas duas décadas e se preparam para as mudanças que ainda estão por vir, desviando o foco editorial para as atuações mais dinâmicas.Grandes órgãos de comunicação abriram espaço para blogs sobre os mais variados assuntos assinados por estrelas do jornalismo, esportes, artes etc...Contudo, reclamam.Nada parece suficiente para atrair maior atenção do leitor.
Por que? Os sabidos dizem que maiores oportunidades para os indivíduos integrarem o fluxo de informações disponibilizados na internet mudaram as regras do jogo.Atualmente, qualquer cidadão conectado à rede está apto a receber as noticias mais importantes sobre assuntos que mais lhes interessar em tempo real. Além disso, o desagrado de muitos leitores pelo que chamam de múltiplos negócios das empresas jornalísticas tem contribuído para que um enorme contingente de leitores busque informações em canais livres dos interesses empresariais.
Não é desprezível o desejo de muitos usuários da internet em ter acesso a diferentes canais de noticias de forma a depurar as informações que busca.Essa enorme mobilidade de recursos possibilitou que as opiniões de especialistas ou famosos jornalistas possam ser lidas fora dos domínios editorias das grandes empresas jornalísticas.E, os comentários individuais, antes circunscritos ao ambiente familiar, aos colegas de trabalho e membros da comunidade, transcenderam os campos específicos.
A expansão e a velocidade dos meios de comunicação em escala global, estenderam os espaços das discussões e trocas de experiências e opiniões em tempo real, sem qualquer forma de tutela ou resguardo.O grande número de blogs e outros sítios eletrônicos são reflexos da procura por diferentes meios de comunicação e interação.
A livre interatividade entre usuários permite que uns escolham aparecer nos blogs com niks invés de seus verdadeiros nomes.Essa forma lúdica de opinar num mundo cada vez mais complicado tem se revelado mais excitante que o solitário e passivo anonimato.
Isso não quer dizer que aqueles que escolhem interagir com seu verdadeiro assumem integralmente suas opiniões na construção da história de um novo tempo. Isso tudo pouco importa.
O que mobiliza as pessoas a compartilharem nos blogs é o fato de saberem que suas opiniões não serão submetidas a critérios editoriais ou a parâmetros estéticos, éticos, morais, religiosos, ideológicos e etc... O compromisso dos blogs com a postagem integral da opinião de todos elimina qualquer forma de censura e tornou-se um fator positivo de atração.
Atualmente muitas pessoas reclamam de um inexplicável mal estar diante da intermitente construção e desconstrução de conceitos.Esses estímulos promovem a expansão das formas de comunicação na era dos meios eletrônicos e produzem uma considerável massa critica sobre os antigos e outrora respeitáveis valores sociais.
Novos paradigmas surgem todos os dias em todos os setores da sociedade. Porém, um letreiro luminoso cintila nas estações cosmopolitas alertando os transeuntes.Parafraseando Lampedusa www.epdlp.com/escritor.php?id=1908 o letreiro anuncia que : Se queremos que tudo siga como está, é preciso que tudo mude.É difícil negar mudanças, mesmo diante da perspectiva de que tudo mude para que siga sendo o que sempre foi, de forma mais cruel.Os que acreditam que as transformações atuais são positivas falam da redefinição do papel da comunicação no contexto histórico e cultural da humanidade como um exemplo notável. Mesmo os mais céticos encontram justificativas para mudanças no descrédito da sociedade diante do esvaziamento de significado dos princípios éticos.Eles consideram a decadência das múltiplas formas de representação publica e o emporcalhamento da política e de outras instituições tradicionais um sintoma do colapso definitivo do velho sistema.Os termos cibercultura, ciberespaço, hipermídia, interface, interatividade, hipertexto, realidade virtual e outros não são apenas palavras que anunciam novos artifícios tecnológicos.Elas refletem um fato incontestável: estamos diante de uma nova relação do homem com tudo que cria.Essas noções estão produzindo impactos na ciência, na arte, na literatura, na filosofia e no pensamento.
A hipertextualidade http://pt.wikipedia.org , ponto para onde convergem todas as informações,dados e conceitos que hoje circulam, coloca em questão os limites do discurso tradicional.Vivemos um tempo em que qualquer forma de direcionamento também pode ser entendida como atitude suspeita.A lógica aprioristica, o conhecimento fechado em si, a racionalidade centralizadora e os velhos métodos cumulativos do saber parecem esgotados.
Imagem e texto
Adriano DE AQUINO
gerada a partir de MANET e foto anonima.

Dialogos:Sobre Pintura

Quadrado Negro/K.Malevitch/1920

-Hoje , fazer pintura me parece uma pretensão artística alheia ao tempo.
-Vira e mexe surge um novo laudo da morte da pintura. Assim como você muitos confundem as atitudes e os discursos das vanguardas do modernismo, decisivas para a dispersão das regras e métodos de se fazer e perceber pintura em nosso tempo, como uma declaração de morte dos fazeres tradicionais. Hoje perguntamos se ao precipitarem as criticas ao legado moderno as vanguardas pretendiam dar como encerrada a experiência da pintura. Muitos acreditam que sim. Outros pensam que essas atitudes repavimentaram o caminho para sua continuidade. Foram muitos os experimentalismos em pintura concomitantes e posteriores as manifestações vanguardistas que enunciavam seu esgotamento. Algumas experiências pictóricas cruzaram a fronteira restrita do gênero em si, todavia, insistiam em continuar afirmando-se como pintura. Fruto do marcante individualismo do nosso tempo, os pintores contemporâneos restabeleceram novas interações com a poesia, a filosofia e a ciência.A tecnologia melhorou e desenvolveu médiuns ampliando a gama de cores sintéticas e fornecendo aos artistas novos processos eletrônicos de aplicação da imagem.Contudo, apesar desse diagnostico otimista, a pratica pictórica encontra-se diante de um dilema.Atraídos pelo brilho dos novos tempos muitos pintores subtraíram do fazer pictórico a dimensão do sagrado.Ao desguarnecerem esse flanco a pintura foi rapidamente capturada pelos titãs e lançada na arena dos negócios, onde prevalece a astúcia dos homens.
-Dimensão do sagrado?
-Sim!Segundo a tradição, os ícones de uma época surgem dentro de emaranhados contextos históricos/culturais.Sua consagração é , portanto, fruto de uma relação orgânica entre o feito e o ambiente sócio-cultural.Por essa e outras razões podemos entender porque os ícones tornam-se pontos cardeais das sociedades.Contudo, os conhecimentos da atualidade e sua dinâmica sobre as coisas e os fatos, aliados a uma poderosa ambição, criaram atalhos e encurtaram o caminho e o tempo exigido para consagração, investindo pesado na difusão de ícones que se sucedem de estação para estação.Um ágil sistema montado sobre essa lógica vem produzindo lucros astronômicos e ícones descartáveis.
-Porém, temos que admitir que a imposição de ícones não é uma invenção dos tempos pós-modernos.Questionáveis ícones do passado atravessaram os tempos.Suas consagrações eram obtidas pela força e pela submissão.
-É nesse cenário confuso e incerto que nos esforçamos como pessoas socialmente úteis na expectativa de nos sentirmos recompensados como indivíduos.Em tal ambiente o talento e esforço são ingredientes indispensáveis para o empreendimento criativo e no enfrentamento dos limites pessoais e para superação dos desafios.Entretanto, essas virtudes são insuficientes para compreensão dos artifícios que consagram a produção estética de um período.Desde os primórdios do modernismo a pintura firmou compromisso com a experimentação.Um artista obcecado e comprometido em fazer bem-feito se coloca em sintonia com os muitos elementos em jogo durante o processo criativo.Isso lhe propicia experiências sempre inusitadas.Nesse ambiente a consciência critica é um fator fundamental para a redefinição do valor objetivo das coisas e um alerta para as distintas formas de recompensa disponíveis nas trocas sociais.Enquanto um artista mantiver como prioridade o compromisso desinteressado em fazer bem feito e seus anseios pessoais forem dimensionados por esse compromisso sua produção manterá vínculos com o sagrado.
-Bem!O sagrado de que fala está mais no domínio filosófico que religioso.E, é bom te lembrar que não podemos elaborar uma critica sobre o presente abrindo mão do mercado.
-É, de fato.Porém, devemos ter em mente que as ações do mercado não devem submeter a liberdade criativa; de outra forma, quando a criatividade é mobilizada sobretudo por sensações provenientes da luta pela sobrevivência ou por desejos de fama e dinheiro os resultado são sempre medíocres.
Richard Sennett www.nyu.edu/fas/Faculty/SennettRichard analisa o fazer bem-feito que esclarece implicações subjetivas da dedicação ao trabalho.Ele o descreve como um compromisso que coloca uma questão mais profunda no que diz respeito à individualidade como processo.Segundo ele:...compromisso significa fechamento, abrindo mão de possibilidades em nome do desejo de se concentrar em uma só coisa.Podemos com isso perder oportunidades. A cultura que vem surgindo exerce sobre os indivíduos uma enorme pressão para que não percam oportunidades. Em vez de fechamento, essa cultura recomenda a entrega-cortar laços para sentir-se livre, especialmente os laços gerados pelo tempo.
Para ele as novas formas de trabalho numa sociedade por demais móvel, como a que hoje vivemos, impede as pessoas de florescerem se dedicando a fazer alguma coisa bem-feito ao longo dos anos e que isso possa enraizar-se na sua experiência como pessoa.
-Com certeza esses sintomas também afetam os artistas e os intelectuais.
-Nada escapa do atual sistema.Além disso, Sennett nos propõe um curioso paradoxo :... tentei mergulhar o mais fundo possível num modo de vida cada vez mais superficial, uma cultura emergente que repudia o esforço e o compromisso corporificados na perícia artesanal.Como as pessoas só podem sentir-se bem ancoradas na vida tentando fazer algo bem-feito só para fazê-lo, o triunfo da superficialidade no trabalho, nas escolas e na política parece-me duvidoso.E é possível que a revolta contra essa cultura debilitada seja a próxima pagina que vamos virar.
-Mergulhar fundo numa cultura superficial.Bom diagnostico da submissão dos fazeres e saberes pela centelha fugaz do mercado.
-Exatamente, o que hoje assistimos é uma dança marcada pelo ritmo da cultura do novo capitalismo.A crescente demanda por coisas vem gerando a derrama de milhares de produtos visuais na sociedade levando alguns pintores a considerar vã a manutenção do ritmo de suas produções num mundo abarrotado de imagens, signos, marcas, logos e informações.A pintura quando esvaziada da experiência se torna uma versão desbotada do que foi ao longo de sua existência. Muitos vêem a pratica pictórica em tempos pós-modernos como um fazer compulsivo que ressurge revigorado a cada nova onda de decoração de interiores. Outros, reticentes, se refugiam no que resta de uma modernidade exaurida. Nesse ínterim se expande o poder do dinheiro e as manobras do mercado de arte ao som do tilintar das moedas e dos ti, ti, tis das feiras e leilões e super eventos que se tornaram lugares plenos de glamour e deslumbramento onde as obras de arte espocam como adereços de um desfile grotesco.As curadorias complementam o panorama desolador do ambiente cultural contemporâneo submetendo a produção artística de uma época, de um artista ou estilo a superficiais compilações.
Adriano DE AQUINO
Extraido de
Vivos & Mortos On Line
Comentarios de Fabio,Marcus,Aristides,Frederico,Rogerio :
A DITADURA DA "ARTE CONTEMPORÂNEA"

A Paisagem depois da Pintura

A pintura é a invenção de uma paisagem com o pretexto de enunciar um modelo de conhecimento, correspondente ao estágio da cultura, e eternizar um sentimento. O pintor se aproxima da paisagem para explorar os limites do olhar, seduzido pela coisa e a possibilidade de inventar uma imagem ou um horizonte, um lugar distante daquilo que entendemos como realidade, capaz de reter a contemplação. De fundo ou cenário para alguma coisa acontecer, a paisagem tornou-se o lugar das satisfações e curiosidades do olhar. Para Rilke: "Ninguém pintou ainda uma paisagem que seja tão completamente paisagem e seja, no entanto, confissão e voz pessoal como esta profundidade que se abre atrás da Mona Lisa”.É preciso se desacostumar de uma forma habitual de ver o mundo, como fez Leonardo da Vinci, e olhar as coisas com uma paixão e uma racionalidade que esfacelam a idéia de uma percepção natural, sem a influência do pensamento. A pintura é a possibilidade de uma idéia ou de um saber sobre a paisagem.
Estamos sempre relacionando tudo que vemos com a nossa carência de olhar, apropriamos das cenas vazias dando-lhes o sentido que nos pareça conveniente, para insinuar uma comunicação sem a interferência do raciocínio; mas o artista quer ir mais longe; enfrenta as aventuras da imagem, olha para dentro das coisas procura no fundo da paisagem, o que não se vê, à distância. A paisagem é meio de conhecimento e não ilustração da realidade, ela pode ser tudo, pode vir do nada, isto é, porque o nada, para o pintor, é a essência de tudo. Quando o céu era uma realidade o olhar do pintor se restringia ao que era determinado pelo sagrado, a geografia onde o homem realizava seu dia a dia encerrava os limites da paisagem.
No Renascimento, o pintor era religiosamente um espectador, um observador do que estava próximo do campo visual, ele desconhecia o outro lado que o olhar não penetrava, porque ele não se misturava às coisas. Reproduzir a aparência das coisas era a essência da arte, contemplava-se o quadro como se estivesse diante de uma janela ou de um espelho.A natureza enquanto paisagem não é uma coisa isolada à espera de uma designação ou de uma determinação por parte do homem, ele é parte dela e quando a percebe desenha os seus contornos para registrar sua aparência, interrogar o visível e criar novas possibilidades de expressão. Com a arte ele compreendeu também sua solidão diante da natureza e a paisagem projetada na tela pode ser produto de suas obsessões.
Cézanne entra em cena. "Não é nem um homem, nem uma maçã, nem uma árvore que Cézanne quer representar; ele serve-se de tudo isso para criar uma coisa pintada que proporciona um som bem interior e se chama imagem" (Kandinsky). Uma imagem inacabada porque o pintor não para de olhar e interrogar o aspecto das coisas que compõem a sua paisagem. A pintura nunca está terminada.Ao transformar a paisagem em pintura o pintor quer revelar a intimidade do mundo. "A pintura moderna do mesmo modo que o pensamento moderno, obriga-nos a admitir uma verdade que não reflita as coisas, sem modelo exterior, sem instrumentos de expressão predestinados e não obstante verdade "(Merleau-Ponty). Uma verdade não reproduzida, mas criada a partir de conceitos. Se na tradição renascentista o pintor era o espectador ideal e racional do mundo, na modernidade, ele se mistura aos seres e às coisas para transformá-los em imagens. O pintor moderno pinta a paisagem cada vez mais de perto, com a intimidade de "voltar às coisas" e alcançar o fundamento do "real".
A paisagem moderna é um buraco problemático de pensar o mundo e o homem está entre o mundo e as coisas como se fosse um exercício de composição. No imaginário do artista, a paisagem não é a analogia daquilo que a história do homem designou realidade. O paisagista Claude Monet com sua percepção inquieta, disseca as aparências e eterniza o instante refletido no seu jardim, pinta a descontinuidade do tempo.
Picasso inventa imagens de múltiplos pontos de vistas, fragmentando a paisagem. Para Mondrian, a paisagem é uma combinação de horizontais e verticais, a depuração da composição. Apropriando-se de imagens e objetos, Duchamp reinventa a paisagem, com o riso e a reflexão. Pollock cria a paisagem americana, no ritmo gestual proporcionado pelo acaso da tinta atirada sobre a superfície da tela. Neste processo contínuo de desnaturalização do olhar, mudam-se a construção e a percepção das imagens.
A paisagem não é a realidade que o sonho não apagou, ela é também construída de sonhos. "Antes de ser um espetáculo consciente, toda paisagem é uma experiência onírica" (Bachelard). Que seja figurativa ou abstrata, espontânea ou racional, ela é objeto do pensamento, é uma realidade semiológica, sujeita portanto, a uma variedade de interpretações coerentes e incoerentes. A paisagem que o artista nos oferece, é um espelho refletindo problemas para o olhar imaginar soluções possíveis, mas não definitivas. A pintura se direcionou para a construção de um objeto plástico autônomo e universal e fez da paisagem um campo enigmático como se ela fosse um lugar de pensamentos secretos.
Almandrade
Artista plástico, poeta e arquiteto.
Imagens;Paul CEZANE
Eduard MANET
JacksonPOLLOCK