- Casemiro é customizado.
-Eu hein!Elvira. Os indivíduos customizam coisas, ferramentas, carros, computadores, roupas e outros apetrechos. Pessoas customizam, não são customizáveis, respondeu Gabriel.
-Engano seu, Gabriel. A aspiração desmedida pelo reconhecimento público customiza as pessoas. O Casemiro é uma prova disso.
-Ta bem, respondeu sorrindo Gabriel. Admito que Casemiro seja um sujeito que mesmo calado clama por atenção. Acho que ele sofre com isso. Repare como ele se comporta nas pausas de uma conversação. É nítida sua aflição em encontrar a palavra certa para retomar a conversa com um assunto mais interessante do que o que foi falado anteriormente.
-Que nada! Não há aflição alguma. Todo o sujeito customizado é bem adaptado ao convívio social. São senhores de uma personalidade aparentemente natural urdida nos modelos de sucesso difundidos pelas colunas sociais e as revistas mais chiques do mundo.
-Ora!Se uma pessoa é natural não é customizada. Isso é uma contradição. Concorda?
-Por favor, Gabriel. Hoje se compra programas de humanização até
-Ah!Ah!Ah! Casemiro é culto. Tem uma biblioteca razoável e uma coleção de arte admirável. Não se acumula tamanho acervo artístico cultural sem o aprimoramento da escolha pessoal e do gosto refinado.
- Gabriel, não provoca. Você vive dizendo que os programas de customização agregam vetores que administram as escolhas e o gosto pessoal. Pra falar a verdade esses são itens da primeira fase do adestramento tecnicista. Quem é que vive dizendo que os dados cadastrais dos indivíduos, seus gostos e escolhas, são atualizados automaticamente? Você já ouviu alguma coisa do Casemiro que não seja uma reprodução, em tons pálidos, das idéias alheias?Pior é que ele as reproduz como se fosse um troço inédito. Isso é típico de um hardware mal dimensionado. E a decoração do apartamento, o carro e as roupas da Dulce, sua mulher? Tudo em variações sutis de beje. Meu Deus! Tudo é beje, levemente esverdeado, acastanhado ou rosado, mas beje. No jantar dessa noite predominou o tom pastel. Dos talheres aos pratos, até a comida, tudo variava ou tendia pro beje. Afora o tomate, aliás, nunca vi um tomate tão vermelho, pareceu-me o único ser vivo da residência. Quando me sentei à mesa o tomate gritou comigo. Sei lá por que. Acho que foi porque a minha retina estava dopada pela cor beje dominante e o contraste do vermelho tomate teve o efeito de uma bofetada. Puxa, imagino o quanto é difícil se orientar no deserto. O predomínio dos tons areia/beje deve levar um sujeito destreinado a alucinações incríveis. Num momento tive a impressão de estar sendo observada por máquinas sensíveis.
A voz metálica de Brutus, o intelectual responsável pela orientação espiritual de Casemiro e sua mulher, me irritava mais ainda. Ele se inspira em dois ícones da modernidade. De um lado os gestos e articulações matreiras de Rasputin em versão fragilizada, de outro, o ar de bom moço, cabelo bem aparado e penteado a lá Yves Montand. O sujeito é uma mistura de apresentador de telejornal e manequim de vitrine, segundo os padrões da moda da intelectualidade francesa do século passado. Sabe como é? Paletó de veludo castor, camisa de padronagem quadriculada em tons pastel, fiel a paleta dos tons terra, beje e areia. Tudo muito arrumadinho para parecer humano, discretamente elegante, sensível e inteligente. O tom da voz dele é desagradável demais. Só ouvidos protegidos por filtros eletrônicos especiais, como da Dulce, conseguem acompanhar a falação prepotente do Brutus. E o homem é venerado por artistas, grã finos e pela elite econômica. Gabriel, para o carro agora! Só em me lembrar da conferencia que participei na universidade católica na qual Brutus foi paparicado como um recém nascido, eu tenho ânsia de vomito.
-Ah!Ah!Ah! Vomitar agora por um enjôo do passado?Essa é boa!Acho que foi a quantidade de espumante que você bebeu. Isso sim!Eu não tomo essa bebida porque ela é beje! Sem querer provocar mais sua ira apenas lembro que o destaque social de Casemiro não é nada beje, é escarlate. Ele mora naquela casa, mas vive, de fato, na mídia. Não há evento de um seleto grupo de artistas, mostras de vanguarda contemporânea, bienais e feiras de arte em que ele não esteja presente. Em todos, lá está ele estampado nas colunas sociais, dando opiniões e falando da qualidade das obras do fulano. O cara se tornou uma referencia para a arte contemporânea. Isso é inegável.
-Engraçadinho! Não sinto ira, apenas enjôo. Saquei sua provocação desde o inicio. Depois da agonia desse jantar você quer rir um pouco. É isso, né? Se precisar de motivos te dou de graça.
-Adoraria!
-Brutus excede em sua discurseira acadêmica. Todavia, sou obrigada a reconhecer que ele opera num território com fronteiras bem demarcadas quando exerce sua influencia de forma objetiva sobre a pobreza intelectual da critica de arte contemporânea. Por isso, tornou-se um deus entre os mortais. Alguns artistas, críticos e curadores mais jovens devotam fé cega em sua autoridade. Uma vez um artista me disse que nunca havia lido suas criticas, mas, esse fato, não o impedia que o admirasse. Convenhamos isso é a prova cabal de uma lavagem cerebral eficiente, seguida de um enxágüe com amaciantes aromáticos. Porém, uma coisa é certa, se não fosse pelo empenho de Brutus, a pintura de Trieste jamais teria o destaque que hoje tem na mídia e nas instituições culturais. Trieste é um gênio tardio? Ora!Ora!Quimeras! Ele não se destacou entre seus contemporâneos porque na ocasião sua obra era medíocre. Deixou de ser? Claro que não!
-Trieste foi customizado por Brutus?
-Sem duvida! Trieste e parte da critica, funcionários da mídia, artistas e algumas pessoas participam desse jogo sem nenhuma consciência disso. É uma espécie de segunda chance, ou melhor, second life em operação no real que arma o cenário para o visitante e aponta o que é bacana e merece ser “vivenciado” pelo publico.Ocorre,entretanto, que os programadores como Brutus estão perdendo terreno diante da fuzarca reinante. Eles ainda conseguem alguns êxitos na mídia e nas editoras de arte. Porém, a mídia está tonta e os editores frustrados, pois, empilham nas livrarias publicações de arte contemporânea que acabam adotando as estantes das lojas como residência permanente. Com isso, os softwares de marketing, que antes se dedicavam apenas a promoção de eventos bolados por curadores, viram uma brecha para substituí-los nas instituições. É a velha astúcia mercantil em estado liquido. Ha uma crise aberta entre os "cientistas da criatividade" - a nova sigla que agrega curadores e promotores de arte e cultura. Há tempos esses cientistas da criatividade vêm buscando um corredor de acesso na blogosfera que lhes permita deslocar os debates culturais do âmbito das redes sociais, onde a maioria dos freqüentadores é constituída de seres humanos autônomos. Fracassaram as incontáveis tentativas de trazer para um domínio virtual especifico o que, na pratica, as pessoas estão trocando voluntariamente nas redes virtuais.
-De tanto tentar talvez um dia acabem acertando.
-Casemiro está excitado com a mais recente empreitada virtual do Museu Guggenheim. Ele considera um exemplo a ser seguido por nossos museus. Casemiro é um soft com a memória carregada de exemplos bem sucedidos. Dias atrás o Guggenheim se filiou a uma iniciativa do YouTube para seleção e exibição de vídeos de arte. Deve ser mais um artifício planejado por um cientista da criatividade. Casemiro deu pulinhos de alegria com esse fato. Oba!Oba! Mais uma novidade. Estou louco pra ir à Nova York e participar desse evento, comentou eufórico com Brutus que não se preocupou nem um pouco em esconder seu fastio. Afinal, Brutus ainda não havia esgotado seu manancial teórico. Todavia, o enfado de Brutus para com os assuntos cibernéticos não impediu que Casemiro falasse maravilhas da iniciativa intitulada Ask Curator e o fabuloso link para o Twitter, a mais nova promoção do famoso museu nova-iorquino que já tem quase 154 mil seguidores. Foi esse comentário que fez Brutus se levantar e começar a se despedir dos convidados. Nesse momento a festa acabou para Casemiro. Seu software entrou em pane.