quinta-feira, setembro 23, 2010

A Clínica da Razão Pura











-Para clínica da razão pura, por favor.

-Kant Strasse, não é? Perguntou o motorista.
-Sim!Kant Strasse. Respondeu Timothy.
-Tomara que o senhor não esteja com pressa. Hoje é a inauguração da Bienal de Königsberg. Para chegarmos a clinica somos obrigados a passar pela Alameda do Idealismo, contornar o Boulevard do Empirismo e pegar um atalho pelo Beco do Juízo Estético. O trânsito por aquelas bandas está caótico.
-Oh! Meu amigo. Não me fale 
em caos. Por favor!
-Perdão! Não era minha intenção aborrecê-lo.
-Não leve a sério. É apenas uma piada. Acabo de sair de uma conferência no museu que por pouco não me levou à loucura.
-Lamento dizer; uma rádio informou  que o engarrafamento ja alcança cento e dois quilômetros de extensão nas cercanias do pavilhão.
-Fazer o que!Lastimou Timothy ajeitando-se na poltrona a fim de enfrentar o demorado trajeto. Enquanto divagava olhava o mar de carros, luzes e anúncios que cintilavam lá fora e se arrependeu de não ter ido mais cedo para clinica,quando ainda era dia. Nesse embalo mental os fluxos do seu organismo se harmonizaram e sobreveio uma súbita sensação de conforto e bem estar. 

Relaxado, estendeu a mão sobre a poltrona e tocou o envelope cheio de publicações que havia recebido antes da palestra de Carlos Sacci. Não se lembrava de todos os folders, catálogos e livros que lhe haviam dado. Abriu o envelope e consultou o espólio. Num flash, veio-lhe à mente a cena  em que Sacci, puxando-lhe pelo braço, o conduziu a uma mesa onde fez uma dedicatória no livro As Vísceras do Divino de Eunuco Hanus, no qual ele escreveu o prefácio. Na ocasião Timothy simulou ler a dedicatória e agradeceu o presente. O engarrafamento é ocasião ideal para ler. Poderia ser um passatempo divertido, pensou.
Após deslizar suavemente a mão sobre a agradável textura da capa do livro, abriu o luxuoso exemplar e tentou decifrar a caligrafia de Sacci. Na terceira tentativa conseguiu ler o que aqui reproduzo: 
Prezado Timothy 
É com orgulho que lhe dedico o livro do mais importante artista visual da America Latina. Sua obra e ideias descortinam [nesse ponto a caligrafia deu lugar a uma linha sinuosa inelegível para mais adiante tornar-se um pouco mais legível] para o patrimônio artístico da humanidade o qual tive a imensa honra de escrever o modesto prefácio. 
Com toda a admiração de Carlos Sacci. 

Timothy abriu o livro e  foi direto ao prefácio:"O experimentalismo revolucionário" por Carlos Sacci. Uma pequena parte da introdução desse prefacio está transcrita abaixo da ilustração








"A vanguarda contemporânea é justamente aquele campo onde se inventa pelo tesão de inventar. Para dar voz e visibilidade ao campo um especialista da contemporaneidade se cala sobre aquilo que é óbvio e se desdobra em falação sobre o que  desconhece. Graças a esses fatores conjuminados, o impulso transformador da criação artística dos nossos dias atingiu seu apogeu. Um apogeu vital para a liberdade criativa e que se consolidou no correr dos últimos trinta anos. Esse prodigioso advento é o resultado da luta sem tréguas para o desmantelamento da critica fundada em princípios e procedimentos rigorosos. É, convenhamos, uma conquista que deve ser creditada, sobretudo, ao empenho de alguns artistas, curadores e agentes culturais comprometidos com a transformação. 
Tempos atrás, grupos remanescentes do modernismo exerciam uma força negativa contra a arte rebelde e transformadora. Naquela ocasião o desejo de transformação era um sonho inatingível e motivo de angustia e sofrimento para um artista dedicado. Foi um período histórico cruel e opressor. Um tempo em que o homem, cativo da ética, viu-se tolhido por procedimentos seletivos e castradores que achincalhavam  o poder transformador da arte experimentalista. 
Um autor, cheio de ideias originais, senhor de grande talento e poder criativo,era cruelmente vetado em uma editora pelo simples fato de sua escrita não atender as regras gramaticais elementares. Isso ocorria com freqüência porque uma casta de doutos prepotentes e preconceituosos definia quem sabia ou não escrever corretamente. Quantas invenções foram negadas ao mundo por puro preconceito e extremo rigor intelectual. 

Hoje, isso não mais existe. Em que período da historia da cultura um curador de museu escreveria o que escrevo há mais de dois anos nos jornais sem que fosse  vigorosamente contestado ou mesmo insidiosamente  escorraçado  por diversos segmentos culturais e pelas editorias dos jornais ? 
Hoje, isso não mais acontece. 
Segundo as antigas regras eu não seria sequer cogitado para integrar o júri do Salão dos Artistas Mirins do Rotary Club. Todavia, desde o descarte dos grilhões da erudição modernista, assistimos a expansão da liberdade, do pensamento estético e do fazer artístico. 
Não mais existem parâmetros repressores. Os novos paradigmas os substituíram a contento. À medida que um determinado paradigma se esgota outro, mais flexível ainda, o substitui. A esplendorosa flexibilização dos critérios estéticos, éticos e culturais permitiu a universalização da experimentação transformadora. É essa transformação que vem fazendo caber no campo da cultura o que antes não cabia. Mesmo contra o desejo dos reacionários e conservadores o mundo atravessa um período de extraordinária transformação. 
A cultura, ao incorporar as variações oriundas da arte experimental, abre fendas no campo fechado da conhecimento, ampliando e transformando, inexoravelmente, em nova cultura. 
Não pensem que o que disse acima é um enigma. O que afirmo é uma verdade. 
A arte enquanto exercício experimental nos faz ver coisas que antes não conseguíamos ver. 
Jean-Luc Godard dizia  que “a cultura é o âmbito da regra, onde somos moldados a agir e a comportar-nos de determinada maneira, onde aprendemos como nos vestir, comportar, comer, participar e como se relacionar com o outro”. 
Todavia, em contraponto à cultura, a arte experimental é o campo da coesão com as balizas do real, é a esfera que se contrapõe ao espaço da contra cultura a fim de atingir a consagração imediata da cultura dominante. Nesse contexto, ser experimental é evitar confrontos, se imiscuindo e camuflando por entre simulacros do real. Para ser coerente com a única regra experimental o autor deve contestar outras regras, de preferência todas as que não sejam a sua. 
Alguns experimentalistas radicais desprezam, inclusive, eventuais regras do seu próprio processo experimental. 
Nas muitas experiências no campo da curadoria multinacional sempre foquei a arte especificamente experimental. Não tenho nenhum interesse na arte que comenta a política e os conflitos. Muito menos àquela que se aprofunda em questões estéticas e insondáveis ou se mete com mistérios complexos da criação. Essas produções são por demais subversivas, não se adéquam a rótulos e,portanto, não se alinham ao meu conceito. No meu juízo, seus autores são prepotentes e se consideram senhores de grande autonomia intelectual e estética. Por isso se lixam para as regras culturais dominantes. São rebeldes demais para serem somente experimentais como gostaria que fossem. O que me interessa na arte é o efeito imediato que ela produz. Isso é que é dinâmico e transformador. Obras que por força de intensa beleza, apuro ou mistério, despertam no público estímulos amplos demais e demandam introjeção e reflexões aprofundadas são nocivas e não possuem o poder de comunicação social imediata. 
Esse tipo de experimentalismo é arcaico, pois ocorre apenas no âmbito do individuo e repercute sutilmente na sua obra. Não são espetaculares, muito menos midiáticas. Em vista disso, apenas pessoas sensíveis as percebe. 
Sendo,portanto,elitista.
É bom lembrar que a eficiência do experimentalismo objetivo se dá através da intima vinculação às demandas dos meios de comunicação de massa. 
Reconheço que existem graves problemas na arte. Porém, dentro dos limites do conhecimento de uma equipe curatorial  economicamente beneficiada,não existe problema que não tenha solução. Cada curador conhece aquilo que a sua história lhe permite conhecer. Se não conhece coisa alguma também não tem a menor importância, dado que o novo é sempre aquilo que se desconhece. Eu sou brasileiro e acabo por não conhecer tão bem a arte indiana ou da Tailândia, dos Estados Unidos, do Canadá, da França, da Alemanha, da Itália, da Inglaterra, do Cazaquistão ou mesmo do Brasil e suas províncias. Todavia, esse dado é irrelevante porque sempre haverá uma troca de interesses comuns entre curadores das mais remotas regiões do planeta. Estou convencido de que é essa abertura que permite a uma Bienal estar sempre em compasso com o estilo artístico global dominante na ocasião. 
É essa dimensão global que os artistas mais importantes da atualidade perceberam antes dos demais. 
Afinal, mesmo sem ter um profundo conhecimento da historia da arte, qualquer individuo sabe que o experimentalismo é o novo.O novo capitalismo está ai para nos confirmar as velozes transformações por que passamos. Essas transformações ocorrem da decisiva atuação do experimentalismo estético em consonância com a agilidade dos financistas internacionais. Esses dois segmentos recusam se submeter a regras limitadoras da ética, da estética e outros princípios arcaicos de pacto social. São eles que lideram as grandes transformações da vida contemporânea. 
Arte pela arte é coisa do passado. 
O experimentalismo pelo experimentalismo é  transformador. 
O hercúleo desafio de tal proposta exige do artista da vanguarda contemporânea, cônscio de sua função social, uma renúncia radical a tudo que não é experimental. 
Apenas uma intensa convicção ideológica pode manter um artista coerente com a prática do experimentalismo. 
Até mesmo nas suas atitudes mais banais da vida cotidiana, na difusão de suas ideias na imprensa e nos salões refrigerados de uma galeria de arte, o artista experimental sempre terá algo inusitado e contundente a dizer contra a hipocrisia cultural. 
É essa singular convicção que torna inócua e desprezível a inflexível critica dos reacionários. 
Eunuco Hanus, é um exemplo vivo dessa nova vertente da arte. 
Além do enorme talento, Eunuco tem características impares que o diferencia da média dos artistas globais. Ter nascido num país da America Latina não tolheu sua grandiosa ambição. Ele é competente na arte e na sua atuação social. Tem grande conhecimento do percurso que um artista contemporâneo deve trilhar para reforçar sua rede de relacionamento instrucional. Além disso, ele é senhor de uma pontaria infalível no que tange as... estratégias de marketing cultural e visibilidade na imprensa. ...Em suas entrevistas é generoso a ponto de se abrir, sem reservas, a comunicação com o público... Sempre atuou e, no auge da fama,... continua atuando na construção de fortes parcerias que lhe acarretam... incontáveis benefícios... Sua arte e seu pensamento exprimem a totalidade do contemporâneo xcmbp, glgo hlçonmb..."

 

-Senhor, senhor! Acorde, chegamos à clinica. 
-Oh Deus! Obrigado!Eu estava velejando num lindo mar azul. 
Na recepção Timothy foi cordialmente atendido. Antes de se encaminhar aos aposentos do SPA A Fusão da Matéria e Sentido, pegou seu surrado moleskine e anotou a frase escrita embaixo do relógio do saguão: 
Lembra-te de esquecer.
Kant