domingo, novembro 05, 2006

BIENAL DO MERCOSUL: Margem ou Via ?




Na seção Fórum de 19/06/2006 o site Arte Cidadania perguntou: Curador pra quê?
Existe liberdade artística num ambiente dominado por curadores e galerias comerciais? O curador tem contribuído para ampliar os horizontes da arte? É possível existir independência no processo curatorial?
http://www.artecidadania.org.br/
Para Angélica de Moraes: O Fórum desta semana coloca questões tão antiguinhas, ultrapassadas... Discutir a validade da presença do curador no circuito artístico é como discutir se, no teatro, deve haver diretor... Mais adiante afirma que: O curador existe onde o circuito de arte amadurece e se profissionaliza... E quanto à liberdade artística, caríssimos, sempre haverá. Ela não depende do curador e sim do artista. Este, em diálogo maduro e adulto com o curador, é que estabelece a melhor situação para exibir seu trabalho em uma mostra. Assim como o bom ator tem um diálogo afinado com o diretor para a peça teatral funcionar.E finaliza dizendo: Simple like that.
É comum pensarmos que a liberdade criativa, ou se preferirem, artística, é de inteira responsabilidade do artista, talvez por isso, esqueçamos de descrever o que entendemos como liberdade artística diante das redefinições intermitentes de conceitos e valores do mundo contemporâneo. Para falar apenas sobre dois aspectos, possivelmente os mais críticos, é bom que tenhamos em mente as transformações produzidas pela cultura da nova economia e o papel da mídia no mundo atual. Muitos podem achar que as mudanças não atingem todas as formas de produção. Nesse caso é inútil argumentar o contrario e certamente a discussão tenderá a se encerrar sobre o manto da intangibilidade criativa frente às forças dominantes que hoje invadem nossas vidas. Não creio que pessoas bem preparadas, que discutem as crises que abalam as artes e o pensamento da atualidade, optem pelos velhos hábitos conservadores, e neguem discutir as transformações que afligem todos os setores produtivos, apenas para preservarem uma visão restrita de liberdade criativa. As coisas não são tão simples quanto parecem. Sobretudo, para aqueles que vêem a descentralização da economia, que a tornou flexível e mais poderosa, e os novos meios tecnológicos, que trouxeram maior mobilidade para a comunicação, como importantes vetores das mudanças que passamos. Por discordar das atitudes que insistem em fechar as discussões antes mesmo de abri-las, considero fundamental revermos o conceito de liberdade e quem dela se beneficia.
Para o modernismo a liberdade era um valor imprescindível do projeto de transformação cultural e social que ambicionavam. As lutas políticas pela liberdade de expressão, os vínculos com ideologias supostamente libertarias, os confrontos entre o novo e a tradição, o emergente e o consagrado, a abertura para novas formas de percepção,etc... refletiam estratégicas que visavam, entre outras coisas, ampliar os domínios da liberdade criativa e conceder maior autonomia para a arte. Não obstante, o abandono do regime estético da modernidade, que hoje vivenciamos, surpreendeu muitos artistas que viam o modernismo como um processo sem fim. Uma síntese da critica aos modernistas, feita por artistas da atualidade, os aponta como detentores de um elevado grau de autoritarismo e responsáveis por uma ânsia pelo novo que se espalhou pelas atividades artisticas do seculo passado, sublinhada por Otavio Paz como a tradição do novo. Além disso, ironizam suas decepções frente à arte dos tempos atuais. Jacques Rancière identifica na conjuntura artística contemporânea uma critica aberta e acida aos postulados modernistas e aos artistas surpreendidos pelo abandono, como vitimas da traição do novo.
Ao se desvencilharem das regras estéticas muitos artistas contemporâneos se distanciaram dos valores concernentes à modernidade. Isso os dispensou das referencias diretas com o modernismo, como vinculação estética às causas sociais, busca por significados etc... o que os levou a conjeturarem ter conquistado um elevado grau de liberdade criativa. De fato poucos artistas parecem hoje preocupados com esse assunto. Afinal, explica-se, pois a liberdade é mais estimada quando sentimos, objetivamente, o poder da opressão. Ocorre, entretanto, que os tempos pós-modernos operam com outra lógica. Nele, as formas de atuação do mercado e do Estado encontram-se diante de novo paradigma, coisa que boa parte das pessoas informadas conhecem e que seria longo descrever. Podemos apenas sugerir que a complexidade dos sistemas atuais e a intricada rede de produtos e serviços, reais e virtuais, redimensionaram os desafios e as perspectivas de crescimento econômico, desenvolvimento cultural e social, impondo funções menos centralizadoras para o estado. A diversidade estética, os vários canais de comunicação e informação e uma liberalidade sem precedentes, levaram muitas pessoas a acreditarem estar vivendo numa época de autodeliberação individual e prosperidade. Ainda que muitos pensadores alertem que a atual situação é resultante da fragmentação dos tradicionais centros de poder, de conseqüências ainda imprevisíveis. Mesmo diante disso muitos indivíduos insistem em olhar a realidade atual apenas sobre o foco dos restritos campos de suas atividades pessoais e onde, é claro, os negócios prosperaram. Nos domínios da arte as coisas não foram diferentes.
As lutas da modernidade por um futuro onde prevaleceria uma crescente autonomia da arte, contato direto entre arte e publico, plena liberdade criativa, por que não dizer, enriquecimento do circuito de arte, hoje, frustram mais que entusiasmam quando constatamos, por exemplo, que os resultados mais aparentes do boom do mercado de arte tornaram secundarias as questões estéticas, esvaziaram de significado as transgressões artísticas, prestigiando as marcas dos indicadores econômicos, onde o preço de um determinado artista choca apenas as pessoas que ainda preservam critérios estéticos. Sintomaticamente, vimos consolidar a figura do curador nas raias da criatividade, em detrimento de suas funções técnicas especificas. Por essas e outras razões faz sentido o site Arte Cidadania perguntar: Num ambiente dominado por curadores e galerias comerciais, existe liberdade artística? Leri Farias Jr pensa que: Vivemos tempos curiosos, onde em nome do mercado, assistimos apáticos a uma inversão de valores de proporções inestimáveis...A liberdade de criação continua existindo, mas a da difusão da obra criada, nem tanto. De fato, o que dizer de um tempo que propaga a idéia de diversidade, despreza critérios estéticos, estimula a ampliação das formas de percepção, redefine as fronteiras nacionais da arte, porém, preserva a tutela nas mãos de alguns poucos especialistas, que movidos pelo afeto, gosto ou admiração, e, é claro, negócio, abrem e fecham o gargalo por onde escoará a produção, asfixiando no berço, a maior parte da criação artística contemporânea. Não seria essa uma forma silenciosa, sutil e elegante de controlar, suprimir, enfim castrar a liberdade?
Tempos atrás o Fórum Permanente de Museus realizou discussão sobre o tema: O Curador e a Instituição de Arte.
Naquela ocasião o teórico José Teixeira Coelho disse que: o curador é um crítico diplomático, pois ele faz uma seleção dentre as obras e as justifica, calando-se sobre as obras que ficaram de fora. Teixeira afirmou também que: as curadorias se fazem hoje, na maioria das vezes, no limbo das questões não feitas, que para ele seriam fundamentais. Ainda, segundo ele: o crítico, tem mais condições de trabalhar as questões mais sensíveis da obra. Entretanto, o paradigma que se tem para o crítico é o mesmo do curador, ou seja, o da falta de questionamento.
Hoje constatamos que a visão pragmática dos comerciantes e o olhar discricionário dos curadores são camadas que se sobrepõe e submetem uma parte considerável da produção estética, excluem, dificultam e confundem, a partir do pressuposto de que ampliam as oportunidades para os artistas, facilitam o entendimento do publico e o acesso aos apreciadores de arte. Além disso, a ausência de questionamentos - visto que os curadores não perguntam, apenas respondem - refletem somente suas visões sobre a arte da atualidade e eficiência executiva, que podem ser respondidas de forma mais objetiva e menos seletiva, pelos técnicos do marketing cultural. Considerando, que Antonio Albino Canelas Rubim, no seu ensaio intitulado Dos Sentidos do Marketing Cultural nos alerta ... Em terras brasileiras marketing quase passou a significar “promover visibilidade”.
Nada nos impede de pensar o mesmo sobre as curadorias que se esmeram em dar visibilidade a suas próprias idéias. No meu entender esse foi o propósito de Gabriel Pérez-Barreiro, curador da 6ª Bienal do Mercosul - que elegeu o tema, segundo ele, inspirado num conto de Guimarães Rosa A Terceira Margem do Rio - para edição dessa 6ª Bienal do Mercosul.
Numa entrevista que deu para a Folha de São Paulo podemos ler :...Questionado sobre as formas pelas quais as trajetórias em exposições monográficas relacionam-se com a metáfora da terceira margem do rio, o curador-geral respondeu: "Todos (os artistas) foram escolhidos por representar o conceito da terceira margem; a possibilidade de criar uma terceira realidade entre duas percepções opostas. No caso de Matto, é a união entre arte antiga e contemporânea (?!), no de Fahlström, é a relação entre a política e o Pop (?!) e, no de Macchi, o encontro da arte conceitual e da emoção(?!) que geram as alternativas".(?!)
No trecho supra citado o curador nos afirma que os artistas da mostra foram escolhidos por representar o conceito da terceira margem, ele só não informou quem escolheu esse conceito para ser o tema da mostra. Diante dessa lacuna é impossível identificar um diálogo maduro e adulto entre artistas e curador do qual fala Angélica de Moraes, capaz de beneficiar a mostra e ampliar os horizontes da arte. A citação de Gabriel Pérez-Barreiro é no mínimo desnecessária para os artistas que sabem que a natureza da obra de arte é estar sempre, permanentemente, numa... espécie de entrelugar... embora isso não os torne difusores de códigos numéricos de realidades, sabem que centrados em suas propostas estéticas e...sondando o ir e vir da canoa, que sobrenada o rio margeado, aqui, inevitável e paradoxalmente, por três margens.Para entrar no rio será preciso, além do remo e da canoa, certa coragem e silêncio contemplativo, porque, deixada a terra, a escuta é dirigida para a voz e os ruídos de dentro. O que é possível fazer sentado dentro de uma canoa, exposto a todas as intempéries do tempo, senão escutar?Iolanda Cristina dos Santos in: MEMÓRIA E CONTEMPLAÇÃO EM A TERCEIRA MARGEM DO RIO -
http://www.letras.ufrj.br/ciencialit/encontro/IOLANDA%20CRISTINA%20DOS%20SANTOS%20-%20MEM%D3RIA%20E%20CONTEMPLA%C7%C3O%20EM%20A%20T.doc
Em outro trecho da entrevista para FSP Gabriel Pérez-Barreiro diz:... a possibilidade de a cultura criar um terceiro espaço onde antes parecia haver dois, ou seja, a imagem tomada do conto de Guimarães Rosa seria a de um lugar independente, a partir do qual o sujeito pode romper binômios limitadores de sua realidade, como o da oposição direita e esquerda.
Essas declarações nos incitam a estabelecer paralelos mais sólidos entre as intenções do curador com a teoria política do primeiro-ministro Tony Blair que com o conto de Guimarães Rosa, visto que a obviedade dos seus propósitos deslocou a Terceira Margem do Rio para um lugar independente (?) ou melhor, uma Via. E, como num passe de mágica, ensaiou reduzir o titulo do conto à categoria de slogan publicitário ao desprezar a intensidade dramatica de uma narrativa que penetra ...o mistério [que] não é para ser desvelado, senão como gerador de outros mistérios. in. Iolanda Cristina dos Santos/acima citado.
Por outro lado, esse equívoco nos permite entrever suas intenções de atuar, objetivamente, na fronteira política entre arte e publico e reflete aspetos da teoria da Terceira Via de Anthony Giddens, diretor da prestigiada London School of Economics e, segundo alguns, mentor intelectual do primeiro ministro Blair. Giddens, após seu livro Para Além da Esquerda e da Direita, publicou A Terceira Via. Curiosamente, Pérez – Barreiro, em sua entrevista ao jornal FSP colocou, na ordem inversa, os temas centrais dos dois mais celebres livros de Giddens. Coincidências? Ou apenas semelhanças com as definições, vagas e imprecisas, de um novo modelo político - terceira via – um mix de fundamentos da práxis marxista , liberalismo(neo) e mercado a ser experimentado em sociedades democráticas. Muitas criticas já foram feitas sobre os aspectos econômicos dessa proposta e muitos cientistas políticos questionam sua implantação no setor publico pelo mundo afora, outros, a podem utilizar como tema para gerenciar atividades no setor artístico cultural, que sabemos, sofre irresistível atração por teorias calcadas em utopias políticas. As citações de Pérez se encaixam, primorosas, como respostas as duas perguntas do Fórum do Arte Cidadania. O curador tem contribuído para ampliar os horizontes da arte? É possível existir independência no processo curatorial? O curador Gabriel Pérez-Barreiro não é o primeiro e, lamentavelmente, não será o ultimo a deixar essas questões vagando no espaço, até se diluírem no ar.
Adriano de Aquino
novembro de 2006