segunda-feira, novembro 27, 2006

Individualismo e estética

Adriano de Aquino - 2006

O triunfo do individualismo, o desenraizamento das sociedades multirraciais e multiculturais, a flexibilidade das operações financeiras, além de outros fatores afetados pela atual conjuntura global vem produzindo mudanças significativas em nossas vidas. Em seu livro Carne e Pedra, Richard Sennett nos expõe aspectos fundamentais da formação das cidades no correr do tempo e as diversas razões que levaram ao aparecimento do que hoje entendemos como cultura urbana, observadas através da experiência corporal. No último capítulo, intitulado Individualismo Urbano ele cita um trecho do segundo volume de Democracia na América, onde Tocqueville se refere ao século XIX como a Idade do Individualismo. Para Sennett o auto-respeito é... um aspecto positivo dessa doutrina. Contudo, segundo ele,Tocqueville tomou-a sobre um ângulo melancólico, atribuindo-lhe uma espécie de solidão cívica. O pensador francês viu uma América onde... cada pessoa age como se fosse estranha a sorte dos demais ... Nas transações que estabelece, mistura-se aos seus concidadãos, mas não os vê; toca-os, mas não os sente; existe apenas em si mesmo e somente para si mesmo. Assim sua mente guarda um senso familiar, não um senso social.
Para o autor de Carne e Pedra, Tocqueville falava da ... coexistência das pessoas voltadas para dentro de si tolerando-se umas às outras por mútua indiferença. Curiosamente, foram nas sociedades onde o individualismo proliferou e se consolidou fortemente que ocorreram as mais significativas mudanças socioculturais, forjadas pelas lutas em prol da integração das étnias, a valorização da mulher, a extensão de benefícios às faixas etárias mais avançadas e a redefinição de status das classes sociais menos favorecidas. Todavia , essas transformações foram insuficientes para estimar a vida como um valor absoluto e redefinir o significado de liberdade. Pelo contrario, o valor da vida está sendo rebaixado dia a dia e a liberdade tornou-se uma citação desprovida de significado.
Contradições dessa natureza aumentam as incertezas, alastram a sensação de insegurança e redimensionam a indiferença frente aos novos conceitos, modalidades produtivas e aos produtos de toda ordem.
Nas artes plásticas, tais mudanças são manifestadas pela rejeição, por parte dos artistas, dos critérios estéticos disseminados na modernidade. Outro aspecto importante, segundo alguns críticos da atualidade, diz respeito ao público diante da obra de arte. Para eles o espectador frente aos mais variados objetos estéticos da contemporaneidade manifesta uma anuência cordata, algo próxima de um reação enfadonha diante do banal. Muitos observadores identificam essas reações como uma indiferença do público pela diversidade estética contemporânea. Diante desses comentários a multiplicidade estética, hoje predominante, se tornou a principal responsável pelo espetáculo das megas exposições, vistas como parques de diversões artísticas. Uma espécie de fenômeno circense das artes.
Discordo de tais argumentos porque entendo que a diversidade estética não é, em si, um motivo para o desestimulo do público freqüentador das exposições de arte. Pelo contrario, admito que o individualismo triunfante encoraje grande parte dos artistas contemporâneos a se manifestarem de forma peculiar, quer dizer, circunscrita a visão de mundo do autor em detrimento das regras estéticas pré-estabelecidas. É, portanto, compreensível que a resposta do público a essas experiências ocorra através da troca fundada numa espécie de livre-arbítrio interpretativo. As manifestações do publico atual são em tudo diferentes das proporcionadas pela visão especializada dos frequentadores habituais do circuito da arte que reconhecem os códigos inscritos na obra e interagem com ela conforme os ditames oferecidos pelo autor. As considerações de Sennett sobre o auto - respeito podem ser aplicadas, no caso das trocas entre arte e publico, como aspectos positivos da doutrina individualista.
Contudo, os ramos intermediários entre arte e publico (curadorias,marketing,mercado) se misturam com os produtos artísticos, e, como diria Tocqueville:...mistura-se aos seus concidadãos, mas não os vê; toca-os, mas não os sente; existe apenas em si mesmo e somente para si mesmo. Os efeitos desses procedimentos podem ser percebidos nas mega exposições de arte que rolam pelo mundo afora. Já falei muito sobre isso em posts anteriores.
A manipulação do sistema de arte por interesses diversos, vem relegando as diferenças estéticas da atualidade a uma espécie de limbo individualista melancólico, fechado em si, e responsável pela mesmice, o fastio e a indiferença que muitos visitantes criticam nas grandes mostras. Muitos crêem que os artistas são os principais responsáveis por essa situação. Esse equívoco vem nutrindo um bando de impostores abrigados em trincheiras conservadoras e por uma espécie de tradição para uso próprio. Esses personagens lúgubres rivalizam com artistas dedicados e achincalham obras modernas e contemporâneas notáveis, baseados em preconceitos anacrônicos e palavreado pseudo – poético. No fundo estão, como, aliás, sempre estiveram querendo apenas vender mais livros inúteis. Ocorre, entretanto, que os panfletos que produzem somados as ações espetaculares dos curadores e seus temas sufocantes, apesar de expressarem posições antagônicas, denotam certo desprezo pelas diferenças e pela autonomia da arte de nossos dias.
Sob essa ótica o mundo artístico ficou mais miserável. Uma miséria em tudo diferente daquela produzida pelo abandono, pela falta de cuidados e pela escassez de alimentos que matam as pessoas de fome. Nesse ambiente proliferam os produtos e a fome é apenas uma sensação passageira. Tal miséria resulta da proliferação dos poderes de intermediação sobre os objetos, coisas e gestos estéticos que, manipulados por interesses difusos, induzem o espectador ao esgotamento e restringem a experiência com a arte.
Vivemos um tempo crítico. O colapso dos modelos expositivos adotados pelas megas exposições de arte e as muitas estratégias de um mercado de arte avído por exitos financeiros produziram um curioso paradoxo: ou continuamos produzindo objetos, coisas e gestos artísticos para suprir a demanda pautada pelas agendas institucionais e pelo mercado, ou assumimos a recusa em dar-lhes corpo. Falo de uma recusa eficiente que evite, inclusive, contestar, destruir ou banalizar objetos estéticos como uma forma de ação comprometida com alguma verdade da arte.
Falo de uma recusa que produza uma sensação que se confunde com a liberdade. Ainda que tal atitude, decidida com firmeza, se torne, apenas, mais uma referência à História da Arte.



imagem:
Kendell Geers

8ªBienal Internacional de Estambul
montagem com fotos de Filipa César de rostros incrédulos de pessoas que olham para o quadro de informações da estação Bahnhof Zoo en Berlín