quinta-feira, junho 04, 2009

Santa Paciencia


Veneza dá início a Bienal mais "magra"

Esse é o título da matéria publicada hoje na Folha de São Paulo
Faz sentido! No mundo dominado pela cultura dietética e torturado pela estética esquelética, "ficar mais magra" é sinal de conformidade aos padrões da atualidade. É uma mentira, sabemos, mas, tem gente que acredita.
"O título é "Fazer Mundos" no maior número possível de línguas", explica curador da Bienal, que começa hoje para convidados
A Bienal de Veneza, mais tradicional exposição de artes do mundo, chega à sua 53ª edição mais "enxuta”, diz o jornalista. Acho que deve estar vestindo um modelinho adequado aos novos tempos.
Não sei onde nasce a pretensão de achar que num mundo conturbado por enormes transformações que atinge a grande mídia, a economia e afeta a vida de milhões de pessoas uma Bienal "mais magrinha" possa renovar um modelo antiquado de exposição de arte tipo Bienal. Para muitos artistas esse "modelinho" já esta pra la de ultrapassado, não da mais conta da enorme diversidade e mobilidade da produção artística da atualidade.
Adriano de Aquino

Adriano, meu caro,
Hoje a sua indignação permitiu a ironia e verifiquei como você é um bom polemista. É uma espada afiada.
Falam coisas mirabolantes sobre bienais, salões, museus. Tive há uma semana uma conversa com um conselheiro da bienal. Ele ficou pasmo com a minha simplicidade camponesa: eu disse que todos os problemas se devem ao afastamento destas entidades do fenômeno arte. Uma coisa é a responsabilidade financeira, vergonhosamente recusada pelas prefeituras, estados e união. Outra coisa é a essência: estes locais devem expor arte. Idéias sobre comunicação, relação arte e público, a crítica e a educação do burguês, o sofrimento dos filhos paralíticos de motoristas de veículos coletivos, a sobrevivência ou não da mídia impressa, a inclusão da minoria armênia, a gravidez precoce das meninas da periferia urbana, são questões realmente importantes e devem ser discutidas em simpósios, no congresso nacional, ser tese universitária , objeto de comunicação à UNESCO e, quem sabe, devem receber até a opinião dos doutos Sarney e lula. No espaço bienalesco propriamente dito, nos espaços museológicos, nos centros culturais, devemos ter a humildade de acreditar na arte e na sua capacidade de ampliar a nossa consciência e expor a obra dos artistas. Não é necessário fazer exposições gigantescas. Basta escolher alguns artistas, todos referendados pelo passado, pela obra já construída (este critério é uma das bases), e mostrar a sua produção dos últimos anos. Aos muitos jovens, mesmo aos que são apontados com tanta ligeireza como gênios, devemos reservar espaços institucionais, universitários, etc.. O resto é com o mundo.
Um abraço forte deste camponês que vos fala,
Jacob Klintowitz


Caro amigo
Seus comentários são estímulos ao pensamento. Abrem portas no corredor estreito onde o transito das idéias é prejudicado pela aglomeração de poderes, desejos, aspirações e ambições conflitantes. Minha ironia, no “curto e grosso” comentário para a matéria da Folha é filha de impaciência. A impaciência é como uma filha adolescente, rebelde e mal educada. Sou um péssimo educador. Mal consigo conviver com minha própria má criação. Após a leitura de seu comentário, recobrada a serenidade, é bom que ela prevaleça, lembrei que desde o inicio dos diálogos de blog sobre a Bienal de Veneza trilhei uma passagem que me levasse ao interior do sistema de exibição de arte. É bom dizer que os assuntos relativos aos modelos de exibição de arte, as artimanhas do mercado e do mundo da mídia, as transas curatoriais e as politicagens protecionistas de grupos gestores não são assuntos que me encantam. Ao contrario, me entediam. Não existe substancia nutritiva nesse ambiente amorfo. Porém, ainda não atingi a perfeição de poder viver sem desembainhar a espada e colocá-la a serviço de uma boa causa. Amigos dizem que a causa é a própria arte. Contesto veementemente essa idéia, pois a considero a seiva mais nutritiva dos usurpadores. Temo as grandes idéias sobre arte com o mesmo rigor com que me previno contra as grandes idéias sobre a vida. A historia comprova o gigantesco poder das grandes idéias em exterminar as diferenças.
Portanto, retornando ao inicio do dialogo, tentarei justificar porque tomei um trecho do livro de Alloway sobre a Bienal de Veneza escrito há algum tempo atrás. Nesse livro o autor coloca a “diversidade extrema” que hoje admitimos como território consensual da arte contemporânea, no centro da discussão. Falar isso hoje soa como lugar comum, contudo, até a Bienal de 1968 não era. Alloway diz que “a diversidade extrema da Bienal, sobretudo, as mudanças estéticas dos trabalhos exibidos colocaram em questão o conceito do trabalho de arte como símbolo permanente”. Nesse contexto, não só os artistas, mas, os críticos e gestores institucionais - não existiam os curadores na concepção que hoje conhecemos - foram artífices de um novo modelo de exibição de arte que revolucionou as formas de mostragem e estabeleceu novos paradigmas para a arte e para própria instituição Bienal. Esse conjunto de fatores não surgiu por acaso foi fruto de muito esforço, trabalho e inteligência de todos componentes em jogo. A permanência desse modelo por longo período acabou por estagnar o sistema dando inicio a decadência e a agonia de um modelo outrora bem sucedido. Muitos pensam que isso ocorre por força das características estéticas das obras contemporâneas. Ledo engano, a crise das instituições de arte é fruto do descompasso entre produção, critica e a concepção dos modelos expositivos. Confundi-la com uma crise ou “vazio” da arte é um grande engano.
Em resumo: a usura, a ambição, a vaidade excessiva, os artifícios do mercado, o capitalismo “selvagem” etc. são, sem duvida, fatores de considerável importância, porém, não são o foco das questões artísticas fundamentais pelo fato de não o serem para a própria existência humana. São fatores importantes, falam muito do tipo de sociedade que vivemos, mas, não servem como matéria de reflexão sobre nossa própria existência como individuo. Quando vamos a uma exposição de arte a ultima coisa que perguntamos é como esses fatores incidem em nossa percepção da arte. Nós apenas percebemos, avaliamos e interagimos. A vida, por mais tecnologia que se coloque no nosso dia a dia, é coberta por um manto de mistério, por que a arte seria diferente dela?
Adriano
Meu caro Adriano,
Magnífica a tua resposta. Não respondi imediatamente porque faria uma conferência no dia 6 e precisava pensar sobre ela. O que foi ótimo, pois me possibilitou reler o que escrevestes. Tenho para mim que você deveria transformar num artigo e enviar para as pessoas. Já está quase pronto.
O reconhecimento da diversidade é uma conquista européia sobre o euro-centrismo. Não é de hoje, pois a alteridade que permitiu o reconhecimento de civilizações antigas ou coevas, mas diferentes, como detentoras de um corpo de saber válido, data do início do século XX. É um avanço permanente. E sabemos, nós dois, a imensa influência que a arte africana, australiana e pré-colombiana teve na formação do modernismo europeu. Você coloca a questão muito bem.
Entretanto, Adriano, eu me pergunto sobre a arte como eternidade/universalidade na medida em que ela formaliza essências modelares. A teoria dos arquétipos é fundada nesta questão. E é um produto do século XX oriundo do plano das idéias perfeitas, de Platão. Os modelos perfeitos é a concepção do universo divino, parece-me. A concepção de um universo espiritual, certamente confere um papel importante para a arte. Sei bem que não é o seu caso, mas a idéia da diversidade e de sua validade, de sua equivalência, levou, na vida universitária americana, ao absurdo de equivaler um poeta qualquer africano à Shakespeare... Desde muito cedo estive habituado à idéia da diversidade. Primeiro, porque eu sou diverso... depois, pela fascinação que as antigamente chamadas artes primitivas – hoje, artes primeiras - exerciam sobre mim. Nunca vi a diferença essencial entre uma certa escultura pré-colombina de uma mulher parindo (está num museu especializado em Washington) e o melhor do Picasso. Eu simplesmente alargava a minha concepção do que era arte, sem perder a fascinação ou deixar de considerá-la uma manifestação do mais elevado do ser humano. Nunca senti qualquer frisson pela concepção da arte como manifestação da super-estrutura ou derivada de determinadas condições sócio-econômicas.
Eu também acho que a arte não está em crise e não é a crise. A crise está no que acreditamos ser a arte e as formas expositivas.
Fico com receio destas comunicações rápidas. Há tanto a dizer, tantos meios-tons, tantas sombras, e eu digo estas coisas apressadas. Conto com a sua benevolência
Jacob Klintowitz
Caro Jacob
Inevitável não ir adiante depois de ler seu comentário. Concordo que esse espaço "virtual" inibe as nuances mais sutis do pensamento. Todavia, a crueza dos fatos e a dimensão das calamidades que deságuam no campo da arte todos os dias nos pedem abordagens criticas urgentes sobre as ocorrências da arte na atualidade. Concordo totalmente com sua colocação: "a idéia da diversidade e de sua validade, de sua equivalência, levou, na vida universitária americana, ao absurdo de equivaler um poeta qualquer africano a Shakespeare". Cristalino!Acertou na mosca! Em uma palestra realizada em dezembro de 2007, publicada na integra no HiperBlog, identifiquei o mesmo artifício "acadêmico",tão bem descrito por você, como um dos vetores da crise do pensamento critico na atualidade.A idéia é que:"A subsistência de um pensamento desconstrucionista que, tendo solapado de dentro para fora a tradição racionalista da filosofia ocidental e deixado a modernidade sem uma base filosófica profunda para suas crenças e instituições,vem impedindo que apareçam novas respostas ao relativismo contemporâneo".Compartilho dessa sintese de Fukuyama sobre a crise da atualidade.Ao testemunhar a profussão de produções estéticas concebidas como um simulacro de "tese acadêmica" esse entendimento se fortalece.Tal artificio confirma que as propostas estéticas supostamente "revolucionarias" são, de fato, calcadas num sistema hierarquico "academico" bastante convencional.
Uma grave contradição despiu grande parte das iniciativas artisticas contemporaneas de qualquer intenção critica, revelando o quanto a produção vem gradativamente se submetendo a modelos suscetiveis de serem manipuladas por interesses difusos.
Num trecho do livro O Dilema Americano Francis Fukuyama ataca frontalmente o problema,por isso relaciono a analise do pensador americano a crise do momento.É muito claro que a paralisia em relação a crise que vivemos ocorre,em parte,pela continuidade de um modelo dominante. Fukuyama enfatiza um trecho do livro de Allan Bloom intitulado The Closing of the American Mind que toca no centro desse problema. Nas palavras dele, Allan Bloom "relaciona de forma brilhante o Rectoratsrede de Heidegger com a crise contemporânea da universidade americana, bem como com sexo, drogas, musica e outras tendências da cultura popular". Este livro toca no nervo exposto da crise ao identificar um problema real (assim como voce o identificou). O problema reside na longa regência do relativismo cultural. Essa permanência tornou possível a difusão e a expansão da crença de que a "razão é incapaz de se erguer acima dos horizontes herdados pelas pessoas".O que,convenhamos,revela o poder de um determinismo sufocante,submetendo todos a ideia de que a realidade é imutavel.Tal fenômeno acabou por se tornar um dogma da contemporaneidade. “Na “verdade, essa ideia ganhou tal repercussão que passou a fazer parte da vida intelectual contemporânea.” Foi legitimada, em um nível elevado por pensadores sérios como Nietzsche e Heidegger, transmitida por modismos intelectuais como o pós – modernismo e o desconstrucionismo e traduzida na pratica pela antropologia cultural e por outras partes da academia contemporânea”. Alguns artistas da atualidade adotaram a ideia como modelo se sujeitando a produzir coisas a partir dessa dissimulada doutrina.Os modelos expositivos tipo Bienal e outras megas mostras de arte foram levados nessa onda e acabaram por se colocar na posição de presa fácil dos aventureiros gestados nos bancos das academias.As boas praticas da critica de arte foram,gradativamente,sendo excluídas dos centros de discussão sobre a produção contemporânea.Tal feito acabou por detonar a parceria mais produtiva que os artistas tinham com as idéias e a reflexão critica mais férteis fundamentadas na experiencia impar da criação e do fazer artístico.
Abraço
Adriano