domingo, fevereiro 28, 2010

A partilha do sensível*


Adriano de Aquino

Venho, há algum tempo, rebatendo a pratica de alguns autores de ensaios sobre a produção estética da atualidade. As recorrentes citações de trechos do pensamento de importantes intelectuais ligados ao modernismo me mobilizam. No Brasil, essa é uma pratica corrente. A maioria nem ao menos se esmera em tecer considerações mais profundas sobre os aspectos das citações utilizadas. Apenas as adéquam a qualquer obra que elogiam. Em geral as transcrevem na forma em que se apresentam. Essas considerações não se dirigem aos pesquisadores sérios que investigam as idéias de notáveis pensadores do passado. Elas permanecem tão importantes quanto necessárias É bom deixar claro que admiro inúmeros pensadores do modernismo. Suas idéias foram e são ainda fundamentais para o entendimento de um período histórico que deu enorme contribuição ao pensamento e resultou em avanços consideráveis no campo do conhecimento, do fazer e da percepção da arte. Consolidaram-se no tempo as férteis leituras das obras de ilustres pensadores, dando margem, inclusive, a uma série de analises sobre as obras e as idéias mais influentes no período que se comprime entre as ultimas três décadas do século XIX até os anos 60/70 do século XX.
Também é compreensível que artistas e pensadores vinculados à década de 60/70 ainda tenham um embate produtivo com a matriz modernista e seus desdobramentos. Contudo, não é compreensível que autores atuais insistam em reprisar sem um acréscimo, as idéias de alguns pensadores da escola de Frankfurt, por exemplo. Nesses casos o que me parece claro é o objetivo de cobrir teoricamente a produção estética contemporânea com algo alheio a ela, porém, de qualidade inquestionável. Isso me parece um disparate. Varias razões me levam a supor que esse procedimento tem uma intenção estratégica fundada em equívocos fatais. Um dos mais evidentes se encaixa no que chamo de apoplexia funcional.
Não precisa ser um gênio para ver que as relações entre estética e política, nos últimos trinta anos, são em tudo diferentes dos litígios e dos recursos disponíveis no modernismo. Acho desnecessário explicitá-los.
A autonomia da arte e a rejeição desse axioma eram dois focos do discurso da modernidade e integravam o mesmo processo histórico. Esse embate se apresentava para os artistas do período como uma questão original e muito importante. Todavia, para os artistas da atualidade, essas premissas não encontram eco.Ainda que os pensadores mais importantes da modernidade tocassem em outros aspectos igualmente importantes da arte, as questões relativas à autonomia ou a vinculação da criação artística ao meio sociocultural e às ideologias políticas, eram foco constante de suas preocupações. Walter Benjamim, o pensador mais citado em textos sobre arte contemporânea, adentrou esse campo. Suas teses tangenciam aspectos dessa autonomia. Escritas há 74 anos evidenciam feitos multiplicadores do fazer artístico ao mesmo tempo em que afirmam que “as massas adquirem visibilidade graças à aparição das chamadas artes mecânicas – respectivamente a fotografia e o cinema”. É licito entender nessa afirmação uma assertiva de cunho social transformador o que torna compreensível, décadas depois, a pontificação de Joseph Beyus: "Todo mundo é um artista."

Não podemos desprezar o fato de que Beyus foi consagrado na segunda metade do século XX.Suas interjeições dialogavam com a própria modernidade. Hoje, entretanto, seria ridículo repeti-la. Não teria nenhum efeito sobre a produção estética ou mesmo sobre o publico de arte.
Bem, apesar disso, os escritos sobre arte contemporânea continuam citando trechos de Walter Benjamim como se fossem profecias cumpridas, edificadas e visíveis nas obras da atualidade.
Será implicância não enxergar paralelos concretos entre a produção contemporânea e o pensamento de Benjamim?
Ou, as apropriações indébitas se servem da grandeza alheia somente para permear suas vazias explanações?
Qualquer resposta só disfarçaria a intenção.
Um olhar atento ao interior dessa pratica revela o intuito de reduzir a noção de modernidade.
Uma pena! Nessa estratégia todos perdem. Perde um grande pensador, o amante de arte e o leitor interessado.
Todavia, há alguns anos, pensadores sérios vêm trabalhando intensamente sobre a transição cultural que se impõem no tempo presente.Jacques Rancière (n. 1940, Argélia) é um deles. Professor Emérito de Estética e Política na Universidade de Paris VIII é um pensador dedicado ao estudo do nosso tempo. Num trecho do seu livro A partilha do sensível* ele dispõe suas idéias sobre uma arte que “afirma a pura potência de arte explorando os poderes próprios do seu médium específico”. Mais além ele aponta o discurso sectário da utopia pós-moderna que intenta diluir a arte na vida.
No capitulo intitulado "Das artes mecânicas e da promoção estética dos anônimos" Rancière estabelece paralelos com o clássico ensaio de Walter Benjamin “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”. Contudo, evidencia uma contraversão sobre certos termos da tese benjaminiana.

Poderia dizer que se trata de uma critica contundente à famosa tese de Walter Benjamim. Nesse intento Rancière acrescenta algo ao que antes havia nas analises sobre as idéias de Benjamin que falam do assombro que as novas técnicas geraram na modernidade: “as massas adquirem visibilidade graças à aparição das chamadas artes mecânicas, respectivamente a fotografia e o cinema”.
Rancière não só discorda dessa relação como é peremptório ao afirmar que, nesse ponto, “é preciso que se tome as coisas ao inverso”.
A partir daí podemos vislumbrar um pensamento que, referindo-se criticamente a alguns paradigmas caros a modernidade, cria um novo patamar para o observador e estabelece relações mais perceptíveis sobre as atitudes e obras contemporâneas e o tempo em que são produzidas.
Em síntese, abre uma nova perspectiva para o exame dos objetos, ícones e signos estéticos que hoje transbordam para a realidade.
Usei esses dois parágrafos com o objetivo de salientar os efeitos da apoplexia funcional contida nos escritos da arte contemporâneas mais influentes em nossos dias. Eles sequer imaginam as contradições produzidas pelo tempo. As idéias dos mais célebres pensadores do modernismo estão aprisionadas em redomas de cintilante mediocridade. Servem,para alguns críticos da contemporaneidade, como replicas carbono desbotado das idéias produzidas no alto modernismo.
Em suma, nada de novo se acrescentou as idéias precedentes. Apesar disso, do outro lado da vitrine, parte da vanguarda contemporânea acredita ter virado a mesa do modernismo ou uma pagina da historia. Ela parece satisfeita com o que lê. Porém, o leitor mais atento sabe que as idéias enunciadas não confirmam nenhum fato diferente.
Estou certo de que existe aqui, entre nós, pensadores sérios e interessados em aprofundar suas analises sobre o fenômeno estético contemporâneo à luz de novos conceitos. Entretanto, infelizmente, essa vertente não tem a visibilidade necessária para se fazer ver.
Complementando: Existe um pensamento contemporâneo original?
Creio que sim!
Apenas, não encontrou visibilidade.