domingo, janeiro 06, 2008

Vitimas da Cena Contemporânea




Adriano de Aquino
2008

Toda obra de filosofia deve ser suscetível de vulgarização; do contrario ela provavelmente dissimula absurdos sob uma nevoa de sofisticação aparente. Immanuel Kant


Esse axioma é um desafio para que eu tente colocar minhas ideias de forma compreensível para o leitor interessado no assunto. É, também, um alerta contra aqueles que intencionalmente se favorecem da nevoa que oculta questões e esconde os propósitos que hoje perpassam a difusão de produtos artísticos e culturais e que hoje norteia os meios de comunicação.

Alguns leitores me questionaram sobre o ensaio Anotações sobre o Catecismo Pós Moderno, postado anteriormente aqui no HiperBlog. Uns entenderam que eu tinha sido duro demais com os curadores.Outros,acharam que eu estava “aliviando” os artistas da co-responsabilidade no laisses faire que se espraia no setor das artes.Outros mais disseram que eu estava jogando tempo fora e que deveria dedicar esse tempo ao meu trabalho de arte. Alguns, mais enfáticos, criticaram minha disposição em continuar insistindo em me meter na escalada artificial que se apoderou do mundo artístico.    

Se,por um lado, essas opiniões acham inútil contrapor tal realidade,por outro, revelam o acerto pelo meu gosto em partilhar ideias, contradições e dúvidas para além do meu circulo de amigos - razão de existir desse blog. Esta ferramenta tem me permitido discutir e obter respostas interessantes sobre assuntos que abordam temas importantes da vida atual,coisa que hoje seria dificílimo fazer de maneira presencial. Também temos que levar em conta que a grande imprensa reduziu o lugar outrora dedicado às ideias. As novas diretrizes editoriais não       conseguem responder à necessidade de obtenção de dados e reflexões mais aprofundados sobre um setor especifico. 
Por sorte, a informação descompromissada com as finanças e a competitividade empresarial encontrou nos novos meios tecnológicos um canal de comunicação extraordinário. 
Acho que é um desperdício não utiliza-lo.

Para iniciar minha argumentação tentarei responder a alguns leitores que, por não pertencerem ao meio artístico, pediram que eu apresentasse, mais   detalhadamente, meu entendimento sobre a “crise da arte da atualidade”.   
De inicio,como no texto anterior, reafirmo que não existe uma crise da arte, ou melhor, da criação artística. O que vemos acontecer é um formidável confronto de forças que atingindo todos os setores da vida social também atingiu a arte. É esse fenômeno que vem sendo confundido com o que chamam crise criativa ou a crise dos valores da arte. Que sentimentos esses confrontos de ideias estão produzindo em nós? Por que o desconforto diante de um tempo de abundante conquista tecnológica e acesso a informação, mas, onde o dinheiro se assemelha a deus? 
Por vezes nos perguntamos: para que serve tudo isso se ao mesmo tempo e na mesma velocidade a vida perde sentido e valor? 
Mesmo os indivíduos de mais posses, sensíveis,cultos e sofisticados, com acesso ilimitado aos bens culturais e de consumo, reclamam da perda de sentido na existência e apontam os mais recentes meios de produção, as pressões da nova economia, as incessantes mudanças de hábitos, a mercantilização da religiosidade e o descaso com a ética como um fator importante em suas indagações existenciais. 
Tentarei comentar alguns aspectos dessa crise, notadamente no campo da arte. Não estou certo de que responderei também àqueles que me questionaram sobre uma excessiva dureza com que tratei os curadores. 
Pode ser que sim,talvez tenham razão quanto o grau de responsabilidade pelo estado de coisas que imputei aos curadores. Explico: na minha interpretação a figura do curador tem um importante papel na crise anunciada. Em síntese: são suas escolhas que fomentam a impressão de uma crise artística. Devo esclarecer, todavia, que considero as recentes atividades - curadorias, marketing e mídia cultural e outros segmentos de intermediação entre arte e público, atividades complementares uteis para difusão dos bens artísticos. Exatamente por isso suas condutas merecem uma atenção redobrada. Lamento que o crescente prestígio dos curadores venha ocorrendo simultaneamente à perda gradual da reflexão crítica. Para ver com clareza a questão é necessário subir uma ponte ligando a perda da acuidade crítica ao fortalecimento das curadorias de forma a vislumbrar de um ponto neutro o que gerou tal inversão. No meu entender o relativismo cultural que hoje permeia as ações estéticas difunde uma aparente liberalização dos meios de produção e, por conseguinte, do próprio fazer artístico. Sob o titulo de pós-modernidade, ou qualquer outro que queiram adotar,o que parece claro é que uma variante de intermediações entre arte e público, ao invés de elucidar a complexidade das propostas estéticas, as reduziu a uma nota de pé de página desprovida de substancia que demanda a reflexão. As coisas surgem prontinhas e ajeitadas as intenções curatoriais. A recente projeção dos curadores concede-lhes um notável status profissional junto às instituições e aos artistas. Essa característica peculiar vem lhes permitindo preceder e em alguns casos sobrepor à própria criação artística. Talvez por isso muitas pessoas imaginem que a arte encontra-se a reboque de fatores alheios à criatividade e essa é uma das razões da crise. 
Discordo, e tentarei explicar por que. 
Para isso é importante embrenharmos em questões às vezes chatas, porém, necessárias. Coincidência ou não,o fato é que nos últimos trinta anos uma rede de curadores estendeu sua atuação e se consolidou na forma que hoje presenciamos . Suas parcerias estratégicas, locais e globais, ganham dia a dia maior importância nos centros acadêmicos, fundações, coleções, museus etc. Esse conjunto de fatores somado à flexibilidade de princípios, lhes confere grande mobilidade no sistema por onde o dinheiro escoa. Respaldados por esse conjunto de forças as propostas curatoriais se confundem com a própria criação artística e, em casos extremos, as superam. Exemplos da argúcia curatorial podem ser observados nas ultimas Bienais de São Paulo. Creio que as considerações sobre um exemplo concreto facilitam digressões mais produtivas. Dirigindo o primeiro foco sobre a concepção - melhor dizendo, o tema eleito pelos curadores para uma bienal e direcionando o segundo foco para rede de eventos que os ligam à política cultural estatal e ao sistema de arte e do mercado mundial, pela via das estratégias dos empreendimentos globalizados, indagamos: como um curador escolhe seu tema e define a proposta de trabalho?

Deixando de lado as criticas categóricas que afirmam que isso ocorre por força dos interesses pessoais dos curadores, suas ligações políticas, afetivas ou financeiras com grupos que os apoiam e vice-versa,essa premissa faz com que muitos artistas desprezem o problema, pois, se meter neles é uma tarefa árdua. Porém, ele existe. 
Que fatores determinam as “temáticas” da Bienal?
E as estratégias curatoriais,surgem de que forma? 
São reflexos do desejo dos patrocinadores e do marketing, tendo em vista a mídia cultural e atrativos sedutores? 
Não podemos desprezar o fato de que a opção por um tema pode ser entendida como um recurso para atender a agenda sócio-educativa exigida pelo governo que subvenciona o evento. As megas exposições, para se adequarem aos paradigmas globais, precisam ter um caráter espetacular ligado aos assuntos palpitantes do momento. Por exemplo: terrorismo, violência urbana e multiculturalismo, editado em seus opostos: tolerância e convívio, aliás, tema da edição passada da Bienal de São Paulo: “Como viver juntos”. Esse modelo se encaixa no que antes chamei de alavanca, agora, com ponto de tensão nas sub teses de antropologia cultural. 
Contudo, nenhuma dessas opções reflete de fato as questões internas à produção artística contemporânea. São artifícios em voga no circuito da comunicação,mas,não necessariamente,da arte. 
Melhor dizendo: o curador elege seu tema a partir das ideias que tem sobre parte da produção artística. Até aí nada de novo chama nossa atenção. Entretanto, à medida que seu tema se determina como programa de trabalho surge uma definição hierárquica dos protagonistas em jogo. Nesse momento surge o paradoxo: o tema ajustará as obras da mostra à visão do curador, forjando parte da produção na origem, quer dizer, no ato de criação? Ou, o curador, supostamente sensível ás várias vertentes da arte contemporânea, adequará, não importa o que, ao seu tema?

Outro exemplo, coletado agora no site da Bienal de São Paulo revela esse paradoxo de modo concreto. Ivo Mesquita, curador da próxima edição, reeditou o titulo de uma bienal de décadas atrás "Em Vivo Contato”. Nas palavras de Mesquita: "O Vazio- A exposição do espaço vazio do segundo andar do pavilhão será um gesto radical de afirmação deste momento para elaborar e analisar sobre o modelo das bienais, seu papel no mundo contemporâneo. Esse gesto simbólico toma o vazio como o lugar onde as coisas são em potência, por isso pleno e ativo, ao contrário de uma manifestação niilista, onde as coisas deixam de ser e perdem o sentido. Ele é fonte geradora, o território do devir, com possibilidades de múltiplos caminhos para ser cruzado."

Emblematicamente radical, pois,radical de fato é coisa difícil de ocorrer nos nossos dias,o que essa proposta pretende induzir?
De imediato o que se destaca é sua incapacidade de entender, desvendar e apresentar, o mais amplamente possível, os múltiplos aspectos da produção contemporânea que, em essência,é a grande questão artística de nosso tempo. Tempo que, não obstante, muitos adoram chamar de Babel. No meu entender essa ideia revela apenas uma forma nostálgica de processar de modo superficial os vários meandros do pensamento e da estética contemporâneas.

O que podemos entender como o vazio na proposta de Ivo? É um estado com o qual ele identifica a produção atual? Ou, o vazio para Mesquita se refere às próprias instituições culturais?

Não fica claro,ou melhor,não é para ser claro.

Isso para não focar a ilação ultrapassada entre o mito da tela branca "como o lugar onde as coisas são em potência." 

Será que Mesquita pretende exacerbar com essa proposta o poder de escolha do curador, excluindo em bloco a produção contemporânea sobre o pretexto de em seu lugar "materializar o gesto de reflexão." Com essa premissa  Mesquita torna um problema complexo em si, em barreira impenetrável a reflexão. A seqüência de perguntas que surge desses postulados mostram apenas a inutilidade de tentar entender o resto da sua proposta.

Além disso, a interpretação curatorial sobre "um vazio expectante, o território do devir", não esclarece coisa alguma, por isso, o entendo como um sintoma do choque entre vertentes do pensamento "desconstrucionista" em oposição a critica de alguns pensadores contemporâneos sobre o desdobramento e a prolongada permanência de um modelo estético(instalações/táticas de inserção,etc.)que se eternizou nas grandes mostras de arte. Isso sim um agravante na paralisia do sistema de arte. 
Nesse contexto acredito que uma mostra pública de arte que deixasse transparecer os confrontos no campo estético seria de grande valia. Isso não acontecendo os artistas e o público perdem uma oportunidade de dialogo e tornam-se vitimas de uma decisão institucional mal pensada. Nesse episódio o que salta aos olhos é que o curador é só mais uma vitima da cena contemporânea, Suas propostas deixam isso muito claro. Vejam:
Ao propor um ciclo de conferências organizado a partir de quatro grandes entradas, das quais cito apenas duas, Mesquita nos apresenta uma intenção em busca de consenso. Nas suas palavras:
1. A Bienal de São Paulo e o meio artístico brasileiro.
2. Agentes oficiais e privados da globalização reunindo agências governamentais, ONGs, fundações públicas e privadas, todas organizações fundamentais nas estratégias das bienais.
No item 1 seria mais produtivo que ele invertesse a proposta : o meio artístico e a Bienal de São Paulo. Não especificado dessa forma,vislumbra-se de imediato a indisposição de muitos  artistas em colocar seus pontos de vista.              
O que fica evidente nesses itens é a similaridade de estilo e conteúdo dessas propostas com as apresentações dos programas sócio-educativos da UNESCO e de algumas ONGs espalhadas pelo planeta.        
A comparação das propostas com a concepção dos parques temáticos que atraem multidões é inevitável. Sabemos que os parques temáticos pertencem a um novo ramo do entretenimento globalizado que promove tanto uma aventura lado a lado com a vida selvagem, quanto proporcionam a alegria de usufruir, num breve passeio, um compacto da história de Veneza, por exemplo, dispensando o esforço exigido pelas visitas aos museus e consulta aos livros. Além do mais os parques temáticos funcionam as mil maravilhas através dos (...) "Agentes oficiais e privados da globalização reunindo agências governamentais, ONGs, fundações públicas e privadas, todas as organizações fundamentais nas [suas] estratégias [corporativas]". O que depreendemos disso é que o curador clama a parceria dos artistas para melhorar o negocio e assim submeter os atores aos métodos do espetáculo.
Além disso,a Bienal ampliou seus problemas deixando claro para todos de que é incapaz de se renovar como instituição cultural voltada para a produção contemporânea e de se redimensionar como empreendimento artístico auto financiável.
Não podemos esquecer que a ideia de amarrar o evento a um tema há muito se esgotou. Contudo, permanece a inexplicável pretensão de dar ordem ao caos (Babel?) que sabemos é um fenômeno inerente à produção artística da atualidade, visível na diversidade de meios e estilos. 
As propostas dos últimos curadores da bienal me lembram os costumes dos antigos doutos que acreditavam que o Sol girava em torno da Terra. Essas atitudes refletem um desejo latente de alterar a relação de forças através de artifícios que permeiam a mentalidade vigente em diversos setores. Mesmo sabedor do enorme poder da cultura, ninguém mais se ilude do quanto é difícil mudar a natureza das coisas. Nesses jogos sofisticados às vezes o feitiço vira contra o feiticeiro e forças monumentais se liberam moldando uma crise espetacular. 
Isso vem ocorrendo no sistema de arte, sobretudo, nas grandes instituições como a Bienal de São Paulo pelo fato de negarem refletir as férteis questões que impulsionam a produção artística contemporânea. Por outro lado, a parte atenta e dedicada da produção, aquela que permanece do lado de fora do caldeirão mágico, ou seja, os artistas que não creem em ilusões oriundas de modelos arcaicos revestidos de ideologias mercantis,não engrossam o adesismo as ideias de ocasião. Clamam por uma reforma estrutural da Bienal.         
Por isso, muitos artistas continuam trabalhando para oferecer o que, aliás, a arte sempre ofereceu: obras de alta qualidade e se lixam para os artifícios do sistema. 
Sabemos, que o meio cultural, respeitoso das diferenças, fecha os olhos à mediocridade. Tem algo mais elevado com que se preocupar.Todavia, quando a arte se contamina demais com o lugar comum e as obras daí proveniente ganham uma dimensão desproporcional nos meios acadêmicos, institucionais, difusão e mercado, como agora vêm ocorrendo, a crise se agiganta. Quando isso acontece os descontentes com as manipulações de toda natureza, tanto do lado da produção quanto do público, confrontam as veleidades mesquinhas em seus curtos reinados de soberba. Por vezes, isso parece demorar demais e tememos que não ocorra em uma vida apenas. Então, intimados a conviver com a "crise do novo de novo", ou seja, viver um presente infindável, nossas mentes mortais se põe a imaginar o quão é enfadonho a ausencia de ideias que há tempos engessou as instituições de arte.