Adriano de Aquino
2008
... o inferno de nossos contemporâneos chama-se mediocridade, o paraíso que buscam, a plenitude. Há aqueles que viveram e aqueles que duraram.Pascal Bruckner
Se colarmos na janela de busca do Google a frase: 'o banal e o cotidiano na arte contemporânea' surgirão centenas de ensaios,textos e aforismos sobre os muitos artistas da atualidade que adotam signos,elementos,coisas e objetos apanhados na rede de produção de gadgets ofertados pelo monumental fluxo de banalidades que se amontoam no mundo.
A maioria desses textos considera que parte dessa produção é absolutamente inovadora e as obras, eventos e outros meios, sinalizam uma ruptura com a tradição artística e com os códigos e significados herdados do passado. Contudo, seus autores não dispensam o hábito de remeterem suas analises sobre obras contemporâneas usando e abusando das citações de pensadores e artistas consagrados na modernidade e identificados, sobretudo, ao contrário da maior parte das propostas contemporâneas que endossam, pela busca extenuante de uma visão única e muito elaborada das coisas do mundo. Diante desse pormenor a ironia escapole:Oh!Sim,claro!Compreendo o quanto é irresistível para um artista que a apresentação de sua proposta estética se misture aos feitos artísticos de um Cézane,por exemplo. Afinal, o desejo de subir no podium da grande arte é bastante sedutor. Ainda que apenas para travar um embate desproporcional com a historia na tentativa de reverte-la em visibilidade ajustada aos padrões da comunicação da atualidade.
Todavia, tal aquiescência diz muito mais sobre os hipotéticos feitos que anunciam um suposto desligamento dos regimes estéticos precedentes.Para leitores mais ardilosos essa prática, hoje corrente na maioria dos textos sobre arte, revela somente um artifício que visa destacar uma obra 'especial' dos milhares de produtos estéticos similares.
Via de regra, todo esforço teórico não consegue denegar que grande parte dessa produção apenas reafirma a natureza dos fatos e dos objetos como coisas triviais, obviedades ululantes. Muitos textos atuais surgem e se multiplicam porque é capital que alguém se apresente para difundir e justificar um pensamento que opera para banir e manter à margem os modos de fazer artístico que não se alinham na esteira produtiva. Alguns articulistas parecem orgulhosos em explicar porque determinados nomes e um modelo estético que se estende por mais de duas décadas continua na 'vanguarda'. Mesmo um observador mais criterioso que tente penetrar nos meandros do processo criativo e na política dos grupos gestores da atualidade, encontrará dificuldades para chegar aos motivos que afiançam a contínua repetição do mesmo modelo nas grandes mostras públicas, nas instituições e na mídia cultural. O imediatismo, o consumismo, a complacência, o desprezo pela excelência e pela crítica se tornaram os mais importantes quesitos da vida contemporânea.
Eles encontraram seus correspondentes estéticos em muitos artistas da atualidade.
Uma variante caricata do outsider tornou-se a reencarnação da avant-garde contemporânea. Ela encontrou nos ícones do cotidiano uma espécie de musa inspiradora da revolução estética de nosso tempo. Diga-se de passagem que os contemporâneos, ao corromperem os princípios da vanguarda histórica, constituíram uma corporação outsider, primeira escala de acesso à insider upperclass capitalista das artes.
Soma-se a isso o fato de no plano objetivo, melhor dizendo, no âmbito dos grupos gestores, a gradual assimilação descontextualizada do pensamento de Marcel Duchamp que, em síntese, cogitava o papel das instituições artísticas na legitimação da arte, foi de tal modo banalizado que qualquer coisa introduzida no circuito artístico torna-se arte.
Nessa nova Meca só falta a figura do Rei Midas.
Esse paradoxo se apóia na lógica inquestionável de que o mundo artístico é a esfera mais elevada para legitimação da arte. Para os artistas comprometidos com o fazer artístico acurado esse principio é a expressão de um desejo inconteste por autonomia e liberdade e também uma verdade da arte. Ter um pé atrás com a invasão de produtos diversos e achados estéticos fortuitos que aspiram legitimação artística, é uma atitude política correta tanto para o artista quanto para o publico. Conceder de mão beijada essa preciosa herança do modernismo a qualquer traste estetizado legitimado pelo mercado é o mesmo que verter sangue, suor e lagrimas no esgoto.
No entanto, o que vemos é uma passividade espantosa.
Se antes eram as instituições da arte,a crítica criteriosa e a história que decantavam os elementos transformadores de uma obra de arte ,hoje,basta um rótulo curatorial,uma equipe de marketing e a constante visibilidade na mídia para que um produto estético seja automaticamente legitimado.
O que se pretende?
Purificar os pecados do mundo cruel,opressor, frustrante e demoníaco através
da inserção indiscriminada de qualquer expressão como uma manifestação artística?
Até as religiões exigem mais dedicação de seus fieis. A arte atravessou séculos, desbravou saberes e fazeres para no século XXI se reduzir a condição de enfermaria onde uns internos "criam" e outros vendem? Essa é uma circunstância passivamente aceita por artistas e publico?
Acredito que não.
Para ilustrar minhas cogitações usarei uma paródia com as pesquisas cientificas que vem atuando na concepção da vida através de intervenções genéticas e no adiamento indeterminado da morte com uso de tecnologia de ponta e pela ação das máquinas. Tirante os pressupostos éticos que tolhem a atividade humana pergunto: maior conhecimento garante maior controle contra ações mal intencionadas?
Claro que não!
Seria ingênuo acreditar que sim.
Sabemos que o bem não é uma das dobraduras automáticas do saber. Se fosse, aceitaríamos de bom grado, por exemplo, que o cruel sofrimento e os milhares de mortos resultantes das explosões atômicas em Hiroshima e Nagasaki têm relação positiva, previsível e justificável, com os benefícios auferidos aos milhares de doentes amparados e curados pela tecnologia nuclear em uso na medicina atual.
A realidade como hoje se apresenta também não é garantia de que a genética traga apenas benefícios para o homem. Se em estados democráticos já acarreta suspeição, imaginem em estados totalitários e nas mãos de corporações ultra poderosas.
Alguém deposita confiança no desenvolvimento de projetos genéticos sem transparência e visibilidade?
O que impediria organizações publicas ou privadas de desenvolverem uma linha de produção de guerreiros invencíveis e inumanos?
Apenas nossa boa fé na ciência?
Essas cogitações servem apenas para ilustrar o quanto podem ser ambíguas as melhores intenções quando paralelamente aos avanços científicos ocorrem disputas sangrentas pelo poder econômico e o controle político.
Da mesma forma as perguntas sobre o caráter das ações dos financistas,dos curadores,da mídia cultural e do marketing também podem ser entendidas como um controle externo sobre a criação artística.
Por que não?
Conhecemos bem as gracinhas criativas de alguns curadores que usam em seus projetos obras de arte como subprodutos.
Por isso,repito, essas questões tornaram-se mais sérias agora porque se instalaram no cerne da mentalidade corrente. O clima 'liberou geral' vem permitindo que alguns segmentos ligados à produção artística façam o que bem entendem com a arte. A única coisa que deles se exige é que sejam fashion e divertidos e financeiramente poderosos.
Essas são algumas preocupações quanto às intenções veladas que hoje atravessam, de um extremo a outro, o ambiente artístico.Sabemos que fazer o mal de maneira explícita é sintoma de acentuado desequilíbrio.
Desconheço os que o façam assumidamente.
Por isso, talvez, os atos muito humanos, vêm se confundindo com as coisas banais e com os fatos cotidianos mais insignificantes. As questões sobre o bem e o mal na política e nos negócios ou o bom e o ruim em arte ganharam a mesma dimensão que a dúvida quanto a escolha da marca de sabão em pó ou que código de área usar para acessar uma chamada telefônica interurbana. O que vemos é que no campo das ocorrências terrenas as parábolas angelicais que apareciam para modestas camponesas num campo de margaridas são similares as que empolgam a mentalidade contemporânea. Apenas uma diferença se impõe: “o milagre é o dinheiro, o dinheiro é o milagre”.
A opção por milagres, traduzido na esfera mercantil como boom é menos trabalhoso. Vai daí que essa opção é hoje a mais acessada, afinal, para uma mente moldada no pragmatismo, o sucesso é o fluxo preferencial por onde transitam a fortuna e o prestigio e seu gargalo escoa, naturalmente, na liberdade plena e maravilhosa onde vivem os reis,as celebridades e os afortunados.
É esse paraíso que um outsider sonha frequentar.
Esquema simples e muito eficaz quando se trata de coletar mentes e corações para um negócio que incidirá em projeção social e lucro.
Atenção!
Não discordo que negócio é para dar lucro.
Há muito torço para que o sucesso financeiro do mercado de arte escoe também para os bolsos dos artistas.
Porém, afora raríssimas exceções,não é isso que acontece, não é verdade?
Os que questionam o modelo em voga e as obras dele provenientes, pouco importa como o façam, são prontamente identificados como reacionários. Realmente, temos que ser muito tolerantes para não considerar essa lógica autoritária. Até mesmo a modernidade, vista por muitos como coerciva em alguns aspectos, foi mais generosa e aberta com os confrontos entre estilos artísticos e ingerências externas do que o que presenciamos atualmente. Por questão de princípio, os modernos não construíram muralhas tão sólidas contra intrusos supostamente desprovidos de 'chaves' de entendimento artístico.
Ao contrario, são conhecidas e muito divulgadas suas contundentes manifestações e mesmo algum deleite nas contendas contra as intromissões daqueles que questionavam suas obras e idéias. Essa foi uma das mais relevantes atitudes dos artistas modernos que contribuíram para a constituição de um acervo artístico de grande valor. Eles souberam, como hoje poucos parecem saber, que o confronto era uma forma de promover a introjeção das suas mentalidades e propostas estéticas no seio de uma sociedade até certo ponto refratária à mudanças. Podemos dizer que tais atitudes elevaram no sentido inverso ao religioso, os egos artísticos e suas vontades, conservando, entretanto, suas performances no plano do sensível e de alguma forma vinculadas à tradição artística criticamente processada. Suas propostas vivenciavam reais avanços sobre as fronteiras da convenção, ampliando o horizonte da percepção e empolgando o público a participar de algo que era feito, entre outras coisas, para que participassem, contestassem e identificassem para, enfim, amarem com todas as filigranas complexas do amor por algo que de fato partilhavam.
Entretanto,os adeptos do vale tudo parecem alheios a uma realidade dia a dia mais complexa. Suas apologias redundantes nos revelam apenas uma atração pela mesmice e um desprezo estúpido pelo fazer artístico laborioso e dedicado. Suas atitudes deixam transparecer a ingenuidade de suas crenças fundadas numa compreensão equivocada de que a vida demasiado humana se traduz literalmente no banal e no cotidiano, quer dizer, na mediocridade. Suas obras, ações e gestos nada dizem porque nada tem para dizer sobre uma autêntica manifestação artística depois da morte de deus.
Não olho com desprezo nosso tempo.
Ao contrario, creio que vivemos uma época fantástica para o conhecimento e para as artes.
Me oponho a toda argumentação que pretenda limitar a perspectiva humana e a arte a um heroico passado histórico.
Se não acreditasse já teria abandonado a atividade artística ou melhor, a arte teria me abandonado,pois, se trataria apenas uma categoria sócio econômica na qual fracassei.
Concordo que partilhar obras de arte plenas de sensibilidade e inteligencia é uma experiencia cada dia mais rara,contudo,possível.
Creio que ainda ha muito a acrescentar ao que herdamos.
Para que isso ocorra é necessário esforço e dedicação,não apenas um monte de paradigmas "geniais" fundados no arquétipo do artista negócio uma sacada do Warhol que,de um tempo para cá, o elevou a categoria de "divino".
A estratégia de Warhol imobilizou a critica contemporânea a tal ponto que tornou-se corrente entre seus admiradores compara-lo a Michelangelo.
Ainda que alguns artistas que se submetem a esse modelo sejam bem
sucedidos e cotados nas alturas é uma tolice conferir à banalidade e ao cotidiano virtudes que não possuem.
O real, esse sim, uma fonte renovável de sensibilidade,conhecimento e saber.
Acreditar que teorias espertas, marketing de ponta e lucrativo negócios
detenham um poder capaz de engrandecer obras de mesquinhas dimensões é a porta do "inferno dos nossos contemporâneos".