Adriano de Aquino
dezembro de 2007
Em meados dos anos 80, comecei a me preocupar mais com as idéias e os novos paradigmas que pretendiam esmiuçar e intervir na crise da modernidade. Nesse ensaio tentarei reproduzir algumas reflexões sobre esses últimos 30 anos. Por se tratar de anotações em âmbito pessoal evitarei formular juízo de valor sobre as relações entre a arte mundial e o ambiente cultural brasileiro.
A década de 80 é para mim a época onde as mudanças que hoje presenciamos começaram a ganhar corpo. Minhas impressões sobre os acontecimentos artísticos desse período me levaram a evitar reduzi-las a um julgamento precipitado e tendencioso. A primeira vista, as manifestações artísticas que surgiram na década de 80 me pareciam na ocasião uma festa onde se comemorava um acontecimento que ninguém sabia muito bem o que era. Naquele momento me dizia: é possível que etejam comemorando o surgimento de uma nova geração de artistas, o gradual abandono das limitantes disciplinas do ensino da arte, a abertura para experimentação livre, a supressão das fronteiras entre o real e o simbólico e por aí afora. Os professores da velha escola já tinham sido substituídos por jovens artistas com expressão no circuito da arte. Por sua vez, as novas direções estimulavam a ligação do aprendizado de arte com os segmentos institucionais e de mercado. Por força do hábito e pendor da tradição, cabia aos teóricos em formação fazer o que de certa forma parecia impossível ser feito pelos próprios artistas, ou seja, analisar o contexto de seu tempo e conceber estratégias para a projeção de uma nova safra de artistas.
Os teóricos, gestados no cerne dessas manifestações, começaram a articular um formato de analise sui-generis. Abriram mão do caráter critico de natureza literária, poética e pessoal e adotaram um estilo similar ao das teses de mestrado acadêmico. Alguns escritos dessa fase me impressionavam por vincularem num só texto grandes nomes da escola de Frankfurt, pós-estruturalistas e existencialistas, indiferentes às características peculiares desses grupos. Não me parecia plausível que a obra de um jovem artista carecesse da reunião de tantos sábios para decifrá-la. Claro! Esse recurso tinha objetivos distintos e justificáveis. Um deles era revelar uma versão diferenciada de divulgar a arte.A outra, mimetizava um viés erudito condizente com o estilo docente que, de cara, lhes conferisse legitimidade. Porém, o que me parecia mais intencional era a incursão aleatória sobre a história da arte. A livre interpretação da lógica interna de períodos históricos ia de encontro, ou melhor, servia para embasar as narrativas que sustentavam objetos, coisas e gestos fragmentados e desconexos. Foi nessa época que as instalações brotaram na forma que hoje se apresentam e de onde começaram a galgar a dimensão que agora possuem. É fabuloso, tenho que admitir, que esse formato estético concebido a partir de conceitos de proclamada vida efêmera, desprovido de corpo e supostamente imune às transações mercadológicas, tenha se tornado o modelo institucional dominante com tão longa duração. Hoje, as megas exposições, galerias de arte convencionais, centros culturais etc. são vetores importantes para a difusão desse estilo de produção estética. Alguns precursores desse modelo de arte se surpreendem com a escola que se consolidou em torno da proposta que preconizava a revolução estética permanente. Controversamente, a normatização se tornou seu maior dilema. Os teóricos que as endossam se esmeram em reunir todo o arco de pensadores das muitas vertentes do pensamento moderno para falarem apenas de uma obra. Suprimem as arestas e espremem num mesmo texto Walter Benjamin, Adorno, Horkheimer, Habermas, Freud, Nietzsche, Foucault, Lacan e outros. O suco obtido é usado como estimulante para suas apologias.
Simultaneamente, parte da grande imprensa se ajustou aos desafios impostos pelos novos meios tecnológicos e, para adentrarem a feroz competitividade, começaram a incorporar os conceitos já ativos nos setores mais jovens de produção e consumo. Primeiro reduzindo os espaços e a periodicidade para crítica de arte e depois padronizando seu formato, tornando um oficio difícil por natureza, em algo palatável ao consumo.
Obras inspiradas na lenda pessoal do autor se multiplicam, tornando-se um código comum. A reciclagem de refugo industrial e a simplificação de recursos estéticos são características acentuadas nas obras contemporâneas que visam transferir para o espectador a sensação de que ali se processa a ligação entre arte/vida. Isso explica em parte a hegemonia das grandes mostras mundiais, das teorias e da comunicação contemporâneas. Afinal, pouco importa as características intrínsecas da obra. O que influi é o calibre do código incluso e a freqüência midiática. É raro, porém, ocorre encontrarmos um artista que utiliza esse processo de maneira impar. Afinal, não é o suporte tradicional ou avançado que qualifica um talento. O problema se impõe quando a mentalidade dominante da burocracia cultural organiza as grandes mostras de forma horizontal, induzindo o espectador a um percurso onde impera um padrão estético a maneira dos produtos que deslizam nas esteiras de uma linha de montagem.
Não é minha intenção limitar essas anotações a preceitos elementares sobre facilidades, astúcia e êxitos financeiros. Esses tópicos não me impressionam a ponto de ruminar ressentimentos por opções pessoais e, menos ainda, julgar a conduta dos artistas. Até porque, sempre tive em mente, considerando-se as devidas proporções, que os artistas do passado também se submeteram aos modelos de sua época sabedores da natureza dos compromissos que firmavam. Todavia, isso não os impossibilitou de produzirem grandes obras de arte. Nesse território não existe nem bem nem mal,apenas escolhas.Por isso minhas questões sobre a contemporaneidade não se ligam apenas à uniformidade estética, as ideologias ou poder institucional.
A subsistência de um pensamento desconstrucionista que tendo “solapado de dentro para fora a tradição racionalista da filosofia ocidental e deixado a modernidade sem uma base filosófica profunda para suas crenças e instituições” impede que apareçam respostas ao relativismo dominante. A citação grifada acima é um trecho do livro O Dilema Americano, de Francis Fukuyama, ela é certeira e ataca frontalmente o problema. Relaciono-a ao atual momento cultural que teima em obliterar a difusão das respostas de muitos pensadores e artistas à crise da modernidade. Fukuyama penetra mais nesse território nebuloso quando comenta um trecho do livro de Allan Bloom intitulado The Closing of the American Mind, que em suas palavras “relacionava de forma brilhante o Rectoratsrede de Heidegger com a crise contemporânea da universidade americana, bem como com sexo, drogas, musica e outras tendências da cultura popular. Este livro tocava num nervo exposto e identificava um problema real. O relativismo cultural – a crença de que a razão era incapaz de se erguer acima dos horizontes herdados pelas pessoas – na verdade havia passado a fazer parte da vida intelectual contemporânea. Foi legitimada em um nível elevado por pensadores sérios como Nietzsche e Heidegger, transmitida por modismos intelectuais como o pós – modernismo e o desconstrucionismo e traduzida na pratica pela antropologia cultural e por outras partes da academia contemporânea”.
A citação acima dimensiona o problema que está diante de nós. É um alerta sobre o poder do pensamento desconstrucionista forjado em Marx, Freud e Nietzsche, três vigorosos sábios. Os seguidores da versão compacta dos ensinamentos desses autores o converteram numa espécie de evangelho pós-moderno. As diversas correntes dessa vertente proclamam a idéia de um agora permanente que caminha lado a lado a uma realidade imutável. Esse conceito pretende tornar quimera qualquer esforço ou construção lógica que tente intervir no real. Tal pensamento oculta um cativeiro de idéias, dificultando que subam à superfície as respostas de muitos pensadores e artistas. O bom combate é liberar essas forças, fenômeno que dia a dia arrebata um contingente maior de pessoas..
Minhas considerações sobre a arte atual se assemelham a dos intelectuais acima citados que, penetrando a área cinzenta do relativismo contemporâneo, colocam em questão a genealogia e a pertinência dos horizontes herdados pelas ultimas gerações. Hoje, grande parte da intermediação da arte passa ao largo desse problema, por isso precisam ser seriamente encaradas sob pena de que mais gerações de artistas se conduzira para uma espécie bizarra de antropologia cultural. Essas tensões nos apresentam duas hipóteses: a primeira é de que a matriz desconstrucionista invalidando culturalmente as formas artísticas não alinhadas as conservará soterradas sob as cinzas de um cadáver insepulto - sob a velha e desgastada lapide onde se lê: aqui jaz a crise criativa da contemporaneidade. Nessa fossa estão confinadas as técnicas relacionadas à tradição artística e outras ainda não catalogadas. A segunda é a teimosia em manter nesse posto a invencionice pateta e conformista. Todavia, essas duas hipóteses visam um único objetivo: relativizar a verdadeira crise e adiar sine die a renovação artística. Mesmo revestidos pelo poder que uma rede global hierarquizada - curadores, críticos, mídia cultural, diretores de museus, proprietários de galerias, financistas, editores e etc - lhes conferem, esses agentes não conseguem esconder que a crise existe e tem nome próprio: crise das idéias - que impede o sistema e as instituições de arte de se renovarem. Impotentes diante da complexidade dos conflitos da atualidade lutam para manter suas posições, reproduzindo o modismo mundialista em bienais e outras festivas exposições que focam, principalmente, a sensibilidade curatorial enlevada pela crença de que a mais remota comunidade do planeta hoje se insere nos eventos cosmopolitas.