terça-feira, janeiro 29, 2008

Desvio para o Eterno


Filósofos, sacerdotes e sábios, além de farta documentação apócrifa abrem o conhecimento sobre as múltiplas formas com que as culturas mais antigas enfrentaram a questão da morte. Hanna Arendt em seu livro A Crise da Cultura diz que cultura grega da antiguidade dispunha fundamentalmente de dois modos de encará-la, senão para vencê-la, pelo menos para vislumbrar os temores que suscitava. Segundo ela, o primeiro modo fundava-se na própria natureza, quer dizer, na procriação como forma de inscrição no eterno ciclo da natureza. Nesse modo o problema era enfrentado, potencialmente, no plano da espécie. Porém, um grande problema permanecia: a perenidade, na acepção individual, malograva, impedindo o homem se diferenciar das mesmas condições impostas às demais espécies animais. O segundo modo, mais complexo, consistia em realizar feitos heróicos e gloriosos que pudessem sobrepor à efemeridade do tempo. A repetição indefinida dos fenômenos naturais - dia que segue a noite que segue o dia, as estações do ano e tudo mais - garantem que o mundo natural como o conhecemos é o lugar dos acontecimentos imortais. Contudo, diz Arendt, todas as coisas que devem sua existência ao homem, como as obras, as ações, e as palavras são perecíveis, contaminadas, por assim dizer, pela mortalidade de seus autores. É precisamente esse império do efêmero que a glória devia permitir, pelo menos em parte, que se combatesse. Para Arendt, a tese tácita da historiografia antiga, quando, ao relatar fatos “heróicos”, tentava arrancá-los da esfera do perecível para igualá-los à esfera da natureza. (...) Se os mortais conseguissem dotar suas obras, suas ações e suas palavras de alguma permanência e retirar delas seu caráter perecível, então talvez essas coisas, pelo menos até certo ponto, penetrassem o mundo daquilo que sempre dura, e nele se fixassem e os próprios mortais talvez encontrassem seu lugar no cosmo, onde tudo é imortal, exceto os homens. É nesse lugar, digamos, que surge então a filosofia como uma terceira forma de responder aos desafios da imortalidade. (extrato manipulado de O que é uma vida bem sucedida? - Luc Ferry)






Adriano de Aquino

janeiro de 2008

As recorrentes alusões à efemeridade como condição inerente à vida e a arte tornaram-se uma espécie de proto filosofia dos artistas contemporâneos. Esta é uma breve reflexão sobre os conceitos encravados na mentalidade mais influente em nossos dias que pode nos ajudar a entender o modo como nosso tempo lida com o imaginário da imortalidade.Para um jovem que nos anos 60 dava os primeiros passos no mundo da arte um expressivo conjunto de valores da modernidade permeava a mentalidade da época colocando em questão a idéia ocidental de Absoluto e focando o caráter efêmero da vida e da arte. Em parte, as sucessivas marteladas de Nietzsche, que ainda ecoam como uma forma de desencantamento do mundo, a argúcia arrasadora de Freud contra as ilusões metafísico-religiosas e os fundamentos sócio-econômicos de Marx, tinham dissolvido no ar o que ainda restava de oculto nas crenças e nos negócios do mundo moderno. As colunas centrais da religião, das instituições acadêmicas e as velhas hierarquias econômico/social, alvos de contestações de toda ordem, balançavam. As ruas tornaram-se palco da insatisfação. Movimentos de jovens de todas as modalidades artísticas transbordaram das salas de concerto, museus, galerias, bibliotecas e espraiavam pelos campos e avenidas.Um enorme processo de desconstrução, que teve inicio na alta modernidade, encontrou nos jovens do século XX, sobretudo nos da geração dos anos 60/70, a voz e a potência para o confronto com toda autoridade constituída: Estado, família, arte, instituições, gênero,sexualidade, política, propriedade, ideologia, mercado, tradições, mente, corpo etc. No meu entender essa foi a derradeira agitação estético/cultural que, mobilizando e transformando inúmeros modos de expressão artística, curiosamente, não era em si, um movimento específico das artes. Não podemos esquecer que os grandes concertos de música, as polêmicas exposições de arte, a literatura, as leituras de poesia, etc. que empolgavam uma multidão de jovens ocidentais, não eram, ainda, fenômenos atrelados à indústria cultural ou submetidos a interesses econômicos mais objetivos. Essa geração se propunha reconstruir senão o mundo, pelo menos uma vida melhor, sobre as ruínas do passado.
Quando as utopias amainaram vimos que a paisagem havia se alterado substancialmente. As ideologias políticas perderam muito do seu poder sedutor, regimes autoritários entraram em colapso, e arcaicas estruturas institucionais desmoronaram por completo. Uma nova cultura econômica, aparentemente mais flexível, que acenava com a perspectiva de prosperidade para os povos surgiu no horizonte. Pouco importa o nome que se dê ao conjunto de forças políticas e econômicas que se empenharam nessa nova via. O fato é que a abundância de recursos trazidos por essas mudanças expandiu o mercado em todas as direções. Simultaneamente, uma embrionária rede tecnológica se expandiu e de forma magnífica transformou de um extremo a outro o panorama cultural. A dinâmica dos recursos oferecidos pela tecnologia da informação produziu um forte impacto em todo sistema produtivo. Na arte esse impacto é enorme. As modalidades de produção, as reações e a mentalidade que hoje se fixa no ambiente cultural dá margem a inúmeras considerações. A que aqui farei é apenas mais uma.
Parte da produção artística da atualidade, voltada para a produção de ícones, gestos, instalações, gadgets etc. e fundadas sobre a égide da efemeridade da vida e da arte é um bom ponto de partida. Os produtos artísticos mais em voga no momento se apropriam de itens inseridos no repertorio dos eventos banais e cotidianos. Parecem ao primeiro olhar, manifestações integradas ao complexo sistema de comunicação hoje disponível e um desdobramento conseqüente do impacto produzido pelos novos meios tecnológicos. Porém, se olharmos com mais atenção poderemos vislumbrar certo desconforto. Uma reação curiosa tenta ilustrar as virtudes de um novo mundo que conecta indivíduos de todo o planeta. O modelo de arte mundialista que nos últimos trinta anos enche as grandes mostras de arte internacionais parece afirmar que o desejo de ruptura das fronteiras geográficas, tão desejada pelos modernistas, tornou-se realidade. Enfim, artistas de diversas regiões do globo, oriundos de culturas há pouco tratadas como periféricas pelos grandes centros, se integraram ao Pantheon artístico universal. Para o otimista isso é uma constatação cabal de que as instituições se reinventaram e o ajustamento de suas políticas distribui saber e harmonia entre as diversas culturas do planeta. Tenho muitas duvidas sobre a positividade desse processo, porém, esse tema não é o foco de minhas reflexões nesse texto, ainda que o considere um importante player, no contexto do tema que pretendo abordar: a produção artística contemporânea.
Mais do que se imagina o surgimento das inúmeras ferramentas tecnológicas trouxe um grande problema para a arte. Incapazes de produzir, por meios tradicionais, estímulos aptos a fazer frente às trocas culturais disponibilizadas por novos recursos tecnológicos, uma parte da produção estética aderiu à demanda de uma nova fase promocional e mercantil, outra se fechou num circuito restrito. Contudo, as duas vertentes se submeteram a idéia de que uma aparente democratização das linguagens artísticas- uma espécie de vale tudo- era um recurso admissível. Contudo, essas iniciativas não responderam, muito menos ultrapassaram os expedientes repetitivos de anunciar a morte dos meios tradicionais de expressão: a morte da pintura, da escultura do desenho etc. Afinal, ninguém mais tem duvidas de que nada morre apenas por decreto. Além do mais, ao repetirem essas formulas se colocam diante de uma questão mais grave e urgente, pois, caso a morte das formas tradicionais de expressão artística fosse uma verdade, os modelos estéticos da atualidade teriam fatalmente que enfrentar a mesma sentença: seriam coagidos frente à dinâmica do presente. No entanto, essa duvida não é sequer cogitada. Ao contrário, vemos um modo de produção estética consolidado nos anos oitenta se perpetuar indefinidamente. Isso nos leva a supor que de 30 anos para cá a arte e o meio social atingiram perfeita harmonia. A longa permanência de um padrão estético levanta a suspeita de que a arte supostamente mundialista alcançou seu objetivo: recalcar o aparecimento de sucessivas experiências artísticas. Explico melhor: no sentido inverso dos artistas da vanguarda histórica que contestavam toda forma de conservadorismo, regulamentos oficiais e regimes estéticos um grande numero de artistas contemporâneos parecem satisfeitos com o padrão dominante e a regras institucionais seletivas. Em seu livro Du spirituel dans l’art Kandinsky dizia que o êxito de um grande artista é inevitável ainda que por determinado tempo seu reconhecimento seja apenas um horizonte possível. Para ele é através de um complexo processo de decantação que os procedimentos estéticos inovadores são extraídos de sua marginalidade transitória. As palavras de Kandinsky são úteis para explicar como o desconstrucionismo feroz que inspirava a vanguarda histórica, hoje nos transmite uma poderosa atitude, plena de lógica.
Em minhas considerações sobre a cultura mais difundida nas ultimas três décadas não excluo a possibilidade de sujeição da atividade criativa à crescente centralidade da economia na vida contemporânea. Ao contrário de seus precursores, um grande contingente de artistas pós–modernos enxerga na institucionalização precoce um benefício. Suas estratégias se montam a partir desse juízo. Os vários modos artísticos que surgiram no pós Segunda Grande Guerra herdaram e souberam usar a diversidade difundida pelos artistas da vanguarda histórica. Esses movimentos contestavam o sistema oficial de arte e a institucionalização pomposa. Os prodigiosos movimentos estéticos dos anos 50/60 são ricos, não apenas pelas obras que legaram e as questões que suscitaram, mas, também, pela abertura artística e cultural que disseminavam. Arrisco dizer que tal circunstancia permitiu aos artistas desse período inaugurar um fluxo produtivo fundado na autonomia criativa, ratificando, criticamente, alguns valores do modernismo e renovando a relação da arte com o imaginário da imortalidade. Esse último item é importante para entendermos melhor as repetitivas argumentações dos artistas atuais sobre a efemeridade como um enunciado estético que delineia as propostas da arte contemporânea. Ainda que o efêmero, anunciado como fundamento teórico da arte atual, pareça inédito ele não é. De fato, esse enunciado é um simulacro do imaginário da imortalidade diferenciado por sutis artifícios conceituais.
Alguns segmentos das artes plásticas conceberam uma versão própria do relativismo nietzschiano mesclado a teorias dispersas coletadas em vertentes do pensamento desconstrucionista. A ligação com a vida acadêmica levou alguns artistas a adição de aditivos excêntricos para rápida diluição de todo e qualquer critério artístico identificado por eles como reação conservadora. Munidos de fragmentos dispersos e convencidos da luta por uma causa nobre, artistas e teóricos partiram contra os focos de reflexão crítica e aptidão técnica, habilidades que vem sendo gradativamente desprezadas. Instalou-se, então, a crença de que vivemos hoje numa sociedade de homens livres e que todo individuo está apto a produzir o que bem entender sem mais se submeter a nenhum critério externo a si. Tal conceito se tornou um senso comum no campo artístico. Esse tipo de relativismo tornou-se o bálsamo para todos os males preenchendo de estratagemas a vaga idéia de que todo e qualquer procedimento estético tem o mesmo valor simbólico - a única coisa que os diferencia é a fama de quem os faz e o preço. Para consolidar sua permanência no meio cultural os adeptos dessa vertente falam da realidade como um fenômeno imutável e afirmam que a flexibilização dos meios de produção tornou possível a expansão da liberdade. Essas intervenções justificam nossa preocupação, porém, é bom lembrar que a confusão intelectual que se instalou é impotente contra a inevitável renovação crítica.
É até certo ponto compreensível, em uma sociedade altamente competitiva, a coexistência de grupos fechados. O recrudescimento das religiões, o consumismo galopante e outras formas de transferência imposta pelo cotidiano são dados que sempre levamos em conta quando refletirmos sobre a vida atual. A fragilidade das teorias dominantes que visam impor a idéia de que tudo que é avançado em arte é pleno de significado elevado e tem como objetivo a intervenção crítica imune às convenções, esbarra no fato de que o reconhecimento e a confirmação de suas investidas estão em conformidade com os pactos formais de que tudo que é identificado como avançado, inclusive o capitalismo avançado, espelham nossa época, a qual devemos nos curvar e não contestar. A soma desses fatores interage no imaginário do nosso tempo. No fundo, sobrevém a intenção de afirmar alto e bom tom que todos são parte do mesmo negócio. O negocio da arte! Essa é uma das razões que torna cada dia mais evidente que a banalidade de um gesto, objeto estético ou instalação, preconcebida para se destinar aos domínios institucionais, não consegue esconder sua mais contundente aspiração. Quando isso sobrevém a arte já se ausentou. Acreditar que a institucionalização e os altos preços de mercado é reconhecimento inconteste é depositar fé cega em algo indiferente ao interior da vida sensível.
Eis o dilema contemporâneo.
Os que conhecem a dificuldade não se iludem. Tentam abrir brechas que os permita viver e criar do modo mais autêntico possível. Deslizando por entre as beiradas dos sistemas, contornando as margens, onde de um lado se instalam os novos deuses erigidos pelo predomínio econômico sobre todas as coisas e, do outro, os homens que, em busca do conhecimento, descartam gradativamente os dogmas e se impulsionam a superar limitações. Foi o imaginário da imortalidade que deu partida a esse gigantesco movimento cultural e é ele - não as idéias de prosperidade, riqueza e fama, esses sim, conceitos efêmeros - que impele essa roda a se mover. Portanto, se formos leal à nossa vontade mais profunda continuamos insistindo, como criaturas efêmeras que somos, na renovação dos horizontes que herdamos e desse modo humano, viver com maior intensidade, alheios às sedutoras ofertas para que nos acomodemos confortavelmente nos domínios da banalidade consumada.