quarta-feira, fevereiro 06, 2008

Adeus,guri



Jacob Klintowitz
São Paulo 2002

Provavelmente Rubens Gerchman é o único brasileiro dotado da graça da ubiqüidade.Tenho informações seguras de que na área artística somente ele é capaz de estar em dois lugares ao mesmo tempo. É comum o relato de pessoas que tem certeza de que Gerchman não necessita dormir e não o faz há exatos 40 anos, o seu tempo de pintor. Mas eu penso que isto já está no terreno da invenção, dessas verdades que no nosso país se aceitam sem qualquer prova. Aqui, adoramos mitificar. Dormir ele dorme, mas não se sabe se, à semelhança do personagem de Nélson Rodrigues, em “Sete Gatinhos”, com um olho só. Um dorme, o outro permanece acordado.
Nos últimos tempos ele foi visto, não se sabe se ao mesmo tempo, no Museu de Arte Contemporânea de Niterói, numa excelente retrospectiva (já?) de sua obra. Na galeria carioca de Jean Boghici, onde mostrou a sua criação de jóias. Na loja Forma, em São Paulo, onde pinturas suas em inesperados ocres dialogavam com a bela arquitetura de Paulo Mendes da Rocha. No Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, na sua mostra “Fumaça”, caixas pictóricas feitas a partir das caixas de charuto. No Museu de Arte de São Paulo no qual a sua pintura tratava do futebol. Numa galeria na av. Colômbia e numa loja de arranjos florais, que também promove arte, noutro bairro de São Paulo (neste caso houve ubiqüidade, sim senhor)
Rubens Gerchman é o cronista da vida carioca, o artista que registrou, interpretou e deu a sua versão, muitas vezes definitiva, do percurso emocional e psicológico da cidade mais artística do país, antiga capital da república e, até hoje, o centro de vida popular mais expressiva. Rubens Gerchman é um dos introdutores da linguagem pop no Brasil e um dinâmico agitador e questionador cultural, recuperando valores populares e abrindo a linguagem da arte a um público mais amplo.
Gerchman sempre pareceu gostar de ser o rei do mau gosto, título de um pequeno livro sobre ele editado pela Funarte. Isto se deve ao sadio desafio da juventude ao bom gosto burguês e ao fato do artista procurar os seus temas na vida popular, no cotidiano, o que dá margem a muitos equívocos. As coisas não são o que aparentam. Ou são. Oscar Wilde disse que só as pessoas superficiais não se deixam levar pelas primeiras impressões. Gerchman é um pantagruélico devorador do substrato carioca. Daí esta história de caixas de morar, do futebol, dos corpos na areia da praia, das bicicletas, dos personagens populares. E, em especial, sejamos francos, a “Lou”, uma assassina suburbana que foi transformada numa espécie de enigmática Mona Lisa brasileira.
Na verdade, Gerchman descobre, organiza e fixa a vida brasileira. O seu assunto é recolhido no universo anônimo, popular, nos jornais de crime, na vida diária. Gerchman mostra o que ocorre no banco de trás dos carros, numa noite perdida, diante da escura paisagem marítima. Ou nos pequenos apartamentos do Catete. E, também, nos estádios, na orla marítima, nos parques da cidade. Gerchman é um amoroso narrador da simples existência.
Quarenta anos de atividade artística. Chamar de carreira, como é comum, normaliza a criação artística. Não é o caso de Gerchman. Certamente, a sua trajetória, não é a de uma anticarreira, mas é inegável que ele caminhou tendo como núcleo central de seu movimento, a criação artística. Mesmo no período em que dirigiu a Escola de Arte do Parque Lage, a sua foi uma administração não burocrática e de implantação de perspectivas do processo artístico atual. Muito dessa atividade inovadora na didática da arte, foi “esquecida”. Isto se deve às disputas políticas na arte e ao desejo de construir uma história fictícia da nossa cultura.
Rubens Gerchman ama o futebol e é dos poucos artistas brasileiros que trataram do tema. É um assunto persistente na sua iconografia. E nisto ele está em boa companhia, com artistas como Vicente do Rego Monteiro, Aldemir Martins, Cláudio Tozzi, José Roberto Aguillar, Nelson Leirner, Roberto Magalhães.
Eu me lembro da sua grande exposição sobre futebol no MASP e da multidão presente. Lá estavam Anônimos da Silva e figuras ilustres e, na mesa, assinando um belo catálogo, o jornalista Armando Nogueira e o próprio Gerchman.
E eu me lembrei, de repente, da minha tentativa de reconstituir um parcialmente destruído painel do artista, encontrado no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, sobre uma multidão no estádio – a velha paixão - e que foi fotografado de maneira precisa pelo Rômulo Fialdini. Hoje a minha publicação sobre o muralismo serve de roteiro para o artista recuperar a sua obra.

Gerchman fez algumas incursões cinematográficas com super-8 e 35 mm na década de 70. Visões tão belas. Lembro de uma na qual a câmera fixava o movimento do mar e a progressiva construção da palavra amor. Uma pergunta: o que não fará logo mais com a tecnologia atual, leve e portátil?
Uma anotação que não quero deixar de fazer sobre o artista é que é notável em Rubens Gerchman a rapidez instantânea entre a vontade e a mão, entre o seu desejo de fazer alguma coisa e a concretização da intuição. A invenção do mundo individual através dos objetos, esculturas, gravuras, pinturas, cinema. A transmissão da sua percepção até o laboratório pessoal, local de criação de novas formas e suportes.
E esta exposição “Fumaça”! Dezenas de caixas de sonhos, suspensas por fios e flutuando sobre um grande espelho, revelando segredos, ocultos personagens, histórias interrompidas, memórias, fotografias, emoções quase perdidas. Evocações. Bandonión e Pixinguinha, drama e doce melancolia. Uma suíte sonhadora de um homem que tece os seus próprios sentimentos para contemplar a si mesmo.