quarta-feira, junho 27, 2007

De Lord para Angelo

Rex e Lord en promenade,1984

Estou acuado, eriçado, quiçá constrangido, mas este meu latido será apenas o tempo necessário para que, acomodado sobre minhas patas traseiras, recupere o fôlego, amanse a dor e prepare um novo salto nesta vida que você, diversas vezes, mostrou-me como aceitar. Filhos do encontro de desejos imperfeitos, temos de aprender que nossas quimeras têm pouco serventia nos momentos decisivos da existência. É preciso inventar uma maneira própria de estar no mundo, e isso só ocorre quando aceitamos nossa incompletude. Não cansei de tomar essa lição em seus brados matutinos ao telefone, em seus projetos etílico-gastronômicos, em suas diligências pelo hipódromo da Gávea e pelas ruas do Leblon. Na verdade, muitas vezes torci silenciosamente para que não lhe coubesse o compromisso alheio de um amigo, a falta de uma iguaria ou o palpite infeliz.

Você bem sabe que nasci pintado, um tanto alvo, porém alegre, espirituoso, inteligente, brigão, afetuoso – a meu modo, é verdade – e teimosamente sedento do que há de melhor por aqui. Há traços que a paternidade não desmente, embora tenha conquistado relativa autonomia e, hoje, mesmo sob a guarda de um grande amigo seu, passeie por aí impresso em livros e catálogos, sem me perder a cada vez que sou descoberto por um novo apreciador de sua arte.

Nas últimas semanas, procurei me manter por perto, enquanto a morte de seu corpo se aproximava em adágio. Foram, decerto, momentos difíceis, pois testemunhar a dignidade com que você se agarrou à vida, os modos que encontrou para não se entregar, não são coisas fáceis de encarar. Ver a morte de perto pode ser muito angustiante, mas assumir e querer para si o sem sentido do que se vive talvez seja algo ainda mais perturbador. Por isso, tomo a liberdade de contar dois pequenos fatos ocorridos durante esses dias.

O primeiro me foi relatado por um de seus amigos mais novos, que, na fria manhã do domingo retrasado, teve o prazer de lhe mostrar uma foto do episódio que pode ser assim descrito: alegre ao notar, próximo ao sofá da sala, a segunda edição do livro Vida Rex, o filho desse seu amigo, nascido há pouco mais de um ano, tem insistido em vê-lo, página por página, bem como pedido a sua mãe, com o indicador ora da mão direita, ora da mão esquerda à frente, a descrição de cada uma das reproduções que redescobre, como se o encanto delas emanado recriasse, nesses instantes fugidios, as cores de seu próprio mundo.

Pois é, caro pintor, essa banal historieta cotidiana me faz lembrar não fatos do que se passou na sua vida, mas sim restos que, eventualmente acrescidos à memória, deixam à luz, pelos olhos desse menino, a certeza do futuro, a quietude sobre a qual perseveramos em nossos caminhos e a serenidade do que não nos é possível remediar. Restos que atestam a força de sua arte, redesenham a contingência de nossos encontros e permitem a outros o tempo, sempre inacabado, de aceitar a feição transitória da vida.

O segundo soube por seu irmão, pois você mesmo lhe contou. Acidentado alguns dias antes, o primeiro a levar o Rex para casa, em 1984, estivera no hospital em uma cadeira de rodas para lhe ver. Dono de olhos agudos, talvez tenha notado na ocasião que a vivacidade do vira-cores que você inventou se ligava a muitas das obras que já adquirira de você, sobretudo a origem, em algum lugar do espaço, das paisagens imaginárias em que o mano viria ao mundo. Era um retrato do artista quando jovem cão, mas hoje certamente é muito mais do que imagem, exemplo ou modelo de sua pintura.

Companheiro nem sempre fiel das coisas amigas, destas cuja beleza várias vezes se revela por mãos tortas, em meio a angústias, desatinos e desvarios, esse meu irmão Rex se tornou um anjo não da guarda, ou mesmo da vigília, mas do entusiasmo, do júbilo, da celebração. Da palavra empenhada, da boa mesa, da cama farta e da alegria bissexta do cotidiano, que tivemos, eu e muitos outros, a sorte de partilhar com você.

Angelo querido, você partiu – a todos nós cabe, de uma maneira ou de outra, a hora de partir –, mas estou confiante de que sua obra continuará a alegrar infâncias pela vida afora, tanto as que vivemos quando pequenos quanto aquelas que seguem conosco ao longo da adolescência, da maturidade e da velhice. Aos que morrem muitas vezes se diz: “Descanse em paz”. Sua paz, contudo, era peace bull. Inquieta, desgarrada, bravia, mas sempre harmonia de um único dever a ser cumprido, o de não deixar extinguir o que em nós se inflama e nos dá alegria de viver. Sua memória, portanto, será sempre a que conseguirmos lhe prestar em cada um dos dias que nos restam. Em um simples olhar, no sorriso de uma criança, no afago de um cão, no trote voluntarioso de um cavalo, tanto nas brumas e no aconchego quanto nos rompantes e clarões; no gozo, enfim, de todos esses pequenos gestos e motivos desfiados do que de você, ainda e sempre, permanecerá conosco.

Lord, seu outro cão

tradução para o português de:

Luiz Eduardo Meira de Vasconcellos