Tanta coisa transborda da
internet que até minha memória está se tornando preguiçosa. A introjeção da
inteligência artificial nos afazeres diários transformou nosso modo de agir e
pensar e, quem sabe, até lembrar coisas do passado.
Hoje, fazendo uma busca
especifica no oráculo digital, um bit intrometido fez aparecer - do nada, sem
que eu tivesse solicitado - a foto da traseira de um velho Jaguar –com placa do
Estado da Guanabara – estacionado em um tempo distante, numa rua qualquer desse
país.
A surpresa me espantou.
Primeiro porque a consulta não tinha relação alguma com automóveis. Eu fazia
uma pesquisa para atualizar as informações sobre as ilhas gregas que visitei
muitos anos atrás. Dentre as ilhas consultadas estava a de Lesbos. A ilha, assim como as mulheres de Lesbos, ganhou notoriedade através
do tempo devido sua mais ilustre figura, a poeta Safo. Pertencente a alta
sociedade e extremamente culta, Safo organizou a primeira academia de mulheres,
onde ensinava música, dança e poesia.
Safo se inspirou nas grandes obras, como o
Ilíada e a Odisseia de Homero. Seu grande carisma a levou a reunir em torno
de si as mulheres de Lesbos e, com elas, desbravar um novo ponto de vista para a cultura grega: um ‘olhar’ o mundo à partir da própria mulher.
Até hoje Safo encanta mulheres e
homens. Platão a admirava. A chamava de “Musa Sábia”. Os romanos da Roma Imperial a tinham em alta
estima. A conotação pejorativa dada às mulheres que amam e se relacionam
sexualmente uma com as outras, só surgiu muito tempo depois da decadência do Império,
durante a Idade Média. Com o passar do tempo essa conotação ganhou musculatura
se tornando um rígido preconceito.
Deixando de lado os feitos maravilhosos e sedutores da poeta, mas,não sem antes mencionar uma fagulha da sua sensível e ousada consciência: “Alguns homens dizem ser as cavalarias, outros dizem ser os soldados, e outros dizem ser as naus a coisa mais bela sobre a terra negra. Mas, eu digo, o mais belo é o que amamos”, volto para a foto do calhambeque conversível branco que, tenho como certo, pertencia ao meu pai. O lindo Jaguar branco pérola - em perfeito estado - é exatamente como era e guardo na lembrança o carro do meu pai nos idos dos anos 50/60.
Deixando de lado os feitos maravilhosos e sedutores da poeta, mas,não sem antes mencionar uma fagulha da sua sensível e ousada consciência: “Alguns homens dizem ser as cavalarias, outros dizem ser os soldados, e outros dizem ser as naus a coisa mais bela sobre a terra negra. Mas, eu digo, o mais belo é o que amamos”, volto para a foto do calhambeque conversível branco que, tenho como certo, pertencia ao meu pai. O lindo Jaguar branco pérola - em perfeito estado - é exatamente como era e guardo na lembrança o carro do meu pai nos idos dos anos 50/60.
Naquela ocasião aquele tipo
de Jaguar era raro na paisagem do Leblon. Os pais dos meus amigos de infância
tinham lindos e modernos Cadilac’s, Chevrolet, Hudson, Dodge, Desoto, Buick, Oldsmobile,Ford e
outras marcas americanas. O Jaguar Mark V branco conversível, estacionado em
frente ao número 80 da Rua Afrânio de Mello Franco, era único no bairro.
Foi o Jaguar do meu pai que
me transportou em direção a primeira visão e ao sentimento inaugural do contato
físico e amoroso entre duas mulheres. A retirada do véu, que encobre os mistérios
em torno das relações amorosas entre gêneros, aconteceu no verão de 1956 ou 57. Eu era
muito garoto, tinha dez,onze anos ou pouco mais que isso, quando minha família tomou a estrada a
bordo do magnifico Jaguar Mark V, com destino a região dos Lagos, onde o fato aconteceu.
Só tempos depois, já adulto, entendi o impacto que a cena teve sobre mim.
Lembro de alguns verões com meus pais e os casais amigos que iam para a região se divertir, pescar, jogar pôquer, beber, dançar e fazer coisas de adultos que, para nós meninos, não eram assim tão interessantes e as quais ,tirante a sensação maravilhosa de liberdade, pouco lembraria mais tarde.
Mas, esse caso em particular, teve um destaque especial entre tantos outros que aconteceram na ocasião.
Só tempos depois, já adulto, entendi o impacto que a cena teve sobre mim.
Lembro de alguns verões com meus pais e os casais amigos que iam para a região se divertir, pescar, jogar pôquer, beber, dançar e fazer coisas de adultos que, para nós meninos, não eram assim tão interessantes e as quais ,tirante a sensação maravilhosa de liberdade, pouco lembraria mais tarde.
Mas, esse caso em particular, teve um destaque especial entre tantos outros que aconteceram na ocasião.
De dezembro a fevereiro eu,
meus irmãos e amigos deixávamos de lado os limites da vida na grande cidade, as
aulas e os professores e mergulhávamos de cabeça na liberdade de correr pelas
pedras, remar, nadar, aventurar no mar, caçar siris, guaiamuns e mergulhar
entre as rochas, sem tempo para retornar de uma aventura, aguentar advertências
ou reprimendas disciplinares. Calção, camiseta, snorkel, máscara e pé de pato era
tudo que usávamos da manhã à noite. Foi no retorno de um longo dia de aventuras, por volta das 7 da noite, concentrados
numa desculpa esfarrapada para dar ao ‘Comodoro’ Antunes sobre uma desastrosa
manobra que lançou seu barco inflável sobre as rochas, danificando o motor de
popa, que o ‘espanto' aconteceu.
Eu, meus irmãos, Alexandre e Ângelo
e o amigo Álvaro, estávamos tão concentrados na mentira que inventariamos que ao vislumbrar o grande Jaguar em frente a uma porta que supus ser do nosso
quarto não titubeei.
Meti a mão na maçaneta e a escancarei, deparando com a visão frontal de duas mulheres peladas, abraçadas e se acariciando na cama.
Não me recordo se
elas se espantaram mais que nós.
Por longos segundos fiquei agarrado à maçaneta
tentando entender a cena. Ninguém deu um pio, nem se moveu. Todos com olhar
fixo naquela cena. Elas se moveram bruscamente. Deram um salto e agarraram os lençóis
como quem agarra uma tábua de salvação. Dei um pulo para trás, fechei a porta e
saímos em disparada.
Agora, tínhamos dois
problemas para resolver. Explicar para o pai o desastre com o barco do Comodoro
e tentar entender o que tínhamos acabado de ver.
Ora, o que tínhamos acabado
de presenciar era hierarquicamente menos grave que o desastre com o barco do Comodoro.
Além de ser mais fácil de explicar já que não precisávamos mentir. Naquela hospedaria nós não olhávamos os números
dos quartos. Nossa referência era o Jaguar, sempre parado em frente ao nosso
quarto. Por sorte ou azar meus pais saíram enquanto nos aventurávamos no mar.
Quando retornaram estacionaram na frente de outro apartamento. Explicar –mentir
- para o pai sobre o que levou ao desastre
com o barco do Comodoro era o maior dos problemas. Em vista disso, tentar
entender o que tínhamos acabado de ver era moleza. O prejuízo do barco foi
rapidamente resolvido entre os adultos. Não contei para meu pai a cena das duas
mulheres peladas. Mas, contei para minha mãe. A interpretação dela sobre o
ocorrido foi tão natural e convincente que, desde então, o amor, as caricias e
a libido entre as mulheres nunca se tornaram um problema, sequer um fetiche para
mim, como homem. Numa noite, ao entrar no salão inundado pelo cheiro dos
cigarros e do whisky, onde os adultos se debruçavam sobre a mesa da jogatina
que varava madrugada, lá estavam as duas, sentadas na mesma mesa da minha mãe e
do meu pai e outros jogadores. Enquanto falava com minha mãe sobre alguma coisa que fariamos no dia seguinte, eu não tirava os olhos
da morena que eu achava a mais linda das duas. Aliás, eu achava as duas muito
bonitas. Ao me despedir de todos, ela me sorriu e piscou carinhosamente.
Acho
que enrubesci, fiquei quente, mas gostei daquela cumplicidade.