segunda-feira, abril 25, 2016

Ah! Essas 'almas sensíveis'

O ato terrorista que destruiu o WTC levando junto mais de três mil vidas chocou o mundo ao mesmo tempo em que inspirou ‘almas sensíveis’. Além das manifestações de louvor à beleza dos atos para glória de Alá, ocorridas em regiões do Oriente Médio, as análises de cientistas políticos, o luto e a comoção das nações do Ocidente, ouviu-se muitas declarações demandando retaliação militar pesada dos EUA contra Bin Laden e a devastação das populações e territórios onde os serviços de inteligência achavam que se concentrava o poder de decisão da al Qaeda. Nas palavras do presidente Bush " Hoje somos um país que despertou para o perigo e que foi conclamado a defender a liberdade. Nosso pesar se tornou ira, e nossa ira se tornou determinação. Quer tragamos nossos inimigos à Justiça ou quer levemos justiça aos nossos inimigos, saibam que a justiça será feita. " Na ocasião, o compositor Karlheinz Stockhausen,considerado um dos maiores compositores do final do século XX, autor de obras ambiciosas como o "Quarteto de Cordas com Helicópteros " (Helikopter-Streichquartett) ficou tão impressionado com a grandeza e a ousadia do ataque que não se furtou de expor ao mundo seu espanto ao comentar que estava diante: "da maior obra de arte de todos os tempos" ou "a maior obra de arte de Lúcifer". Após a reação global ao seu comentário rapidamente retirou a sua declaração e pediu desculpas: “acho que eu deveria ser perdoado”,disse ele. Os amigos do compositor tentaram justificar o 'encantamento' do arista diante do maior espetáculo de destruição compartilhado na rede mundial de computadores, tecendo elogios à sua música e justificando que as manifestações do artista deveriam ser entendidas como uma reação natural pelo fato da sua musica ter sido negligenciada nos últimos anos. Para eles, o artista tem uma obra que precisa ser ouvida. Acho que não sou o único artista que não tece ilusões quanto a aceitação definitiva das suas obras dentro das complexas conexões sócio/ políticas/culturais que elegem personagens das artes e sua produção. Um artista que dedique tempo e atenção,siga um planejamento de marketing que coloque sua produção em vários eventos ,usufrua de visibilidade midiatica e situação financeira confortavel ,que o inserem no gosto das altas esferas do negócio da arte e aplausos do senso comum,muitas vezes se esquece de refletir sobre as viradas do sistema e a decadencia de estilos.Não posso afirmar que Stockhausen não deu atenção a esse dado.Porém,seus amigos e admiradores dizem que ele sofre com o ostracismo. Caso isso seja um fato,é um fato mediocre.Artistas que atingem o sucesso e não refletem sobre as voluveis oscilações do gosto geral, só vão se dar conta de que o ostracismo existe quando dois aviões se chocam contra duas torres, ocasionando milhares de mortes e nenhum jornalista lhe telefona para pedir sua opinião sobre a trágica ocorrência. Já os artistas que enfrentam do sol nascente ao poente,as circunstancias concretas da sua jornada criativa, reações adversas da crítica,da mídia e a volatilidade do mercado, convivem desde a aurora com o horizonte do ostracismo. Essa perspectiva é uma porta sempre aberta na sua alma inquieta. O ideário pop star e o 'laises faire' são manuais que artistas dedicados a difusão constante dos seus egos lhes permite respirar e viver uma vida inteira bafejada pelo sucesso. Quando isso esmorece, por qualquer motivo, a noite cai e escurece seus sonhos. Aí podem acontecer coisas ruins,que o fazem sofrer, sem uma explicação que o console. Se seus admiradores estão certos, foi isso que despertou Stockhausen o levando a se expor a luz dos holofotes para opinar sobre as funestas explosões no WTC. Contudo,para mim, a declaração de Stockhausen, nem é tão patética. Mais patético é seu arrependimento. Do ponto de vista cultural, sua declaração é só espetacular nada mais que isso. E mais, sua desculpa é uma rebordosa emocional que o coloca de volta no foco da comunicação. Nos dois casos são declarações inócuas que demonstram que Guy Debord sabia o que estava falando quando escreveu 'A Sociedade do Espetáculo', livro precursor de toda análise crítica da pós moderna sociedade de consumo e suas implicações na comunicação de massas e na formação da mentalidade 'artística' e política do século XXI. A declaração de Stockhausen é Inócua por se tratar de palavras para expressar uma ideia confusa e inadequada, em contraponto à comoção mundial que se abateu sobre o mundo. Se ele tivesse optado por compor uma Sinfonia para Dois Boeings, talvez não recebesse em troca tanta ira. Mas não, optou pela 'palavra' ou opinião, se preferirem esse termo. Aqui, entre nós, brasileiros, vejo muitas 'almas sensíveis' se revoltatarem com palavras mais do que com fatos e ações malévolas concretas,realizadas. Imagino o que algumas 'almas sensiveis ' sentem quando absorvem promessas irrealizaveis de politicos inescrupulosos ou leem versos obscenos vindos da criação poética contemporânea. Na esfera provinciana,um elogio tosco do deputado Bolsonaro ao Ustra,como réplica a outro elogio estúpido do deputado Renato Simões (PT-SP) que em 2014 , proferiu um discurso no plenário da Câmara que nada mais era que uma ode ao terrorista Carlos Marighella. Os dois episódios grotescos detonaram um debate também estúpido nos meios de comunicação. Ora,mutatis mutandis, os dois discursos em nada tem serventia, exemplo e conselho para quem preza a democracia,acima das premissas de correntes ideológicas e partidárias. Ainda que as duas falas, enquanto retórica parlamentar, cultuem a memória de um proto ditador e um torturador, nesse contexto,não tem o mesmo peso concreto de um jato se chocando contra o prédio do Congresso ou uma horda de deputados de direita torturando ao vivo e a cores gente de esquerda. Fico abismado que num país de subletrados tanta gente se espante com palavras, quando o fato real e grave é que nesse caldo de toxinas verbais é que a classe politica afoga os possiveis avanços da sociedade brasileira. No tocante a arte,onde supostamente reinaria a liberdade de expressão, o mínimo que se espera de um artista,cuja obra se concentre em quebrar paradigmas e descortinar belezas inéditas é que ela seja um estímulo para se ir alem do lugar comum. Coisa rara! Por que estou falando isso? Explico: O ambiente artístico da atualidade está saturado do banal e do repetitivo. É comum ver artistas se dizerem preocupados e motivados por temas de cunho social ou político, se colocando como bravo defensor das minorias e dos injustiçados e , reclamando para si o campo da arte,como um Olimpo da sua verdade particular,capaz de salvar o mundo da barbarie. Mal comparando, são Stockhausen's do bem. Hoje, referir-se à assassinatos em massa como arte, como fez Stockhausen, não é mais um ato solitário. Tudo, até mesmo os rompantes em defesa de uma política desastrosa e criminosa se consolidou, em forma e em conceito, como um manifesto que ameaça as 'almas sensíveis'. Confundir palavras com a verdadeira banalidade do mal e as consequências da massificação da arte, revela apenas a extensão e a capilaridade da mediocridade dos dias de hoje. Como não dou crédito a fãs e admiradores de artistas, prefiro aceitar a ideia de que Stockhausen, deu conta da tolice que falou. Voltou atrás e se desculpou. Eu o perdoo! Não o desculpo pela fraqueza de caráter mencionada por seus admiradores frente às agruras do ostracismo. Mas, sim, pelo fato de que ao falar essa asneira não o torna um terrorista de fato e,muito menos, um influencer alucinado que 'inspirou' a Al Qaeda a cometer o bárbaro crime.