domingo, junho 08, 2014

A pele que nos protege


Arsène Housset(nome de nascimento),Alfred Mousse(pseudônimo),era a dupla de nomes que se agregava a face do escritor francês Arsène Houssaye (18141896).Além da  frenética disposição para escrever sobre os mais variados temas, Houssaye teve muita influencia no meio cultural quando em  1843 dirigiu a revista L’artiste,aberta a jovens escritores como Charles Baudelaire, Theodore Bainville, Henri Murger Monselet entre outros.
Também colaborou com outras duas publicações como  La Revue des Deux Mondes e Revue de Paris.Nos anos finais da decada de 70,durante minha residencia em Paris,me caiu nas mãos um dos seus livros mais famosos“História da quadragésima primeira cadeira da Academia” (1845).Fui atraído pelo tema desse livro que tocava, de maneira curiosa, sobre as “escolhas” da cultura que elegem, sem que saibamos exatamente os motivos,as obras,artistas e autores que se consolidam como modelos  de uma época e  ícones da sociedade.O livro toca de raspão no enigma  da hierarquização dos modelos estéticos pela cultura dominante.Nesse livro Arsène Houssaye criou discursos de ‘aceitação’ imaginários de grandes escritores que nunca pertenceram à Academia Francesa. A ideia de publicar discursos  imaginários  feitos por escritores não reconhecidos pelo mérito acadêmico, me pareceu  uma maneira irônica de decretar uma ruptura com os cânones conservadores que    definiam os parâmetros artísticos da época e um passo arrojado que precedeu as atitudes dos artistas mais radicais da modernidade.      
Mais intrigante ainda foi  a decisão de Houssaye  de jamais tentar  negociar  politicamente - teria dinheiro e prestigio para isso- ou mesmo aplicar-se para Academia Francesa.Vale dizer que para Houssaye a Academia Francesa era o motor da ascensão de figuras de proa da cultura e lugar de consagração dos literatos.São inúmeras as suposições sobre a repulsa de Arsène à instituição.Hoje,esse velho modo de louvor literário foi superado.As academias não mais influenciam a politica cultural,ao contrario são influenciadas pelas circunstancias do poder politico.Nos dias correntes a consagração social de um artista é forjada pelo mercado de arte,a industria editorial,instituições publicas e privadas e pelos veículos de comunicação.As Academias se tornaram emblemas opacos de um passado glorioso da corporação dos escritores e refúgios seguros para a velhice.Mais curioso ainda é que a postura arrojada do Houssaye no tocante a “institucionalização” da arte e  na contramão do sistema, se contrapõem a sua atitude conservadora ao vetar a publicação no La Presse(1862) dos poemas em prosa “Paris Spleen” de Baudelaire  a ele dedicados,sob o argumento de que os poemas, em sua opinião, chocariam os leitores.Ele atrasou a publicação por todos os meios, afetando severamente Charles Baudelaire que sofria da falta cronica de dinheiro.
Pois bem, a obra de Baudelaire segue pulsando na longa travessia do tempo,enquanto Houssaye desfrutava do seu  ostracismo.Quer dizer,até semana passada, quando o New York Times publicou uma matéria em que  Houssaye  reaparece na cena cultural por motivos paralelos a sua obra literária e,de certa forma, inusitado,enquanto objeto cultural.Um romance ou tese a ele atribuído intitulado  “Dos Destinos da Alma”,acervo da Houghton Biblioteca,vem, desde abril deste ano, fascinando os pesquisadores da instituição.Uma nota manuscrita na publicação declara que o livro foi encadernado com a pele tirada das costas de uma mulher. Uma vez que,segundo o manuscrito,"um livro sobre a alma humana merecia ter uma cobertura humana”.Comprovada cientificamente como real, resta saber quem fez a “criação” e a quem pertencia a pele que reveste a publicação. Se Houssaye dormia sossegadamente nas baias do esquecimento, esta semana foi  subitamente despertado do sono e hoje se sujeita a duas especulações.A primeira é se foi o próprio autor quem determinou a edição de um exemplar  tão enigmático onde a  pele que nos protege e nos contata ao mundo foi extraída de uma pessoa e aplicada no exemplar .A outra é se a concepção foi feita pelo doador do livro que 1934  passou a integrar o acervo da biblioteca.