Desde o seu surgimento, na Renascença, a perspectiva como
elemento de composição pictórica, foi paulatinamente se consolidando no
imaginário artístico e nas praticas pictóricas como um novo conhecimento. Imaginem como antes do advento
da perspectiva se processava a informação e se organizava uma cena representativa
do ponto de vista de um pintor? Imaginem, também, as conexões de códigos
comuns compartilhadas entre observador e imagem pictórica. Para que essa imaginação se constitua numa abordagem mais proveitosa
é necessário nos munir dos relatos históricos, porém, esse recurso, no modo de
uma narrativa, por si só, não nos conduz para um ponto especifico no tempo e no
espaço,nos colocando dentro do episodio e submetidos as categóricas sócio culturais,
hábitos e costumes dominantes. Uma imersão através das camadas da historia pode
nos descrever em detalhes muito precisos as condições de vida, cultos e
estrutura social. Essa atmosfera nos consente montar um cenário de suposições
que, como um roteiro cinematográfico, nos coloca diante da cena como
visitantes. Basta um passo para frente e estaremos noutra camada do tempo, um
passo atrás, no período medieval. Os estilos pictóricos desse período, por
razões diversas, (inclusive, por disciplina, método e balizamento cultural) são
testemunhos de que a ilusão visual de profundidade não era um conhecimento
exercido na pratica pela maior parte dos artistas. No entanto,
pela marcante influência dos gregos (e romanos, em evolução à arte grega) esse intento,
como narram historiadores, era latente no interesse dos artistas pré-perspectivistas.
Contudo, a ideia de somar aos seus conhecimentos e técnicas a profundidade
ilusória como um elemento relevante na composição de uma pintura, permanecia um
grande desafio a ser superado.Para alcançarem um efeito espacial persuasivo,
ainda que de forma rudimentar, muitos artistas usavam as linhas diagonais como
forma de obtenção de espaço interno de representação Esse processo empírico ficou conhecido como espinha de peixe. Apesar das excelentes pinturas do período a
pergunta que se coloca é: por que artistas tão dotados não tinham se dado conta,
até então, da existência do ponto
de fuga?
Várias especulações rondam essa ‘santa
ignorância’ ou melhor, essa forçosa impossibilidade. As hipóteses mais fantásticas
discorrem sobre um obstáculo de natureza orgânica, neural mesmo, que me parece
bastante arbitrária. Outra, explica essa impossibilidade como algo não atribuído
a fatores cognitivos e técnicos, mas, a subordinação à doutrina de perímetro conferida
pelo olhar religioso,portanto,quase uma regra. Nessa demarcação o
geocentrismo, quando muito o heliocentrismo,
ainda que parcialmente tolerado, eram limites intransponíveis ao saber.
Um tabu. Galileu- nascido 45 anos após a morte de Leonardo- legou para a humanidade uma contribuição
extraordinária com o seu método científico em contraposição a metodologia aristotélica, soberana para
a ciência da época e que reinava absoluta no agrément religioso.Pois bem,com
todo o seu gênio, Galileu que além
de sábio era cristão, não logrou escapar
da Inquisição .Mas,isso é outra historia,porém,serve aqui para ilustrar
que as idas e vindas em matéria religiosa atravancavam o desenvolvimento da
ciência e,por que não dizer,da representação artística de mundo, subjacente a
doutrina da Igreja Católica.
É senso comum que o processo de
transformação cultural dos modos de fazer é complexo demais. Primeiro porque exige
uma abertura da percepção do real e segundo, porque uma das perturbações mais
corriqueiras da cultura diante do impacto do novo é a tendência dos agentes
dominantes de se refugiarem na tradição, ou seja, naquilo que é estabelecido. Além
disso, o surgimento de algo previsível, no plano do sensível, por si só, não desfaz
os códigos antecedentes, os diluindo inexoravelmente no passado. Mas, ainda que
um novo conhecimento seja sutilmente percebido por artistas muito especiais, as
ferramentas e técnicas e não apenas eles, disponíveis não davam conta de
opera-las simultaneamente e no mesmo ritmo em que esse novo saber é absorvido e hierarquizado nos códigos
estético-culturais dominantes. Quando o conhecimento (ciência) e a
sensibilidade (ousadia) se amalgamam, abre-se um portal para as mudanças mais
substantivas da cultura.
Ainda que no ano 1000, o matemático e filósofo árabe Alhazen, na sua obra Perspectiva já tivesse, teoricamente,
fornecido uma base óptica da perspectiva,suficiente para fundamentar pinturas
onde os objetos eram dispostos de modo convincente e esquematizava, pela
primeira vez, a compreensão de que a luz projeta-se em formato cônico no olho
humano, Alhalzen não era um pintor. Ele estava mesmo era preocupado com a
óptica, não com métodos de representação comum aos pintores.As interelações
entre conceito e concepção estética não
é matéria simples . Além disso, conversões cônicas são matematicamente difíceis,
de forma que a construção de um desenho utilizando-se delas seria bastante demorado
e, na ocasião, talvez, impraticáveis. Porém, nada impede que especulemos que os
grandes mestres da pintura msmo antes da consolidação desse saber, vislumbraram no método Alhazen as bases mais perfeitas para a representação pictórica. A
perspectiva é um expediente geométrico que reproduz de forma convincente a ilusão da realidade. Os objetos, dispostos no plano seguindo uma orientação precisa da luz, tamanhos e proporções, organiza os fatos visuais e os estabiliza, colocando o observador num ponto ao qual o 'mundo' todo converge.
Alguns estudiosos estimam que muito antes do uso corrente da perspectiva pelos artistas do resnascimento,outras culturas ja a utilizavam,ainda que de forma simbólica, para definir as posições de personagens mais importantes do registro visual.Porém,essa é uma hipotese que levanta muitas discordâncias.O fato incontestavel é que o conjunto de ações e o acervo de obras do renascimento confirmam que a consagração da perspectiva na obra pictórica é um feito que se consolida com o renascimento. A emblemática frase de Leonardo Da Vinci fornece uma pista do
impacto cultural causado por sua aplicação: ‘a pintura é uma coisa mental’. O pensamento
de Leonardo, neste caso, é um contraponto ao de seus contemporâneos. Além de estimar
para a arte o mesmo status da ciência, Leonardo deu ao olhar uma compreensão mais
complexa do que as apresentadas até então pelos seus pares.É claro que ao deflagrar
tal afirmação Leonardo tinha em mente objetivos precisos em relação a sua obra .Na
ocasião,contudo,ninguém imaginaria o
quanto esse aforismo seria poderoso para as transformações propostas pelos artistas modernos que tempos depois se beneficiariam
da noção de que a arte é um processo mental.
Essa introdução, na sua
perspectiva temporal, é uma tentativa de ilustrar as investidas dos sucessores de
Leonardo que, como ele, firmaram sua produção a partir do primado do olhar como
meio mais eficiente para alcançar o saber e sua consequente difusão. Nesse contexto,
a pintura se constituía o meio mais ajustado a ideia de perfeição. Contudo, apesar da potência
liberada por tal evento, as hierarquias estéticas, montadas após o renascimento,
culminaram na configuração das academias, dando margem a rigidos modelos que
privilegiavam a técnica e o método em detrimento da experiência singular da
autoria. Com o passar do tempo, exauridas, as academias foram eclipsadas pelos
cortes modernos advindos do
impressionismo, expressionismo e demais ismos, até atingirem seu ápice na
ruptura moderna promovida pela vanguarda histórica.
Pois bem, penso que nesse parágrafo
ficou claro que pretendo questionar a investida
da pós modernidade contra o primado do olhar como o eixo da abordagem
das artes plásticas ou artes visuais.Tirante
os aspectos subjetivos que ocorrem no contato entre observador e uma obra de arte,
excluindo-se os itens relativos a
sensibilidade,coisa difícil de mensurar,o que temos como fator predominante é
que para as artes visuais o olhar é o campo
primordial,porque não dizer;exclusivo.Desprezar esse sentido, em prol das sensações tocantes,é entorpecer o olhar,quase o fechando.
Entretanto, os cortes estéticos promovidos
pela vanguarda histórica e por movimentos artísticos subsequentes, infligiram nos
artistas uma serie de reflexões que visavam, no fundo, estender para fora do
plano bidimensional suas investidas mais radicais. Vou pular citações de caráter
descritivo sobre as diversas correntes estéticas do modernismo para ir direto a
um ponto que me parece comum a maior parte das estratégias das vanguardas contemporaneas. Como a representação naturalista, os limites da condição do objeto estético
contemplativo, os domínios das grandes narrativas, os temas nobres da arte e as
ideologias estéticas consagradas já haviam sido relegados ao passado pelos
cortes mais representativos do modernismo, os artistas pós-modernos se depararam
com um grande dilema. O espólio da modernidade empurrou para as gerações seguintes
um desafio intimidador. Se por um lado as novas gerações se beneficiavam dos
avanços alcançados num curto espaço de tempo pelo modernismo, por outro, se
viam compelidos a romper com o passado ou serem arrastados para confrontos indigestos. Rejeitar, apriorísticamente, os paradigmas modernos ainda predominantes foi uma saida. Tal atitude, a principio, pressupõe uma ousada emancipação em
relação aos postulados herdados. Mas, só a principio e apenas para os incautos,
porque, o olhar arguto desvenda rapidamente a trama que fertiliza os
procedimentos que se sucedem e revelam um artifício penoso,por vezes mimético e sem consequências renovadoras para o pensamento e para a arte. É muito chato explanar aqui o porquê da
profusão de teorias (hoje, todo mundo tem uma só pra si) e fundamentos que se
sobrepuseram desde as ultimas décadas do século XX.Mas,basicamente,podemos dizer que elas proliferaram para embasar e emprestar significado para intenções um tanto
banais a titulo de paradigmas estéticos dignos de atenção. A sucessão veloz e ininterrupta de paradigmas individualizados deu
corpo a uma miríade de estilos artísticos que leais à pluralidade, deitaram e rolaram num padrão estético dominante, gerador de
coisas artísticas inspiradas em autobiografias estetizadas, misturadas a sub antropologia
acadêmica e atitudes burlescas e iconoclastas. Não podemos deixar de lado as citações
proto-revolucionárias com pitadas, aqui e ali, de condimentos filosóficos e referências especificas ao campo da arte.Uma espécie de troca de códigos entre 'colegas'. Um paradoxo tão evidente é a parte
mais sedutora do cardápio da pós-modernidade.
Se aventurar num tempo despojado de
história não é mole!
O curioso disso tudo é que ao
lançar ao mar a sequência da historia o que sobra é nada mais que uma montanha
de escombros. Em terra de ninguém e desprovida de historia, pegar um naco do Warhol juntar com um pedacinho de pintura paisagística japonesa e 'rasgar' a superficie numa alusão pueril a obras de um artista do passado pode
resultar em espanto e histeria novidadeira,no sentido mais rentável dos termos.
É muito chato explicar aqui, em detalhes, a profusão de teorias que se sobrepuseram para embasar os desígnios singulares que seguem à risca as técnicas da comunicação e do espetáculo. Porém, um ponto me parece significativo nesse conjunto. Aí, voltamos ao inicio desse texto que trata o olhar como o sentido privilegiado para abordagem das propostas artísticas. Mas, sei lá porque diabos, os herdeiros da modernidade lançaram esse recurso no quinto dos infernos e priorizaram suas experimentações com ênfase no sensorial, na micro narrativa,na conceituação egocêntrica e em caixinhas de surpresa para apresentação de cenas estéticas bombásticas (feito para os grandes eventos,toda Bienal tem uma),aludindo uma espécie réplica compacta e pronta para o consumo das massas de um "choque do novo",troço que a midia cultural adora e registra como polêmica. As instalações,objetos insólitos,atos,gestos, atitudes e pequenas narrativas de natureza intima, por razões evidentes, lançaram ao mar o primado do olhar como eixo prioritário na relação autônoma entre observador e a arte.O que vale e o que se deve imprimir no imaginário do espectador é o sentido do espetáculo multimídia,cenográfico,caleidoscópico que, no entender dos autores e curadores das grandes mostras institucionais,arrepiam os sentidos do observador, refletem uma cultura multifacetada e a pujança da sociedade contemporânea.É nos intertícios dessa modalidade aparentemente tolerante que qualquer expressão pode se converter em obra de arte. Para que o fenômeno se complete,os agentes do sistema de arte,as instituições,galerias,mídia e editoras emitem um certificado de reconhecimento cultural. Bem, nesse ponto é preciso fazer justiça. Os curadores, agentes mais interessados nesse jogo, o elegeram por razões que dizem respeito a estratégias específicas de natureza acadêmica ou econômica, em sincronia com o sistema de arte,para difundir suas conjecturas teoréticas.
É muito chato explicar aqui, em detalhes, a profusão de teorias que se sobrepuseram para embasar os desígnios singulares que seguem à risca as técnicas da comunicação e do espetáculo. Porém, um ponto me parece significativo nesse conjunto. Aí, voltamos ao inicio desse texto que trata o olhar como o sentido privilegiado para abordagem das propostas artísticas. Mas, sei lá porque diabos, os herdeiros da modernidade lançaram esse recurso no quinto dos infernos e priorizaram suas experimentações com ênfase no sensorial, na micro narrativa,na conceituação egocêntrica e em caixinhas de surpresa para apresentação de cenas estéticas bombásticas (feito para os grandes eventos,toda Bienal tem uma),aludindo uma espécie réplica compacta e pronta para o consumo das massas de um "choque do novo",troço que a midia cultural adora e registra como polêmica. As instalações,objetos insólitos,atos,gestos, atitudes e pequenas narrativas de natureza intima, por razões evidentes, lançaram ao mar o primado do olhar como eixo prioritário na relação autônoma entre observador e a arte.O que vale e o que se deve imprimir no imaginário do espectador é o sentido do espetáculo multimídia,cenográfico,caleidoscópico que, no entender dos autores e curadores das grandes mostras institucionais,arrepiam os sentidos do observador, refletem uma cultura multifacetada e a pujança da sociedade contemporânea.É nos intertícios dessa modalidade aparentemente tolerante que qualquer expressão pode se converter em obra de arte. Para que o fenômeno se complete,os agentes do sistema de arte,as instituições,galerias,mídia e editoras emitem um certificado de reconhecimento cultural. Bem, nesse ponto é preciso fazer justiça. Os curadores, agentes mais interessados nesse jogo, o elegeram por razões que dizem respeito a estratégias específicas de natureza acadêmica ou econômica, em sincronia com o sistema de arte,para difundir suas conjecturas teoréticas.
Oh! Ideias!O que elas são capazes
de promover.
Para encerrar, falarei da minha
surpresa ao ir essa semana à escola de arte aqui do Rio para uma conversa informal
com alguns estudantes. O texto acima, parte das anotações que mandei para um
fórum sobre arte há alguns anos, foi o foco da minha apresentação. Há muito
tempo eu não ia a escolas de arte. No caminho divaguei sobre a predominância dos
modelos estéticos fundados no sensorial, nas instalações, gestos, atitudes e
demais procedimentos afins que nos últimos trinta anos são predominantes nas
Bienais globais, tem grande visibilidade midiática e se destacam nos eventos
institucionais e oficiais de arte. Será que lá verei simulações dessa vertente
da arte de grande destaque curatorial?
Que nada!Qual não foi minha
surpresa quando constatei os corredores apinhados de cavaletes, pinturas penduradas por toda parte,salas
repletas de estudantes enfronhados na velha prática pictórica.
Tem
alguma coisa aí a se aprender?