Adriano de Aquino
Uma tragédia permanente, um canal aberto para o inferno que não encontra
um fim. Por esse abismo deslizam um grande numero de penitentes. O que mais
comove é a multidão de crianças condenadas a essa aberração que comprova o abandono extremo do qual só se livram atravessando para a morte prematura. Enquanto duram, são atrações
semivivas dos confins do mundo e uma constatação escandalosa da incompetência
das sociedades modernas e ricas de atendê-los e fazer valer os princípios
fundamentais da vida e dos direitos humanos. Mostrem-me as mais festejadas
vitorias políticas, as mais racionais metodologias de produção de bens,
alimentos, mobilidade, conhecimento e diversão, a face oculta da lua, os magníficos
templos religiosos, as vestes douradas do Papa, a pompa dos políticos, as mais promissoras pesquisas sobre
Deus e seu avatar cientifico o Bóson de Higgs, o ultimo hit da tecnologia de
comunicação, as mais badaladas e milionárias artes da atualidade que reclamam para si a renovação,
os homens mais ricos do planeta,as mais belas modelos,o ultimo hit da moda e os reluzentes monumentos hi-tech da contemporaneidade e vos direi:nada disso,por
maior esplendor que irradie, ofusca o espectro desse
inferno.
A completude civilizatória é um sonho, uma miragem?
Quando se fala em canal aberto para o inferno, pensamos imediatamente em
alguns países da África. A tendência de afastar de nós tamanha tragédia é
compreensível, todavia, a crueldade contra as crianças não é atributo exclusivo
dos povos africanos. Da uma olhada ao seu redor, passeie pelas ruas da sua
cidade não apenas com objetivo de usufruir as ofertas e o conforto da metrópole
e constatará o contingente de meninos perdidos vagando pelas ruas. Mas, a
concentração e a larga escala da brutalidade dos conflitos africanos centra o
foco da mídia global nessa região. A persistência de um poderoso paradoxo
cultural que se espraia pelo continente, embaça a visão externa sobre os
conflitos sangrentos nessa parte do globo e imprime, no olhar estrangeiro, a
ideia de que a África é uma alegoria cruel das adversidades da modernidade. Se
por um lado a resistência cultural das muitas etnias africanas que se negam a
abandonar suas tradições seculares é motivo de orgulho para alguns, para
outros, essa resistência, que alcançou seu auge na luta contra a dominação
colonial europeia e vem conformando com muita dificuldade nações soberanas,suprimindo as ditaduras violentas e corruptas,abrem perspectivas animadoras . Essa onda renovadora divide em dois o
continente e as opiniões do mundo sobre a África. De um lado a tentativa de
mudança gradativa para regimes mais abertos e de outro, o sobressalto diante do
terror imposto pelos golpes de estado, as milícias, os banhos de sangue e os
massacres descomunais que reativam o cenário de horror. Essas violentas
manifestações impressionam e prendem a atenção da comunidade mundial por
força do calibre das iniquidades praticadas contra as crianças.
Numa visita ao Senegal tive oportunidade de conhecer um centro de ajuda
aos órfãos das guerras africanas. Mantenho contato com pessoas ligadas a essa
organização que informam sobre os benefícios das ações solidarias da comunidade
internacional e, também, das dificuldades crescentes com a retomada dos
confrontos no Sudão, que empurra um enorme contingente de crianças para a
frente de batalha,a miséria, a fome e a morte. No Brasil, os meninos perdidos
não são órfãos da guerra civil. Porém, isso não significa que estejam livres da
tirania e menos expostos à crueldade. Algumas organizações brasileiras sérias
tentam reduzir o contingente de meninos perdidos. Essa é uma missão árdua que
carece tanto de recursos financeiros quanto humanos, além de expor os
colaboradores aos conflitos armados nas comunidades dominadas pelo trafico. As
políticas públicas brasileiras para esse setor são tímidas, quase caricatas e,
maior parte das vezes repressiva, o que só piora a situação dos jovens.
Voltando à retomada do terror sudanês contra as crianças; em junho passado o NYT publicou uma matéria assustadora feita pelo repórter Jeffrey Gettleman. Seu texto nos coloca frente a frente com o drama dessas crianças e a imprevisibilidade de uma solução de caráter prático. Abaixo um resumo da matéria.
John Prendergast, cofundador do Enough
Project, luta para acabar com o genocídio e crimes contra
a humanidade. Ele trabalhou há 20 anos com os Meninos Perdidos. "Os
sobreviventes pareciam uma história terminada, para nunca mais ser repetida",
disse ele. "Mas, aqui estamos nós novamente."
O Sudão, talvez mais do que qualquer outro país na
região, parece ter uma capacidade destrutiva de voltar a afundar-se nos piores dias do seu passado. Muitas nações africanas enfrentaram a guerra civil mas,
quando os conflitos chegaram ao fim, algumas começaram a se organizar. Ate
mesmo a Somália, crivada de balas, aos poucos se livra do caos. Entretanto,por
56 anos com poucas tréguas, os sudaneses tem sido vitimas da guerra. Uma guerra
sem fim que se espalhou por muitos
lugares.Uma característica da estratégia de contra-insurgência do governo sudanês
é um ataque impiedoso contra civis, desencadeado no sul, na década de 1980, nas
Montanhas Nuba na década de 1990 e em Darfur no início de 2000.Agora, em 2012, as Montanhas Nuba são novamente o
alvo do bombardeio da força aérea sudanesa que forçou aldeias inteiras a se
retirarem para as cavernas do cume, deixando os campos e os mercados vazios e
as pessoas à beira da inanição.
O derramamento de sangue em Nuba é dirigido por alguns dos mesmos
funcionários responsáveis por massacres anteriores, como o presidente Omar
Hassan al-Bashir, no poder desde 1989, e Haroun Ahmed, governador do estado,
que abrange as Montanhas Nuba. Ambos são procurados pelo Tribunal Penal
Internacional , acusados de crimes contra a
humanidade pelo derramamento de sangue
em Darfur e Bashir além de serem também acusados
de genocídio. A atual ofensiva parece centrar seu alvo nas crianças de Nuban. Elas
estão na mira das ações criminosas e, muitas vezes, não há para onde correr.Um zelador no campo Yida disse que 14 meninos que tentavam chegar aqui
foram mortos a tiros em um posto do Exército sudanês. Estilhaços de bomba feriram
outros. A doença está varrendo o campo e muitas crianças que chegam a Yida
nas costas de suas mães estão tão magros e doentes que são imediatamente levados
para o hospital de campo e entubados para receberem alimentação.
Antes mesmo da sua independência em 1956, o Sudão tem sido marcado por
tensões que se alastram do centro para periferia com explosões e destruições
arrasadoras. O governo central tem uma tradição de brutalidade e os grupos
minoritários do interior estão fortemente armados e tem, para aumentar a dose de azar da população, uma tradição de
insurreição.A situação desesperante leva os pais a expedirem seus filhos em odisseias
que se estende por toda a frente de batalha e pântanos infestados de malária.
Essas crianças, vítimas da crueldade maciça, estão repetindo um dos capítulos
mais sórdidos da história do Sudão: o périplo ameaçador dos chamados Meninos Perdidos que, durante a guerra civil na década de 1990,vagavam
aos milhares através de centenas de
milhas, esquivando de milícias,
bombardeios e leões.
Agora, uma nova geração de Meninos Perdidos está ressurgindo de uma
guerra que, apesar de um acordo de paz, nunca findou completamente.
Musa Haidar, 14, recentemente refugiado em Yida é um dos 1.000 meninos
que chegam todos os dias ao campo que se expande num mar de lonas brancas das
Nações Unidas entre a selva verde exuberante. Com Haidar estavam outros
oito meninos com roupas rasgadas e barrigas cheias de grama, seu único sustento
alimentar por vários dias.Eles estavam com os pés descalços, observando atentamente um enorme
tonel de feijão fervendo e prontos para uma refeição real e uma nova
casa: uma caixa de papelão em uma cabana infestada de ratos."Não sabemos mais sobre os nossos pais", disse Haidar, se
atrapalhando para enfiar os botões quebrados nas casas de uma camisa
doada. "Mesmo se voltarmos, não encontraremos mais ninguém.”
Esse resumo da uma ideia do
tamanho e largura da vala escancarada para o inferno que se abre para os meninos do Sudão.