terça-feira, julho 31, 2012

Os meninos perdidos


Adriano de Aquino

Uma tragédia permanente, um canal aberto para o inferno que não encontra um fim. Por esse abismo deslizam um grande numero de penitentes. O que mais comove é a multidão de crianças condenadas a essa aberração que comprova o abandono extremo do qual só se livram atravessando para a morte prematura. Enquanto duram, são atrações semivivas dos confins do mundo e uma constatação escandalosa da incompetência das sociedades modernas e ricas de atendê-los e fazer valer os princípios fundamentais da vida e dos direitos humanos. Mostrem-me as mais festejadas vitorias políticas, as mais racionais metodologias de produção de bens, alimentos, mobilidade, conhecimento e diversão, a face oculta da lua, os magníficos  templos religiosos, as vestes douradas do Papa, a pompa dos políticos, as mais promissoras pesquisas sobre Deus e seu avatar cientifico o Bóson de Higgs, o ultimo hit da tecnologia de comunicação, as mais badaladas e milionárias  artes da atualidade que reclamam para si a renovação, os homens mais ricos do planeta,as mais belas modelos,o ultimo hit da moda e os reluzentes  monumentos hi-tech da contemporaneidade e vos direi:nada disso,por maior  esplendor que irradie, ofusca o espectro desse  inferno. 
A  completude civilizatória é um sonho, uma miragem?
Quando se fala em canal aberto para o inferno, pensamos imediatamente em alguns países da África. A tendência de afastar de nós tamanha tragédia é compreensível, todavia, a crueldade contra as crianças não é atributo exclusivo dos povos africanos. Da uma olhada ao seu redor, passeie pelas ruas da sua cidade não apenas com objetivo de usufruir as ofertas e o conforto da metrópole e constatará o contingente de meninos perdidos vagando pelas ruas. Mas, a concentração e a larga escala da brutalidade dos conflitos africanos centra o foco da mídia global nessa região. A persistência de um poderoso paradoxo cultural que se espraia pelo continente, embaça a visão externa sobre os conflitos sangrentos nessa parte do globo e imprime, no olhar estrangeiro, a ideia de que a África é uma alegoria cruel das adversidades da modernidade. Se por um lado a resistência cultural das muitas etnias africanas que se negam a abandonar suas tradições seculares é motivo de orgulho para alguns, para outros, essa resistência, que alcançou seu auge na luta contra a dominação colonial europeia e vem conformando com muita dificuldade nações soberanas,suprimindo as ditaduras violentas e corruptas,abrem perspectivas animadoras . Essa onda renovadora divide em dois  o continente e as opiniões do mundo sobre a África. De um lado a tentativa de mudança gradativa para regimes mais abertos e de outro, o sobressalto diante do terror imposto pelos golpes de estado, as milícias, os banhos de sangue e os massacres descomunais que reativam o cenário de horror. Essas violentas manifestações impressionam e prendem  a atenção da comunidade mundial por força do calibre das iniquidades praticadas contra as crianças. 
Numa visita ao Senegal tive oportunidade de conhecer um centro de ajuda aos órfãos das guerras africanas. Mantenho contato com pessoas ligadas a essa organização que informam sobre os benefícios das ações solidarias da comunidade  internacional e, também, das dificuldades crescentes com a retomada dos confrontos no Sudão, que empurra um enorme contingente de crianças para a frente de batalha,a miséria, a fome e a morte. No Brasil, os meninos perdidos não são órfãos da guerra civil. Porém, isso não significa que estejam livres da tirania e menos expostos à crueldade. Algumas organizações brasileiras sérias tentam reduzir o contingente de meninos perdidos. Essa é uma missão árdua que carece tanto de recursos financeiros quanto humanos, além de expor os colaboradores aos conflitos armados nas comunidades dominadas pelo trafico. As políticas públicas brasileiras para esse setor são tímidas, quase caricatas e, maior parte das vezes repressiva, o que só piora a situação dos jovens.








Voltando à retomada do terror sudanês contra as crianças; em junho passado o NYT publicou uma matéria assustadora feita pelo repórter Jeffrey Gettleman. Seu texto nos coloca frente a frente com o drama dessas crianças e a imprevisibilidade de uma solução de caráter prático. Abaixo um resumo da matéria.
John Prendergast, cofundador do Enough Project, luta para acabar com o genocídio e crimes contra a humanidade. Ele trabalhou há 20 anos  com os Meninos Perdidos. "Os sobreviventes pareciam uma história terminada, para nunca mais ser repetida", disse ele. "Mas, aqui estamos nós novamente."
O Sudão, talvez mais do que qualquer outro país na região, parece ter uma capacidade destrutiva de voltar a  afundar-se nos piores dias do seu passado. Muitas nações africanas enfrentaram a guerra civil mas, quando os conflitos chegaram ao fim, algumas começaram a se organizar. Ate mesmo a Somália, crivada de balas, aos poucos se livra do caos. Entretanto,por  56 anos com poucas tréguas, os sudaneses  tem sido vitimas da guerra. Uma guerra sem fim que  se espalhou por muitos lugares.Uma característica da estratégia de contra-insurgência do governo sudanês é um ataque impiedoso contra civis, desencadeado no sul, na década de 1980, nas Montanhas Nuba na década de 1990 e em Darfur no início de 2000.Agora, em 2012, as Montanhas Nuba são novamente o alvo do bombardeio da força aérea sudanesa que forçou aldeias inteiras a se retirarem para as cavernas do cume, deixando os campos e os mercados vazios e as pessoas à beira da inanição.
O derramamento de sangue em Nuba é dirigido por alguns dos mesmos funcionários responsáveis ​​por massacres anteriores, como o presidente Omar Hassan al-Bashir, no poder desde 1989, e Haroun Ahmed, governador do estado, que abrange as Montanhas Nuba. Ambos são procurados pelo Tribunal Penal Internacional , acusados de crimes contra a humanidade pelo  derramamento de sangue em Darfur e Bashir além de serem  também acusados de genocídio. A atual ofensiva parece centrar seu alvo nas crianças de Nuban. Elas estão na mira das ações criminosas e, muitas vezes, não há para onde correr.Um zelador no campo Yida disse que 14 meninos que tentavam chegar aqui foram mortos a tiros em um posto do Exército sudanês. Estilhaços de bomba feriram outros. A doença está varrendo o campo e muitas crianças que chegam a Yida nas costas de suas mães estão tão magros e doentes que são imediatamente levados para o hospital de campo e entubados para receberem alimentação.
Antes mesmo da sua independência em 1956, o Sudão tem sido marcado por tensões que se alastram do centro para periferia com explosões e destruições arrasadoras. O governo central tem uma tradição de brutalidade e os grupos minoritários do interior estão fortemente armados e tem, para aumentar a dose de azar da população, uma tradição de insurreição.A situação desesperante leva os pais a expedirem seus filhos em odisseias que se estende por toda a frente de batalha e pântanos infestados de malária. Essas crianças, vítimas da crueldade maciça, estão repetindo um dos capítulos mais sórdidos da história do Sudão: o périplo ameaçador dos chamados  Meninos Perdidos  que, durante a guerra civil na década de 1990,vagavam  aos milhares através de centenas de milhas, esquivando de  milícias, bombardeios e leões.
Agora, uma nova geração de Meninos Perdidos está ressurgindo de uma guerra que, apesar de um acordo de paz, nunca findou completamente.
Musa Haidar, 14, recentemente refugiado em Yida é um dos 1.000 meninos que chegam todos os dias ao campo que se expande num mar de lonas brancas das Nações Unidas entre a selva verde exuberante. Com Haidar estavam outros oito meninos com roupas rasgadas e barrigas cheias de grama, seu único sustento alimentar por vários dias.Eles estavam com os pés descalços, observando atentamente um enorme tonel de feijão  fervendo  e prontos para uma refeição real e uma nova casa: uma caixa de papelão em uma cabana infestada de ratos."Não sabemos mais sobre os nossos pais", disse Haidar, se atrapalhando para enfiar os botões quebrados nas casas de uma camisa doada. "Mesmo se voltarmos, não encontraremos mais ninguém.”
Esse  resumo da uma ideia do tamanho e largura da vala escancarada para o inferno  que se abre para os meninos do Sudão.