sábado, dezembro 25, 2010

A convergência dos extremos – Crendice & Cepticismo




..."não sabia fazer nada mais que adicionar das próprias despesas e subtrair das próprias dívidas".
Don Fabrizio Corbera, Príncipe da Casa Salina - Sicilia final do século XIX inicio do XX.  

Il Gattopardo - Giuseppe Tomasi di Lampedusa




_Ah! Quer dizer que pra você a demanda do mercado por suas obras, ou melhor; sua inserção econômica no mundo das artes é um tormento?Ora! Não me venha com essa!Não creio que alguém possa ser tão indiferente ao reconhecimento financeiro.
_Engana-se, minha amiga. Não sou um alienado, indiferente as necessidades materiais e financeiras. O que eu disse é que não há nada de espontâneo ou propriamente verdadeiro no mundo dos negócios. Não creio que exista realização nessa troca para além, é claro, da recompensa material, evidentemente.Crer que o reconhecimento financeiro de um artista é parâmetro de aferição qualitativa da obra para além do negocio em si é um tremendo equívoco. Esse é um campo minado que há muito tempo suscita mais dúvidas que certezas. Todos somos,de alguma forma, afetados pela intermediação do dinheiro para continuar vivos. Essa é uma constatação tão sólida quanto a certeza da morte. O ganho financeiro é um meio de se sustentar como individuo e uma ferramenta de fomento para a experiência corpórea e existencial em qualquer atividade humana. Além disso, o cerne da minha crítica não incide sobre esse campo específico. As contradições entre o poder da grana e a liberdade criativa é um capítulo complicado da história humana. Não tenho nenhuma pretensão de estender esse assunto tendo em vista sua complexa interação que se arrasta pelo longo percurso da historia da humanidade. Se por um momento isso apareceu na nossa conversa foi de maneira fortuita. Foi apenas uma citação peremptória de certa impotência diante dos pactos que nos parecem inexoráveis.  
Nas circunstancias atuais, em que a economia é o mais elevado item da vida social, fazer uma crítica ao dinheiro,sem aprofundar nos mecanismos da produção, difusão e consumo, por mais inteligente que seja, soa como falação inútil.
_Ok!Ta bem!Então retorna para sua argumentação anterior.
_ O que me parece relevante no jogo entre finanças e arte é a ridícula simulação de decoro que se apoderou da mentalidade corrente em nossos dias. A complexidade da produção da atualidade não foi compartilhada por avanços nos mecanismos de intermediação compatíveis com os novos tempos.               
O que assistimos aqui e acolá são arremedos grotescos da velha hierarquia mercantil e uma crescente estupidez, convertida em paternalismo,seja de ordem privada ou pública. Tal descompasso pode ser percebido, inclusive, nas atitudes de muitos artistas. O ambiente artístico está impregnado de simulacros e afetações típicas do remoto idealismo boêmio.É espantoso que na contemporaneidade os rituais arcaicos ainda sejam tão influentes.Por força das circunstâncias houve apenas algumas modificações. As mais visíveis são a substituição dos critérios e das analises mais apuradas das obras de arte por operações promocionais e mercantis mais objetivas. Algo similar aos procedimentos e estratégias do marketing politico e dos produtos da indústria da propaganda revestida de aparente resenha cultural. Repare nas fórmulas hoje disponíveis para a difusão da arte. Elas dizem muito sobre o sistema. A visibilidade, um dos fundamentos  da publicidade, tornou-se o preceito básico que faz girar o mundo da arte. Os métodos promocionais são mais eficazes quanto mais a mensagem se repita. Essa regra é capital para vender mais uma marca de sabão em pó do que a do concorrente na prateleira ao lado. Ainda que uma mente ardilosa imagine ser uma grosseria usar a mesma técnica para alavancar as vendas de um produto cultural, dado que um consumidor de cultura possui, supostamente, mecanismos mais apurados,porque cultos,de defesa contra a propaganda objetiva  que o consumidor em geral engole sem pestanejar, o fato é que essa técnica prevalece para tudo. Ocorre, entretanto, que um objeto cultural não é apenas uma caixa de sabão em pó. Não obstante, em circunstancias especiais, uma caixa de sabão em pó pode vir a ser uma obra de arte quando empilhada no "cubo branco" ou num salão de museu.Entretanto,para que tal fenômeno se realize é necessário, antes de tudo, que o objeto se pareça com arte, quer dizer, possua um dom particular, um 'espírito', digamos assim,em contraste flagrante com os mesmos itens da linha de produção industrial empilhados no chão das fábricas.Colunas e mais colunas de objetos que não portam atributos descriminados num glossário das artes,são nada maisque objetos para finalidades especificas.    
Mas,esses mesmos objetos, recondicionados pelo circuito da arte, ganham outros sentidos. Assim, um bife pendurado na geladeira de um açougue é, em tudo e por tudo, diferente de um bife metafórico, artístico, exposto numa instituição de arte. Quando Duchamp realizou seu gesto germinal o mundo se surpreendeu. Hoje, ninguém mais se espanta. Não ha um grande evento de arte em que esse tipo de produção não esteja incluída. Além disso,várias instituições de ensino de arte espalhadas pelo mundo e inúmeras cartilhas dedicam capítulos sobre essa "escola" ou tendência da arte. Se por um lado isso parece positivo para que mais pessoas se expressem "artisticamente", por outro, constitui um complicador que,entre outras coisas, propicia ações difusas no que tange a autonomia criativa.Essas 'representações' são tantas e tão afinadas entre si que não cabe aqui,nesse momento,discuti-las.Porém,posso adiantar, que o novo perfil das instituições se fixa na ideia de que estamos vivendo em plena democracia onde qualquer expressão estética pode ser classificada no mercado especializado de arte como produtos artísticos. Afinal, o bacana da banalidade é a possibilidade de imersão total no banal por todos os segmentos do sistemaAlguns teóricos consideram esse efeito o paradigma de uma revolução estética permanente.
_Ah,ah,ah! De fato, o êxtase com o banal é uma unanimidade global.
_Até aí tudo bem.Contanto que esse paradigma não obstrua o mercado nem paralise a cadeia  produtiva,quer dizer;os artistas e os demais segmentos do mercado. Para reforçar seu status frente aos novos desafios os agentes culturais colocaram em marcha um método aparentemente colaborativo bastante eficaz. Isolaram alguns produtos estéticos da montanha de similares e investiram na visibilidade midiática de um numero reduzido de eleitos.A mídia é uma vitrine cara, todavia,muito eficiente para imprimir no público a sensação de que existe uma escala de valores nas artes dos nossos dias. Nesse contexto, a visibilidade midiática funciona como a agulha de uma bússola que orienta um navegante pouco entrosado nas muitas rotas da cultura contemporânea.Num mundo, sacudido por constantes e velozes transformações, onde a instabilidade é uma sensação constante, uma pessoa mal tem tempo de selecionar, dentre os milhares de informações vazadas todos os dias, aquelas que lhe serão mais úteis.Como exigir dessa pessoa uma leitura crítica apurada sobre as diferentes propostas estéticas do último grande evento de arte global? Leve-se em conta que os jornais e revistas contribuem para embaralhar ainda mais o assunto. Anunciam como polêmicos fatos corriqueiros e expedientes promocionais de um artista, focando o leitor nas labaredas da fogueira das vaidades e nas ambições cretinas, típicas das revistas de promocionais hoje tão em voga. Como se isso não bastasse, os periódicos enchem páginas de entrevistas com curadores que se arrogam a emitir diagnósticos sobre a contemporaneidade.
É esse conjunto de fatores-não a produção artística em si - que mais excita o circuito. Como reverter esse bochicho e tornar o negócio mais atraente e lucrativo? Eis a questão do sistema da arte atual.
Marcar os espaços e pacificar o ambiente tornou-se uma meta dos negociantes mais argutos. A solução mais evidente foi eleger dois ou três nomes de uma enorme safra de artistas e divulgá-los sistematicamente. Entretanto, com essa tática, o jogo se revelou de um simplismo assustador, pois, os demais artistas tornam-se apenas coadjuvantes. Servem para calçar o sistema frente os imprevistos de percurso.
Bem, essa tem sido a forma de atuação dos players do sistema de arte atual. Até certo ponto vem surtindo um efeito pacificador. O ambiente cultural mostra sinais de contentamento e a vanguarda contemporânea tem vibrado de alegria. 
O modelo é permissivo,introjeta imediatamente a contestação marginal a redirecionando para o circuito. Nenhuma experiência anterior de vanguarda artística foi tão generosamente acolhida pelo sistema. Abrigados sob a égide de uma poética do cotidiano, alguns artistas  parecem satisfeitos com os resultados alcançados. 
Cabe, portanto, aos agenciadores de marketing, curadores e marchands dar seqüência ao processo realçando o valor à partir de uma hipotética e quase invisível diferença. Numa vitrine em que tudo é muito igual fica difícil definir de imediato onde a particularidade se projeta. Aliás, esse é um recurso atraente que encontra similaridades com os atributos celestiais que separam os eleitos daqueles que estão sujeitos aos sacrifícios mercantis ou promocionais dos simples mortais.Como quase ninguém tem saco para esmiuçar o assunto,poucos se dão conta dos interesses em jogo nessas operações. Para muitos a palavra talento resume o fenômeno, é o suficiente para convencer alguém de que um tal personagem é um prodígio, um mago. Todavia,para o negócio isso não é o bastante. Para reforçar o aparato e agilizar a vinda de  lucros mais rápidos, um conjunto de experts tem que entrar na roda.Para tocar essa ponta do negócio existem os curadores.       
Oriundos das universidades,academias e centros de arte mundo afora e revestidos da autoridade de um general, peito coberto de comendas, esses experts surgem de toda parte para dirimir dúvidas e consolidar o óbvio:Credenciar nomes. 
Ontem um curador dos Alpes suíços, hoje uma curadora de uma bienal germânica, amanhã, outro personagem da alta cultura de um país desenvolvido em visita ao país emergente.Qual reis magos eles anunciam numa entrevista que existe, dentre o enorme contingente de artistas locais,ávidos por espaço, apenas quatro expoentes da arte contemporânea nativa.       
Coincidentemente, os nomes citados são sempre os mesmos e o roteiro,o velho pastiche de sempre: ..."a arte brasileira contemporânea esta bombando nos grandes centros do mundo desenvolvido...blábláblá"  
_É mesmo!Que troço colonizado! Antes esses procedimentos eram um tanto comedidos, tratados com um pouco mais de sobriedade. Hoje é escrachado.Alguns curadores trocam figurinhas abertamente, não vê quem não quer se aborrecer, se desgastar. A dimensão continental e a multiplicidade da produção estética local se reduziram a um joguinho entre colegas. Além do mais, a perversa escassez de recursos, a precária infra-estrutura institucional e um mercado incipiente imobilizam os artistas que não tem fluência no sistema. A mídia contribui divulgando apenas o que considera consagrado. No caso a opinião de curadores ou as altas cifras em jogo no mercado da arte.
_Os curadores, ao enaltecerem seus procedimentos, não deixando claro suas participações nas estratégias de negociação da arte, tornam mais densa a cortina de fumaça que confunde ainda mais as pessoas as levando a focar preferencialmente o fenômeno econômico financeiro em detrimento aos aspectos intrínsecos das obras.
Oh! Estupendo! Dizem alguns. Argh!Pura especulação, dizem outros. E, fica por aí! Nos dois casos, as únicas referências  visíveis são a fama do artista e o preço. Sobre a obra de arte propriamente dita, nada se comenta. O campo das artes tornou-se uma espécie de território interdito. Hoje, se contrapor ou criticar obras contemporâneas tornou-se uma atitude indesejável, proibida mesmo. Nessas circunstancias, o fato dos valores atingirem a estratosfera tornando-se quase uma abstração e as referências se constituírem em vagas citações de intermediários do negocio,seria um contra-senso repreender as pessoas que voltam sua atenção às transações financeiras como quem vislumbra um enigma mais inquietante nas cifras que transitam no mercado do que a própria obra de arte,objeto do negocio. É lícito desprezar a sensibilidade de alguém por ter visto o que é óbvio?
Acrescente-se a isso uma ocorrência singular. De um tempo para cá diluíram-se as fronteiras que diferenciam um trabalho de escola vanguardista de uma obra tradicional, digamos assim.Tornaram-se apenas métodos distintos.Os dois procedimentos encontram abrigo tanto nas instituições quanto no mercado. O que isso significa? Que o mercado e as instituições oficiais tornaram-se mais sábias e tolerantes ou, a arte dos nossos dias tornou-se a tal ponto previsível que se ajusta rapidamente às demandas do público por novidades? Só uma fidelidade extrema nos levaria a crer que as vanguardas da atualidade possuem o poder de impactar a sociedade.Marcar a diferença!Ora!Pra que? Se esse é o ponto que amalgama a produção de vanguarda ao que há de mais reacionário na sociedade de consumo, pra que inventar mais uma fábula infantil?   
As silenciosas disputas pela ocupação dos espaços prestigiosos,como as bienais internacionais, por exemplo, são apenas pretextos para ocultar estratégias midiáticas e mercantis. Essas instituições há muito deixaram de ser locais onde transitam experiências estéticas inusitadas. Se tornarem vitrines mega promocionais de modelos estéticos dominantes.Nesse contexto o dinheiro foi mais poderoso e eficaz na absorção das diferenças do que o tempo, a reflexão crítica e a discussão sobre a arte. 
É isso! O dinheiro produz efeitos ambíguos e curiosos, pois, ainda que transfira importância para um produto, não obstrui a divergência de opiniões sobre a forma de aferição e credenciamento. Você pode falar o que quiser do dinheiro despejado sobre um evento ou mesmo do preço de compra de uma obra de arte, porém, não ouse criticar uma obra ou um tipo de produção estética da escola vanguardista.Isso não!Isso é proibido. Se não é decoro e protecionismo,que titulo daríamos as reações intempestivas dos adeptos desse procedimento?
_Essa constatação me enche de perguntas que não encontram respostas nas atitudes correntes no atual sistema da arte.Por que os artistas das escolas vanguardistas evitam discutir os interesses em jogo no setor cultural e fecham-se em colóquios "especializados" onde só participam os grupos detentores de códigos comuns?Estariam eles participando de uma junta de planejamento estratégico ultra-secreto?Ajoelhar diante dos produtos estéticos contemporâneos é uma expressão sincera e admirável de reconhecimento? Esse troço mais me parece um hábito religioso.Uma obediência servil a uma seita secreta que pretende divulgar mais uma verdade num mundo exaurido de verdades.
Algumas pessoas creem que se opor ao poder do dinheiro na arte é uma ingenuidade. Os mais afoitos afirmam que o antagonismo ao sistema é uma batalha travada por um exército de imbecis, dado que a interação arte/poder (leia-se:dinheiro) se funda num pacto secular. Acreditam, certamente, que até a argamassa que juntou as pedras da muralha do conhecimento e da arte,sabem que as coisas sempre foram assim e nunca serão diferentes. 
_Oh!Deus, diante dessa sentença a sensação de inércia se apodera dos meus sentidos. Enaltecer uma obra de arte a partir do preço é um expediente tão insípido quanto um ataque de euforia verbal para anunciar um gosto pessoal. Contudo, até a histeria das torcidas apaixonadas tornou-se uma espécie de trincheira da contemporaneidade. Quantas vezes já não ouvimos: Oh! Amei tal instalação, caí de joelhos diante da obra do fulano. Exaltações verbais desse teor tornaram-se tão corriqueiras entre os frequentadores do circuito de arte quanto uma cervejinha gelada no verão escaldante. Cair de joelhos diante de um trabalho da vanguarda contemporânea é algo inconcebível para um ente que se beneficiou dos avanços da modernidade, contudo, tal manifestação tornou-se comum. A síndrome do Best Seller e dos Blockbuster  debilita suas vitimas as colocando imóveis ao alcance da mira do marketing das estrelas!
_O que mais choca nessa crendice absurda é a fragilidade crítica de indivíduos supostamente cultos. Parece coisa de maluco! Como um sujeito informado ainda se submete aos códigos dominantes sem sequer se perguntar por quê?
Ao expor de forma tão intensa seus sentimentos diante da arte, esses indivíduos realizam duas operações num só ato. Na primeira obstruem a potencia da pessoa frente aos códigos dominantes e, na segunda, anulam qualquer perspectiva de opinião contraria, pois, a fé é um domínio exclusivo do individuo. Como se contrapor a fé? Com uma guerra santa? Uma revolução cultural?
_Pois,então,essa situação revela o enorme poder dos meios sobre a produção artística. O poder do dinheiro exacerba a desconfiança, inclusive, na própria escolha pessoal. O feitiço se cumpre na prática com o retorno de um tipo de respeito imposto. Algo parecido com uma crença tirânica da antiguidade. Mas, no teatro das ocorrências culturais, é recomendável que os artistas pareçam livres, contestadores e independentes do sistema. Ocorre que incontáveis atividades profissionais do campo da cultura sofreram, nos últimos trinta anos, mudanças consideráveis. Algumas, como a crítica de arte, por exemplo, estão em vias de desaparecer. Outras,como os agenciadores de marketing e os curadores subiram aos céus. Vimos surgir recentemente um tipo de celebridade que chamo de ansioso blasé.
_Han? Ansioso blasé? Como assim?
_Explico. No teatro das artes, onde o artista, além da própria obra, representa um personagem bem definido. Nada mais eficiente para uma performance mistificadora que um artista cético das virtudes divinas da arte e dos meandros pragmáticos da cultura, para fazer emanar poderes supremos em converter fiéis em causa(estética) própria.
Esse procedimento exige um desempenho considerável. A ansiedade e os arranjos mundanos na escalada ao topo do circuito das artes exigem do artista imbuído da missão consagratória uma postura elegante, camuflada por uma atitude aparentemente blasé.
Ainda que todos saibam que uma trajetória bem-sucedida demanda algum tipo de conciliação, seja com os curadores, seja com os colaboradores ligados ‘afetivamente’ ao projeto do artista, seja com o mercado das artes, não é bacana para imagem do vencedor subir ofegante e com a camisa suada no pódio da grande arte. É conveniente, portanto, que essa ascensão ocorra de forma aparentemente divina, envolta por uma atmosfera tão natural quanto um plácido lago povoado de ninfas,sobre o qual paira a imagem do criador.

Natal de 2010.



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