quarta-feira, outubro 04, 2006

Bienal de São Paulo:Um morto barulhento

Controvérsias reaparecem a cada nova edição da Bienal São Paulo. Ela se origina na crise das formas de amostragem de arte, conceituação e modelo de gestão dos grandes eventos. Muitos afirmam que as mega-exposições há muito deixaram de ser um elo intermediário ativo entre a pluralidade das experiências estéticas e o publico. Essas opiniões coincidem com os protestos de vários grupos contra a investida mercantil sobre os produtos artísticos, associados a esse tipo de evento.

Críticos das feiras de arte e das grandes mostras internacionais focam suas ofensivas sobre os métodos do marketing cultural que enfiou turismo, antropologia, divertimento, arte e cultura num mesmo saco, melhor dizendo, num mesmo ambiente refrigerado e lacrado contra ruídos da cultura contemporânea que ficam do lado de fora.

As grandes mostras tornaram-se paquidermes em processo de desintegração. Os curadores investem sobre o que resta de orgânico sobre um material em decomposição.

As sucessivas mudanças artísticas provenientes da dinâmica da era dos meios eletrônicos expandiram consideravelmente as formas de expressão.

Qualquer pessoa minimamente informada supõe que a variedade de informações hoje disponibilizadas produziu um enorme impacto na vida social, Achar que a criação artística ficou imune, protegida no casulo da genialidade criativa é pura tolice.

Porém, heróicos curadores, se prontificam a salvar os restos mortais da instituição e reabilitá-la, transformando-a num zumbi transglobal.

Será que acreditam poder voltar no tempo e nos surpreender, reeditando as polêmicas bienais do passado, realizadas entre os anos 60 e 80.

Quem não se lembra da controvertida Bienal de Veneza de 1980, que serviu de vitrine à versão de Charles Jencks para o pós-modernismo.Esse foi o último elo de ligação efetiva das grandes mostras com as questões expressas pela arte, a reflexão e o entusiasmo do público. A partir de então assistimos a repetição do mesmo show com pequenos cortes particulares.
Esses cortes são resultantes do sopro criativo dos curadores. Muitos concordam que as grandes mostras tornaram-se rituais que orbitam em torno dos curadores. Cultuados e temidos, essa nova espécie de “mecenas” vem perturbando o sono de muitos artistas. De um tempo para cá o mundo das artes foi envolvido por uma atmosfera artificial carregada de ansiedade.
Motivos não faltam.
O mais significativo tem origem nas vertentes radicais dos movimentos estéticos para além da vanguarda modernista.
As atitudes artísticas que antecederam os últimos vinte anos, marcadas pela transitoriedade, romperam barreiras e descortinaram conceitos, trazendo à tona novas formas de expressão. Uma enorme variedade de estilos coincidiu com a atração generalizada pelo efêmero, despindo as obras da contemporaneidade das características outrora reconhecíveis como “arte burguesa”. Porém, tais atitudes resultaram num paradoxo que parece não preocupar alguns artistas e gestores das instituições culturais. Dentre as inúmeras questões a mais aparente é a consolidação de um estilo mundial de arte inscrito nas performances, instalações, intervenções coletivas, grafites e outros gestos identificados como formas de arte mais representativa da atualidade.

Ocorre, entretanto, que tais gestos já duram mais de vinte anos, ou seja, se projetam acima da média de vida de quase todo estilo internacional de arte. A história é farta em exemplos que nos confirmam que a longa permanência de um modo de arte conduz ao esgotamento levando grande parte da produção a procedimentos quase mecânicos e a ostensiva banalidade. É inconcebível, mesmo para um leigo, que artistas, diretores e curadores desconheçam o calendário das correntes estéticas da segunda metade do século XX, quando a Bienal de São Paulo passou a existir. Uma rápida olhada sobre a descontinuidade de estilos pode esclarecer muita coisa. A pop art que surgiu na Inglaterra de meados dos anos 50, realizou todo o seu potencial na Nova York dos anos 60. O expressionismo abstrato dominou as décadas de 1940 e 1950. O minimalismo desenvolveu-se durante os anos 50/60 etc.

É, portanto, no mínimo curioso que as diversas variantes da produção artística atual, ligadas à idealidade e a estética de muitos artistas do período que antecede os anos 80 e que se autodenomina livre plural e transitória desvencilhada de regimes estéticos ou sistemas, seja tão longeva.

Além disso, a relutante insistência da Bienal de São Paulo em permanecer surda às criticas contra a idéia de reunir obras de arte em torno de um tema tornou-se uma teimosia típica das dinastias do passado. Na edição 2006 por exemplo, na falta de um mote próprio, apóia-se em distintos campos do saber que lhe confiram substancia. Persistindo no equivoco escolheu o titulo Como Viver Junto, inspirado em seminários de Roland Barthes no Collège de France realizados em 1976-77. O que essa escolha nos revela? Dentre as muitas vicissitudes, a falta de parâmetros apropriados ao tempo presente e uma certa preguiça de empenhar-se na busca de uma configuração capaz de revelar uma parte da crise e a diversidade da produção artística da atualidade. Reflexos objetivos dessa política podem ser vistos na perda da visibilidade pública das expressões estéticas comprometidas com a tecelagem de tramas simbólicas, ou seja, narrativas. Em resumo, na sua extensão mais objetiva essa política impõe uma visão “única” da arte da atualidade.

Coisa velha e decadente, aqui em Kassel, Lisboa, Madri ou Istambul.