quarta-feira, agosto 16, 2006

Um Réquiem para Newton Cavalcanti

O artista plástico Newton Cavalcanti morreu sábado 12 de agosto em Santa Tereza, bairro onde morava. Segundo noticiou a imprensa ele foi aluno de Goeldi e um dos mais importantes gravadores brasileiros, credenciais que não impediram que a morte, ainda segundo a matéria- o encontrasse em “relativa obscuridade”. Essa consideração me despertou maior atenção.

O que é relativa obscuridade?

Uma obscuridade social sujeita a lampejos esporádicos de visibilidade?

Vai entender!

A síntese objetiva e aparentemente cruel dessa nota deu pouca relevância à trajetória do artista me levando a ponderar sobre a grandeza com que as alegorias vencedoras ocupam o imaginário contemporâneo. Se a pretensão do articulista era provocar a tristeza do leitor em relação a um personagem “esquecido”, comigo falhou. Não me despertou “piedade” em relação ao artista, ao contrario, me confirmou a vitoria de uma vida dedicada à arte, apesar dos tropeços e dificuldades inerentes a função. Tive dó da sociedade! É ela a grande perdedora. Perde dia a dia a reverência à existência humana e a criação artística.
Todos os dias somos levados a encarar noticias de episódios sensacionais envolvendo centenas de mortes, volumosas corrupções e impunidade generalizada lado a lado com matérias sobre os sedutores sinais de riqueza e prosperidade de um personagem high das artes, em destaque na mídia. Algumas pessoas me telefonaram se manifestando sentidas pela forma com que as duras palavras lhes tocaram. Confesso que não me surpreendi. Para mim o deslumbramento pelo glamour “fashion” que seduz os freqüentadores do ambiente artístico contribuíram para criar dois tipos de caricaturas artísticas: as “celebridades e os “relativamente obscuros”. Também pudera, para um mundo desprovido de critérios, fama e fortuna valem mais que talento, dedicação e mestria.
Newton nasceu em 1930 na cidade de Bom Conselho em Pernambuco. De origem humilde e dono de grande talento não permaneceu por muito tempo em sua cidade natal.

A obra de Newton Cavalcanti se insere entre as mais importantes da gravura contemporânea. O artista era senhor de um repertorio único na arte moderna brasileira. Sua representação do mundo foi motivada pela inquietude frente aos mistérios da vida e construída nos moldes de uma epopéia sobre os medos do homem. É um alerta contra as farsas insípidas e banais, desprovidas de conteúdo e incapazes de mobilizar nossa consciência sobre o lado obscuro das coisas.

As obras que compõem seu Réquiem se erguem eloqüentes sobre corpos aparentemente inertes numa espécie de transgressão ao silencio imposto aos mortos. Sua arte totaliza visualmente o horror infringido pelos vivos e discorre sobre a vida dando voz aos mortos. Segundo palavras de Flavio de Aquino seu “diabólico pedaço do inferno, com seus gênios do mal, seus diabos e até com a Morte Rubra surgindo em meio aos cadáveres e fantasmas”, o destacou - ismos à parte - entre os artistas de sua geração.

Newton estudou com Raimundo Cela e Goeldi na Escola de Belas Artes da Universidade Federal. Durante muitos anos se dedicou a gravura em preto e branco. A partir de 1969 intensificou sua inclinação para o desenho e a pintura. O artista teve um diversificado desempenho artístico, expôs em Barcelona, Londres, Estocolmo e Tóquio, na Bienal de Paris, no Chile e na Itália. Com o prêmio de viagem ao exterior, obtido no Salão Nacional de1972, foi para Inglaterra onde morou por dois anos. Em Portugal executou inúmeros desenhos, gravuras e selos. Num ritmo que tudo envolvia participou em filmes de Paulo Cezar Sarraceni, Rogério Scanzela, Mario Carneiro e Vítor Lustosa e criou cartazes para alguns filmes de Glauber Rocha. Seu talento se espalha por incontáveis coleções particulares e públicas no Brasil e no exterior. Esse gravador, desenhista, pintor e professor, alheio ao modismo e distante dos artifícios do circuito de arte, se dedicou, de corpo e alma, aos desafios a que se propôs. Graças a sua eloqüência e imbatível dedicação ao trabalho, podemos fruir um imaginário esplendoroso que só poderia ser transposto para o real pelo poder do talento e do seu amor à arte.

Adriano de Aquino
agosto de 2006