... Liberdade, essa palavra que o sonho humano alimenta
que não há ninguém que explique e
ninguém que não entenda...
Cecília Meireles
Romanceiro da Inconfidência
2ªParte Arte e Cultura Liberdade e Clausura
.....................................Realidade e Simulação
As sucessivas mudanças, oriundas do processo ininterrupto de construção e desconstrução de conceitos que se encontram no núcleo da comunicação na era dos meios eletrônicos, expandiram consideravelmente o conhecimento. No entanto, ainda nos perguntamos como esses vetores estão contribuindo para as liberdades individuais. As anunciadas quebras de padrões nas artes e no comportamento trouxeram maior autonomia para os artistas? Muitos acham que sim, outros acreditam que apenas presenciamos, de forma passiva, o poder econômico atuando de forma mais sutil. Os fatos do dia a dia, a crescente violência cotidiana e o crescimento de ações hostis à liberdade individual e o fim da mais elementar noção citadina de segurança, não combinam com a idéia de que vivemos no melhor dos mundos possíveis e, avançamos. Nesse mundo plural, supostamente livre e tolerante onde todo mundo pode fazer o que bem entender sem precisar se preocupar muito com as conseqüências.É nesse ambiente que proliferam os pactos do vale tudo dominante.
Um mundo em que é permitido um indivíduo comer cadáver de bebe natimorto, degustando vinho num cálice contendo pênis humano amputado, enquanto assiste a uma autopsia e dizer que é arte. Esse conjunto macabro não é parte de um conto. Não pense o leitor que os personagens e as ocorrências brotaram da mente de um escritor e habitam o imaginário onde tudo é possível acontecer sem que se cometam diversas violações. Nada disso! Zhu Yu, artista chinês (não foi o único, juntei seu ato ao do degustador de penis vinhático, um artista inglês que felizmente não guardei o nome) apareceu em dezembro de 2002 num programa da televisão britânica, comendo pedaços do cadáver de um bebe natimorto. Na ocasião ele afirmou que sua intenção era explorar o espaço entre a moralidade e a lei. Segundo ele: ‘Nenhuma religião proíbe o canibalismo. Também não encontrei nenhuma lei que nos proíbe de comer gente. ”
Seu discurso me pareceu uma tentativa de ajustar a seu conceito pessoal a virtude da liberdade criativa. É importante que tenhamos em mente que esse item é menos importante. O que interessa avaliar são as intenções de tangenciar paradigmas libertários pressionando os interstícios da ética, da estética e da moral de uma sociedade onde tudo é permitido em arte e, assim legitimar-se como um artista a frente de seu tempo. A declaração de Yu sobre religião e leis teve o efeito cênico de uma cortina de fumaça que torna difuso o gesto do ator ao puxar para si a visibilidade e a audiência nos meios de comunicação de massa, difusão e impacto no ambiente artístico e no mercado de arte. Blefe? Verdade? Segundo alguns ele teria comido carne de porco ao invés de carne de bebe. Pouco importa! O que questiono é o significado da atitude. Seria ela apenas uma simulação e como tal mais um produto artístico espetacular?
Os movimentos artísticos dos anos sessenta propunham uma dimensão concreta para inserção de suas obras no real, confrontando as regras formais de representação. Hoje, a interação entre as manifestações artísticas e o real se dá de forma diferenciada, maior parte das vezes, apenas chocantes. As simulações propostas por artistas desse naipe são percebidas por alguns como uma critica a hipocrisia e não deleite estético do autor. Por quê? Aporrinha-me a persistência do culto romântico aos artistas idealizados num plano sublime. É uma mentira deslavada. Assim como tem público-leia-se: seres ansiosos por perversidades- tem artistas dispostos a saciar as suas próprias e a dos outros. Essas pequenas réplicas medíocres do Marques de Sade não pretendem nada mais que chocar. Se pretendessem fazer uma critica social profunda teriam antes que fazer uma critica a si próprios. Isso é o mínimo que se espera que um artista culto, supostamente avançado. Se não o fez é apenas um idiota que cultua as atitudes mais escandalosas de um aristocrata do século XVIII. Ah! Quer saber?Não vale a pena ir adiante.
Outra questão recorrente, porém, mais grave, e que paira sobre as cabeças pensantes é o caráter nacional da arte. Sobre esse assunto Adam Weinberg, diretor do Whitney Museu de Nova York deu uma explicação sui generis para a conexão internacional da Bienal Americana de 2006: “Quanto mais eu olho, menos eu sei o que é arte americana.” Frase típica de um piadista erudito!
Se não fosse uma piada Adam Weinberg teria muito trabalho para explicar porquê existem barreiras solidas que dificultam a projeção dos artistas latino-americanos nas instituições culturais norte americanas. Para mim ela é só mais uma declaração descartável bem ao paladar do momento. Os curadores da Bienal do Whitney falam também da confusão que se estabeleceu entre ficção e realidade, dizendo que isso é expressão do atual momento. A ambigüidade vivida pelos artistas atuais é resultado das incertezas geradas por uma zona de crepúsculo, onde tudo está sendo posto
A liberdade é caótica. (sic). Fugi desse núcleo da mostra com a impressão de ter participado de uma conclamação à luta. Uma luta em que o inimigo era o espectador atento e critico às manipulações políticas ali exibidas.
Pra finalizar esse relato macabro serei um pouco otimista, Todos parecem concordar que atravessamos uma zona crepuscular. Esse é um momento do dia em que a luz incide sobre as coisas produzindo estranhas variações. Através de um foco difuso é licito vislumbrar que as bienais e os megas eventos internacionais não são mais importantes para as artes e para os artistas. Hoje, esses eventos nos despertam a sensação de esgotamento dos princípios estéticos porque estão norteados por mensagens criptografadas enviadas para além da arte. Essa intenção também enfia o publico na confusão entre realidade e ficção. Os mais saudáveis saem do museu certos de que a insanidade mental ha muito deixou de ser um sintoma limitado aos hospícios. Exposições como essa tornam visível a dramática situação dos artistas atuais diante da imprevisibilidade em relação ao futuro. Nos seus aspectos mais objetivos a historia nos ensina que advertir sobre a premência por pactos de convivência planetária confiável é sinal de sanidade. Onde encontrá-los, é a questão. Essa Bienal Americana, pretendendo oferecer meios para reflexão, criou paralelos falsos entre o Whitney, o Pentágono e Cabul .
Em tempos críticos assim, a arte em qualquer forma que se apresente, seria a mais cáustica manifestação dos anseios humanos. Porém, isso não parece suficiente para os curadores. Eles necessitam de uma mensagem que agregue todos em torno de um tema maior. Quem hoje ousaria se opor à liberdade criativa dos curadores sem correr o risco de ampliar a celeuma entre avançados e reacionários?É crível para alguém que a contestação estética a invasão do Iraque é uma garantia para a sobrevivência das democracias do Ocidente? Há os que apostam que a destruição e a morte que paira sobre tempos incertos, percebidos como apocalípticos, são oportunidades para mudanças. Há outros que consideram nosso tempo um sinal severo sobre a ineficácia dos esforços para obtenção da paz. O que significa dizer que muitos não a desejam de fato.
Agora, distante do campo de combate travado no Whitney penso, que para os agentes culturais, o que importa de fato é um grande causa. Pouco importa o quanto custe para a arte e para o público.