sexta-feira, setembro 30, 2016

Tabu



‘Dinheiro. O único tabu que ainda resiste as ‘incertezas vivas’ que se espraiam mundo afora no século XXI. Todo o resto foi superado nas lutas contra a opressão (sic). A humanidade, enfim liberta (ibidem) dos tabus superficiais acumulados na longa trajetória civilizatória, se curva diante do deus de todas as certezas. ’
Com essas palavras iniciei o diálogo com uma amiga. 
Ela parecia triste e angustiada. Um dia antes enviou-me via whatsapp uma dezena de fotos de ‘obras’ que clicou na inauguração da feira de arte e eu sequer abri os arquivos. Quem, como eu, evita abrir mensagens carregadas, fóruns, debates, depoimentos e gravações com mais de 2’ nesse aplicativo, sabe perfeitamente as razões de não correr o risco. Na conversa telefônica, lamentei o fato e expliquei a razão, mas, não pude deixar de perguntar o porquê da angustia por um fato corriqueiro. Era tudo que ela queria para abrir sua arguição. Sem me perguntar o que achei das fotos das ‘obras’- um alivio- partiu direto para seu lamento, manifestando decepção por não ter visto na feira obras de alguns artistas que muito admira e que integram sua coleção particular.  
Como vocês não participaram da conversa, mas tem algum interesse em saber os detalhes, é bom que eu ilustre o tema.
Não tenho críticas quanto as iniciativas de mercado que visem ampliar o campo dos negócios. Nesse ambiente, tudo, mas tudo mesmo, está sujeito às operações que visem gerar receita, obter lucros e aprofundar a trajetória da mais valia. Nada escapa dessa doutrina. Nem mesmo aqueles produtos artísticos que agregam gentileza sensível ou aversão estetizada ao sistema ficam fora do foco do mercado. Dito isso, fica esclarecido que para mim as feiras de arte são ferramentas de dinamização do sistema financeiro e de fomento do comercio de arte. Aliás, as feiras sempre foram uma forma direta de oferecer produtos ao consumidor. Nas feiras o visitante tem um certo protagonismo ao escolher uns brócolis, um automóvel, uma lancha ou uma obra de arte, leva-los para casa e se sentir gratificado. Portanto, problematizar uma mostra de produtos estéticos com essa característica é uma premissa ingênua. As feiras de arte, bem montadas e geridas por profissionais competentes é uma excelente oportunidade de negócio.
Pronto! Já estamos na conversa.  
Porém, a glamourização das feiras de arte e as mostras paralelas que as escoltam, criaram um ruído que repercutiu em muita confusão. Tanto entre frequentadores ansiosos por novidades como entre artistas desejosos de visibilidade. Uma inauguração cheia de gente alegre, rica e bonita, circulando entre obras de arte é muito estimulante. Esse diferencial distingue uma feira de arte de uma feira dominical de artesões numa praça qualquer da cidade. Nesse ponto, se criou um falso problema. O fato de entusiasmar os visitantes e ser um evento com grande visibilidade midiática, difundido na agenda cultural da cidade, não significa a mesma coisa que ser um evento especifico de arte, onde se expõe propostas estéticas mais arrojadas e experimentalismos performáticos que, por suas particularidades não caberiam -aliás, esteticamente não deveriam caber- no escopo dos negócios de uma feira de arte.
Ufa! Mas, não para aí. Se é para problematizar vou adiante. Avançarei sobre a trincheira do tempo e trarei para o presente um episódio que mudou o curso dos eventos culturais, especificamente focados na arte.     
Em 1863, quando a vanguarda fervilhava em Paris, os artistas problematizaram o salão oficial da Real Academia Francesa de Pintura e Escultura. Os artistas, recusados pela crítica dominante da época, recorreram ao Imperador Napoleão III a fim de suprir tamanha injustiça. Napoleão os atendeu, mandando que se fizesse uma mostra paralela, que foi intitulada Salon des Refusés.  
A proposta foi recebida ironicamente pelos conservadores. Eles acreditavam obras de arte recusadas no salão oficial, atrairiam um grande público disposto a ridicularizar as obras dos recusados. Entre eles, Manet e Cézanne. Apesar da reação desfavorável aos trabalhos expostos, o Salon des Refusés passou a ser um forte concorrente do salão da academia. A partir daquele ano, a iniciativa agregou muitos artistas que, mais adiante, organizaram exposições independentes como a dos Impressionistas, em 1874.Assim, o Salão dos Recusados foi, em síntese, o embrião para a consagração social da pintura moderna.

Para finalizar, a crítica que não faço ao empreendimento das feiras de arte, é destinada a um evento que deveria ser de cunho especificamente artístico, como a Bienal de São Paulo, mas, por absoluta desconexão com a pluralidade estética dos dias atuais, aquele evento se tornou um circo temático regido pelos humores dos curadores.
Os curadores dos salões oficiais da Real Academia Francesa de Pintura e Escultura, foram esquecidos. Apenas os pesquisadores sabem quem foram. Napoleão III, está registrado na história de França como um imperador controverso que, por sua compreensão, permitiu o desabrochar de uma nova estética.
 Não há nenhuma ‘incerteza’ quanto a isso.
Contudo, “Incerteza viva / Live Uncertainty”, que no meu entender deveria ser contestada veementemente pelos artistas e pelo público que refutam o método seletivo e arcaico de uma mostra de arte contemporânea,passa despercebida. Os 'Refusés' constrangidos se refugiam nas Certezas Oprimidas/ Certainties Oppressed (versão global) para ali se debulharem pelo fato banal e corriqueiro de não estarem numa barraca da feira de arte. Essa é a problematização recalcada que o tabu(poder)do dinheiro oculta da clientela.