quinta-feira, fevereiro 28, 2013

(INACABADO)


 "Tudo o que se pensa ou é afeto ou aversão." (Robert Musil)

Logo que convidado para participar do projeto Olhar de Artista, pedi à equipe da Coletiva Projetos Culturais que levantasse um inventário da obra do Ivan Serpa. Passando pelas páginas desse relatório fui, pouco a pouco, contemplando os desenhos, pinturas e objetos, categorias nas quais o artista transitou com desenvoltura e produziu em abundância, mantendo em todas as frentes o nível de excelência. 
À medida que folheava, rememorava obras que em alguma ocasião eu havia ­visto - em alguma exposição, nas casas de pessoas conhecidas, nos museus ou em catálogos e livros. Num dado momento, me deparei com uma anotação que me pareceu inusitada. Explico: todos que têm o habito de folhear livros de arte sabem que as informações técnicas são registros complementares importantes. Ainda que esse registro descreva os meios, as dimensões e os materiais usados na realização da obra, ele não traduz os aspectos sutis inerentes à sua complexidade. Essa troca segue um padrão que permite ao leitor navegar entre imagens e dados complementares e deles tirar, de acordo com a intenção de cada um, elementos para reflexão. Dizia,então, ter me deparado com uma reprodução com o título “Série Geomantica - Técnica: óleo sobre tela - Dimensões: 200 x 138 - Data: 1973”. Ocorreu-me uma sensação singular. Não sei por que razão, a palavra “(INACABADO)” fechada entre parênteses na sequência do titulo me motivou uma interferência abrupta, mudando o curso dos meus devaneios. Esse corte, digamos assim, me remeteu de imediato a uma passagem em que Lewis Carrol expressou as dúvidas de Alice diante do enigma do ser e, por conseguinte, das suas relações com as coisas do mundo: ”Deixe-me pensar: eu era a mesma quando me levantei essa manhã? Tenho uma ligeira lembrança de que me senti um bocadinho diferente. Mas, se não sou a mesma, a próxima pergunta é: afinal de contas quem eu sou? Ah, este é o grande enigma!”
Ora! Questionei-me: por que surgiu essa passagem secreta que esconde em seu labirinto o enigma do que somos nas cercanias do inacabado? Num flash percebi que somos inacabados. Aceitei de bom grado a sacada intuitiva de ceder à tentação de trilhar o caminho proposto por Alice, colocando para o leitor as minhas conjecturas sobre o mistério que envolve a criação e preserva a vitalidade de uma obra de arte ao longo do tempo. 
Aqui, uma alusão ao enigma Mona Lisa surge como um contraponto ao que entendemos,no âmbito da arte, como obra acabada. A condição de 'acabado' abarca somente a aparência da obra enquanto objeto sensível sujeito a interpretações variáveis. Leonardo da Vinci influenciou seu tempo e as gerações posteriores com suas poucas obras que, inacabadas ou não, foram copiadas e estudadas ao longo dos séculos. Para além do sorriso enigmático, das proporções inusitadas para época e de outros saberes nela contidos, o que apreendemos com a Mona Lisa é que inexiste obra acabada. Assim como, na criação, um ponto de partida não prevê necessariamente um ponto de chegada, há um dado momento em que um pensamento, uma obra ou uma ação, no estado em que são deixados pelo autor, se integram ao mundo real. Nesse sentido, 'inacabada' é a condição categórica de toda obra de arte que se ajusta no real, quer dizer, se fixa no mundo das coisas aparentemente prontas, pretensamente definitivas,preservadas pelas sucessivas gerações.
Até mesmo as ações estéticas pautadas na volatilidade das coisas e carregadas de substâncias efêmeras que, em tese, se dissolveriam no ar após sua concepção, guardam secretamente a intenção de seus autores de serem inseridas no conjunto da cultura e perpetuadas na história da arte. 
O paradoxo de grande parte da produção contemporânea que, por um lado, subestima a tradição mas,por outro,exalta as instituições que lhes dão visibilidade, se acentua no imperativo de que o acabamento artístico, hoje consagrador de uma obra de arte, pode ser aplicado para qualquer expressão trivial. 
 A construção de nós mesmos é uma tarefa intensa, até certo ponto ilusória e sempre inacabada. Ela se releva, sobretudo, na aspiração pela completude que repousa no pacto imperecível com o nosso tempo e para além dele. Esse nos fazer é inerente ao processo criativo que por natureza é alheio às certezas que coabitam o mundo das coisas materiais e das finalidades das mesmas. Ele acontece  na sequência infindável da experiência que, como um moto continuo,  jamais se completa. 'Inacabada', portanto, não é apenas a pintura da Série Geomântica, mas toda a obra do Serpa, assim como tudo que nos cerca,e, também, todos nós. 
Distanciando-nos do enigma de Alice e tomando o atalho de retorno ao mundo das coisas e das causas, nos deparamos com o “lugar da arte”, em que a necessidade de posicionar itens artísticos na hierarquia cultural tende a classificar uma obra como um produto acabado, ajustado aos códigos dominantes que o tornam, em síntese, merecedor da consagração social. Para que isso funcione bem, é necessário ordenar um sistema que alinhe os produtos prontos, encerrados em códigos e sujeitos aos caprichos do gosto, do dinheiro e das tendências do mercado.
Conheci Serpa por ocasião da exposição “Opinião65”. Desde aquela época meu olhar sobre o sua obra é movido pelo afeto. A qualidade e diversidade da sua produção despertaram em mim questões profícuas que pulsam como reflexões instigantes até os dias atuais. Se nos corredores do Bloco Escola e na cantina do MAM(anos 60/70) alguns “exegetas” não admiravam a diversidade de estilos em um só artista, eu confessava meu encanto por essa característica singular do Serpa. Naquela ocasião enxergava o arco da investigação estética do Serpa como um ataque contra as fronteiras impostas à criação. Essa admiração me levou desde então a estimar a dúvida, acima da certeza, como a mais produtiva via para o conhecimento. Talento, inquietação, liberdade e coragem são valores fundamentais para um artista. Hoje, com a decadência da crítica, com o triunfo da crendice e do deslumbramento generalizado pelos mitos consagrados pela mídia e pelo mercado, esses valores tendem a parecer estranhos, coisas do passado distante. Parecem superados pelo poder afirmativo das curadorias globalizadas, pelas técnicas do marketing cultural, pelas estratégias institucionais, pela submissão à centralidade da economia e outros itens que consolidam a cultura geral.
É bom ressaltar que a adolescência da minha geração se via no meio do fogo cruzado dos combates ideológicos, tanto no campo político como no âmbito artístico e cultural. Para os jovens artistas de então, criticar, investir contra o modernismo oficializado e se bater contra a arte consagrada eram coisas que fazíamos com orgulho, satisfação e muito estilo. Não era preciso ser muito incisivo para contestar publicamente o oficialato cultural – a mídia da época cultuava as polêmicas estético-culturais, dando a elas alguma visibilidade. Mas, não era nas paragens da comunicação, como hoje observamos acontecer, que ocorriam os embates mais estimulantes. Ainda estavam frescos na memória dos artistas os cortes da vanguarda precedente; eles ecoavam alto na minha geração. Os choques estéticos entre as correntes do expressionismo abstrato com as vertentes do construtivismo brasileiro em paralelo a arte engajada, só para citar alguns exemplos, tinham nos legado um acervo de obras, discursos, teorias e manifestos. Desse confronto acalorado gerava as ideias mais instigantes. E era ali, nesse caldeirão de contradições, que os jovens artistas gostavam de meter a colher. Afinal, os jovens são sempre recrutados para frente de combate. Se nessa idade você não tivesse muita clareza do lado em que iria combater, era bom que se decidisse rápido ou correria o risco de ser jogado numa trincheira da qual levaria uma vida inteira tentando escapar. 
Bem, lá estava eu, em 1965, aos 19 anos, participando da exposição Opinião65 ao lado de Ivan Serpa, juntamente com artistas promissores e outros de carreira já consolidada. Por motivos específicos e certamente movido por sua liberdade de ir e vir, Serpa criou em torno de si uma espécie de enigma: transitava com talento e competência pelas variantes estéticas em flagrante conflito, afirmando, categoricamente, sua poderosa força criativa frente aos desafios que se propunha.
Foi em 1973, durante os preparativos da minha viagem para Paris, onde moraria por alguns anos, que recebi com tristeza a notícia da sua morte. Hoje, passados 40 anos, folheando as páginas dessa espécie de inventário, ponto de partida do meu olhar sobre a obra do Serpa, me sobrevém a segunda parte da pergunta de Alice: “Afinal de contas quem eu sou? Ah, este é o grande enigma!”. Um enigma que, entre outras coisas, me adverte: Eu sou muitos!
 Adriano de Aquino