quarta-feira, outubro 17, 2012

O Belo Entorpecido







Bette diz:  Quero ter amor pela arte outra vez.
Acho que entendo você.
Quem não entende? Essa historia do dinheiro...
Eu sei. Agora, de repente, não existe mais. Dinheiro, eu quero dizer.
Ainda existe algum.
Bom, claro. Quer dizer, eu espero que seja verdade...
E parece que nós todos passamos diretamente da luta pela sobrevivência para a posição de semi estabelecidos e supérfluos.
Esse é um curto dialogo entre os marchands nova-iorquinos Bette Rice e Peter Harris, personagens do livro Ao Anoitecer  de Michael Cunningham, autor do sucesso literário e cinematográfico As Horas. O cenário onde esse diálogo acontece é uma sala do Met. N.Y,sob a boca escancarada e cheia de dentes de um tubarão afogado em formol e lacrado dentro de um grande aquário. Virei as paginas na perspectiva de que o dialogo entre os dois galeristas transbordasse para digressões sobre estética  contemporânea, marketing  e negócios e,claro,um bom e instigante romance.
Porém,o curto e inconclusivo dialogo ai de cima não se estende para pensamentos mais intensos e profundos sobre a expectativa de Bete em pensar que se afastando do negocio da arte poderá restabelecer uma ligação mais profunda e substancial com a arte.
Será?
Diletantes,amadores e entusiastas são,certamente, mais propensos e sensíveis à arte.Contudo,essas características não garantem escolhas autônomas e criteriosas.  
Cunningham domina a técnica de criar sequencias de palavras que sugerem imagens quase cinematográficas.Ele capricha nos detalhes e nos apresenta uma perspectiva charmosa e atraente,porém,superficiais. Esse romance é quase um roteiro cinematográfico. 
O que me atraiu para essa leitura foi a apresentação da orelha do livro que instiga o leitor a mergulhar na 'imersão profunda da crise existencial dos quarenta anos’  a partir do foco do seu narrador,Peter Harris.
Ora,pensei, já passei dos quarenta e a crise de que me lembro é de que o 'dinheiro ainda existia',só que, naquela ocasião, a arte não naufragara ainda em seus domínios. 
O anseio de Bette- “Quero ter amor pela arte outra vez” soa como um desejo incompleto. 
Lamentavelmente, o sufoco do dinheiro sobre a arte, que consumiu grande parte do oxigênio do sistema, não se estendeu a diálogos e reflexões substanciais sobre  a arte dos nossos dias ou mesmo sobre as questões que mobilizam  de fato os artistas a fazerem arte.
Uma pena! 
Fica a questão: a embriagues financeira dos últimos anos, que alterou substancialmente as relações entre  preço e valor, fez a arte desaparecer? 
Se fez, por que Bette aspira "amar outra vez" algo que deixou de existir?
Além disso, antes de me dedicar a leitura, imaginei que Cunningham traria a baila a extinção da critica e uma serie de questões  recalcadas pelo glamour apatetado e inebriante que se apoderou do ambiente artístico contemporâneo e das resenhas sobre o assunto publicadas nas revistas e jornais.
Minha opção por ler um autor da atualidade seria um revés na rabugice que me impede de “amar a literatura pós-moderna, nem que seja por uma vez"?
Isso não é de todo verdade, há  pouco tempo li o romance  As Benevolentes de Jonathan Littell,um autor contemporâneo instigante que concebeu um livro profundo sobre a banalidade do mal pelo foco de um oficial nazista, durante a Segunda Grande Guerra Mundial .
Outro detalhe que me fez decidir a encarar Ao Anoitecer foi o fato de que no interregno entre leituras sou compelido  a  retornar  aos clássicos. 
Vejo isso com alguma suspeita. 
Seria eu um melancólico saudosista?
Se isso for verdade serei obrigado a continuar mentindo.
Ou será apenas mais uma ilusão bem apropriada ao tempo presente? 
Bem, que se dane!
Se for verdade é uma verdade indolor tendo em vista que a opção pelos clássicos me propicia muito prazer.  Na semana passada me deliciei com A Cartuxa de Parma, o extraordinário romance de Stendhal que, diga-se de passagem, a recente tradução deu outro sabor à leitura e se revelou  mais aprimorada que a antiga. Não pensem que ando pra lá e pra cá com um livro a tiracolo. Nada disso!Tomando emprestado a  “imersão” da qual fala o apresentador da orelha do romance de MC,essa palavra é a  que melhor traduz  a situação na qual me encontro.Desde meados fevereiro estou mergulhado no ateliê e,nos últimos dois meses, esse mergulho alcançou profundidades extremas depois de confirmada minha exposição para dezembro próximo só com pinturas  recentes,quer dizer,desse ano. 
Nos intervalos entre as sessões de trabalho meu contato com o mundo exterior ocorre via internet, em visitas virtuais ao plenário da Suprema Corte  e  leituras. O clima de pré-exposição foi, alias, um dos fatores que me levou a apanhar Ao Anoitecer. Eu atinei que ao sabor desse romance eu afinaria meu paladar (e humor) para as ocorrências que se desdobram durante a abertura, os comentários e aos acontecimentos que giram em torno dos quadros pendurados na parede de uma galeria durante uma exposição. Ao contrario do que supunha ou desejava, meu paladar não foi apurado pelo romance  que, ao invés de  mergulhar nas vicissitudes do ambiente da arte contemporânea,  tece uma teia de ilações entre  beleza e  terror, frente ao despertar de um desejo  ardente que se apossou do narrador e que foi engatilhado  pela visita inesperada do belo e entorpecido  Ethan, irmão caçula  da sua mulher. 
Em algumas passagens, fora da trama principal, Peter toca aqui e acolá em acontecimentos envolvendo artistas, objetos e negócios da arte,porém,não vai fundo. Como não pode faltar numa obra pós-moderna, a narrativa  é recheada de  referencias literárias 'apropriadas' dos velhos e bons clássicos. Isso fica  explicito numa cena notadamente inspirada no delírio ético/estético  de Aschenbach ( homem de meia-idade)   personagem central de Morte em Veneza(Thomas Mann) que sentiu dolorosamente, como tantas vezes antes, que a linguagem pode apenas louvar, mas não reproduzir, a beleza que toca os sentidos.
Para amar a arte novamente Bete terá que superar um árduo obstaculo fundado,sobretudo,no poder afirmativo do dinheiro e na avalanche de códigos e produtos estéticos que a titulo de arte,dolorosamente,torna opaco e quase inalcançável o acesso a beleza que toca os sentidos.