sexta-feira, abril 20, 2007

VISÕES DE GOYA

José Mario Pereira
No momento em que Goya está em alta no Brasil, com a exposição da quase totalidade de suas gravuras no Museu de Artes de São Paulo, e o Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro também apresenta obras suas pertencentes ao acervo da Biblioteca Nacional, o leitor interessado no pintor aragonês ganha presente raro: uma biografia objetiva e bem-documentada por Robert Hughes, australiano da safra de 1938, crítico de arte da revista Time desde 2001, e autor já editado no país. Para esquentar ainda mais a saison, a Companhia das Letras acaba de lançar o romance Os fantasmas de Goya, escrito por Jean-Claude Carrière em parceria com Milos Forman a partir do roteiro original que fizeram para o último filme do diretor checo, prestes a estrear aqui, com Stellan Skarsgård, Nathalie Portman e Javier Bardem nos principais papéis.
Publicada originalmente em 2003 pela Knopf, com 221 ilustrações em preto e branco, essa biografia em 10 capítulos segue a cronologia da vida e da obra de Goya, do nascimento em Fuendetodos, próximo a Zaragoza, à morte no exílio francês de Bordeaux, e usa como pano de fundo a história da Espanha num dos períodos mais tensos de sua vida social e política. Tendo vivido 82 anos, um prodígio para a época, ele pôde acompanhar de perto os acertos e contratempos dos reinados de Carlos III, Carlos IV e Fernando VII, além dos eventos provocados pela invasão napoleônica em 1808, com a entronização, por curto período, de José I, irmão de Napoleão Bonaparte, no comando do país.
Nada editado em português até agora se iguala ao esforço levado a termo por Robert Hughes de analisar a evolução da linguagem plástica de Goya em consonância com a história espanhola do período, no intuito de clarificar em que intensidade as tradições e costumes populares, a literatura dos ilustrados e os grandes eventos da política internacional exerceram influência sobre esse pintor de obra extensa e variada, trabalhador incansável, sempre a testar os próprios limites, de tal modo que, já próximo da morte, impôs-se dominar a litogravura, técnica de impressão que acabara de surgir.
Estudioso da cultura espanhola, notadamente a da Catalunha — a mesma Companhia das Letras lançou, em 1995, o seu livro sobre Barcelona —, Robert Hughes há muito pensava dedicar um longo ensaio a Goya, pintor cujas gravuras o impressionaram ainda estudante na Austrália. No prefácio, o autor de American visions e do recente livro de memórias Things I Didn’t Know conta que iniciou o trabalho de redação após sofrer, em 1999, um grave acidente automobilístico. Segundo ele, o sofrimento causado pelas sucessivas cirurgias a que foi submetido cristalizou sua determinação de escrever um livro inteiro sobre Goya, a quem já tinha dedicado um ensaio, “The liberal Goya”, publicado no New York Review of Books de 29 de junho de 1989, por ocasião da exposição que o Metropolitan Museum de Nova York consagrou ao pintor. Nesse texto — recolhido em Nothing if not critical (1990) —, já se encontram em miniatura muitas idéias que aprofundou nessa biografia que vem suprir uma lacuna em nossa estante de arte e história da Espanha.
Nascido em 1746, filho de um mestre dourador, Francisco de Goya y Lucientes aos 14 anos entrou como aprendiz no ateliê do pintor José Luzán. Em 1763 fez sua primeira viagem a Madri para estudar com Francisco Bayeu, pintor da corte, e irmão de Josefa, com quem viria a casar. Aos 24 rumou para a Itália, onde ficou pouco mais de um ano, mas quase nada se sabe de suas atividades ali. Era a época de Carlos III, que ao vir para a Espanha, depois de ter governado Napóles por 25 anos, trouxe para seu novo reino, além de auxiliares e ministros, um grupo de artistas italianos ao qual se juntou o alemão Anton Raffael Mengs, amigo de Winckelmann, responsável pela decoração dos palácios reais de Madri e Aranjuez, e que nos anos seguintes ditaria o gosto estético no país. Através de relações no círculo deste artista, Goya é contratado como pintor de cartões para a Tapeçaria Real, função onde se fez notado, e que o levou a ser nomeado pintor oficial da corte, cargo que ocuparia até quase à morte, quando reivindicou junto a Fernando VII — e conseguiu — uma pensão vitalícia.
Ao longo dos anos, Goya irá pintar alguns dos retratos mais cruéis e emblemáticos da realeza. Carlos III será imortalizado em roupas de caçada, uma de suas atividades favoritas. No reinado de Carlos IV, ele pintou o rei não apenas sozinho como também junto à rainha Maria Luísa, mãe de Carlota Joaquina, além de um imenso óleo sobre tela de 1800, apontado como um dos melhores que realizou, reunindo toda a família real — uma homenagem ao Velásquez de Las meninas. E por último Fernando VII, que não escondia preferir ser retratado por Vicente López, um artista da corte de vertente neoclássica.Robert Hughes enfatiza que Goya trabalhou em diálogo permanente com as questões de seu tempo, mas não era um panfletário comum, interessado em fazer arte de protesto a qualquer custo. Inteligente, astucioso, ele gostava de ganhar bem, e soube nadar em meio às vaidades e intrigas da corte, da Igreja, e da Inquisição. Sua devoção à pintura o impediu de se recusar a retratar algumas autoridades francesas diretamente envolvidas com a tomada de Madri. Numa entrevista ao El País, em novembro de 2000, Hughes declarou: “Goya é inigualável; é alguém que vive entre os dois mundos que marcam sua época; por um lado é um ilustrado, (...) e por outro é um militante do irracional, do mistério que significa a crueldade e o imaginário. (...) Gosto de como Goya se situou em relação à sociedade, recolhendo suas fantasias e seus sonhos. Era uma pessoa sem complexos, o que é fantástico num país católico”. Essa ampla biografia de Goya traça também o perfil de alguns dos mais famosos ilustrados espanhóis, como Benito Jerônimo Feijoo, Pedro Rodríguez Campomanes, e o mais importante deles, Gaspar Melchor de Jovellanos, amigo cujo retrato Goya pintou entre 1797 e 1798, e que serviu de inspiração para seu capricho mais famoso, o de número 43, também associado à melancolia: “O sonho da razão produz monstros”. Todos eles contribuíram para animar o debate intelectual da época, ao qual Goya nunca esteve alheio, tanto que em várias gravuras, pacientemente examinadas por Hughes, se pode detectar, de forma velada ou explícita, algumas das idéias que esses intelectuais e homens públicos — em relação a Goya, especialmente o erudito Jovellanos — fizeram circular.
O crítico esmiúça o rico folclore que se criou em torno do artista, separando fato e ficção. Muitas histórias sobre Goya não têm comprovação documental, como a lenda de que foi toureiro na juventude, e há vácuos de informação em várias instâncias de sua vida. Há muita fantasia em torno dele, e as cenas de loucura, canibalismo, estupro, assalto em estradas, vandalismo ou feitiçaria por ele retratadas só fizeram estimular a imaginação dos pósteros; mas a verdade é que Goya morreu quase desconhecido fora de seu país, muito embora se saiba que Delacroix o admirava incondicionalmente. Um dos episódios mais investigados é o da possível relação amorosa que manteve com a encantadora duquesa de Alba, provável modelo para as duas majas, mas Hughes afirma que disso não existem provas. O livro recente de Manuela Mena, conservadora do Museu do Prado, que qualifica essa história de “lenda urbana nascida no final do século XIX”, confirma Hughes.
Como Goya se tornou o pintor que conhecemos? Como se deu a metamorfose que o transformou de simples fazedor de cartões para tapeçarias e cenas religiosas um tanto convencionais em genial criador de imagens poderosas, soturnas e enigmáticas como as encontradas nos Caprichos, a única coleção de gravuras que editou em vida? Em que instante se deu a inspiração para a realização da série sobre os Desastres da guerra, onde, segundo Hughes, “o artista deu testemunho dos fatos quase inomináveis da morte, na insurreição espanhola contra Napoleão e, fazendo isso, se tornou o primeiro repórter visual de conflitos armados modernos”? E na Tauromaquia, onde o amante de touradas que ele foi levou-o a imaginar toureiros que mais parecem acrobatas de circo — o que Goya pretendeu expressar ali? Quanto à série Disparates, em que se encontram “elementos de sátira religiosa”, homens planando num tipo primitivo de asa delta e até mesmo um elefante — que muitos chegaram a supor se tratar de uma representação do rei Fernando VII — seria ela apenas uma erupção do pessimismo e da melancolia do pintor? Também se pode indagar qual terá sido a gênese das pinturas negras, tão impactantes a ponto de levarem Norberto Bobbio a declarar que “Goya era um sábio! Ele sabia que o homem é mau”. Para todas essas questões Robert Hughes traz lúcidas considerações pessoais, além de se valer também dos estudos de Edith Helman, Nigel Glendinning e Janis A. Tomlinson, para só citar três importantes especialistas em Goya no mundo de língua inglesa.
Durante muitos anos se especulou se o pintor espanhol assistiu aos episódios imortalizados nas telas sobre o Dos de maio e o Tres de maio, documentos do furor sanguinário com que foi contida a insurreição popular contra a invasão de Madri pelas tropas de Napoleão, as quais, junto com algumas pranchas dos Desastres, fizeram André Malraux pensar nos grandes romances de Dostoievsky. Mas Hughes descarta essa possibilidade, argumentando que os franceses não deixariam ninguém se aproximar do cenário dessas execuções com um cavalete, nem mesmo com um caderno de desenho, apetrecho que Goya parece ter sido um dos primeiros a usar. Assim, o artista teria se valido de relatos orais de testemunhas da tragédia.
Infelizmente esse pintor revolucionário, segundo Hughes “um dos grandes narradores visuais da dor física, do ultraje, do insulto ao corpo (...), um realista, um dos primeiros e maiores na arte européia (...), o último Grande Mestre e o primeiro Modernista”, não era afeito a teorizações, e quase nada escreveu ou disse sobre pintura, a sua e a dos contemporâneos. Afora a correspondência com Martin Zapater, companheiro de colégio, restam somente poucos relatórios que preparou para a Academia de San Fernando, alguns deles citados nessa biografia. Sabe-se que declarou ter tido três mestres: Velásquez, Rembrandt, e a natureza. A obra do primeiro ele copiou nas coleções palacianas; a de Rembrandt, provavelmente conheceu em gravuras da coleção de Sebastián Martínez, o amigo em cuja casa de Cádiz viveu a partir de janeiro de 1793, quando foi acometido de uma misteriosa doença que acabou por deixá-lo surdo aos 46 anos. Tudo leva a crer, acentua o biógrafo, que Goya não costumava se pronunciar sobre o trabalho dos concorrentes, tanto que o único documento nesse sentido é uma carta onde elogia os pendores artísticos de Rosário, uma menina de 10 anos, filha de Leocadia Weiss, sua governanta, e talvez amante, que o acompanhou ao exílio na França.
“Se há um pintor no universo que tenha sex-appeal para todas as espécies imagináveis de autores de livros, este é certamente Goya”, escreveu José Ortega y Gasset, autor que aparece na bibliografia do livro de Hughes, mas não no texto. O filósofo espanhol acreditava que “a menor pincelada de um quadro, se queremos entendê-la de verdade”, impõe o exame da vida do pintor. Só depois é que, "com certa claridade, podemos voltar a olhar o quadro com alguma probabilidade de saber o que quer ‘dizer’.” Talvez haja um tanto de exagero nessa afirmação, mas não há como negar que a biografia de Goya, escrita em estilo fluente, irônico e apaixonado por Robert Hughes — autor também de um documentário sobre o pintor para a BBC —, cumpre com louvor a exigência ditada pela
intuição de Ortega.