terça-feira, maio 12, 2020

Image&Memory







Um depoimento
Por Adriano de Aquino
maio de 2020



1 . Anotações sobre o processo de trabalho.

Em meados dos anos 80, fui atraído pelos ecos da Revolução Digital que incitou a Terceira Revolução Industrial, já consolidada em pequenas mas cruciais mudanças nos modos de produção, alterando significativamente   o antigo sistema de tecnologia eletrônica /mecânica e analógica para o novo sistema da eletrônica digital.
A travessia, que teve início nos anos 50, me pegou na infância. A revolução em curso agregou no imaginário da minha geração a forte impressão de que o futuro seria totalmente diferente das narrativas clássicas. Esse fenômeno cultural se estendeu por três décadas. No final do século XX, com meios eletrônicos digitais fartamente expandidos, a Cultura Digital se estendeu do campo técnico cientifico especializado para a universalização, digamos assim. Independentemente da bagagem cultural dos indivíduos, toda a sociedade global foi velozmente ‘alfabetizada’ pela inserção digital. Apta a decifrar seus códigos básicos, criar seu avatar eletrônico e digitar sua senha num terminal bancário,docs e infos,a maior parte da população do mundo atravessou o portal da Cultura Digital.
Um dos marcos dessa universalização foi o impasse do ‘bug’ do milênio que disseminou um certo pânico de que toda memória e informações acumuladas e processadas eletronicamente poderia ser irreversivelmente apagada. Esse impasse atravessou para o século seguinte. Superado o impasse técnico, o novo século (XXI) nasceu sob a égide da Era do Conhecimento.
Essa introdução visa estabelecer as conexões que me levaram a refletir sobre as perspectivas da criação artística em uma Era marcada pela fluidez da informação, a gigantesca profusão de imagens anônimas, a efemeridade dos eventos que espocam em um segundo, atinge milhões de pessoas e desaparecem na mesma rapidez. Mas, permanecem registrados como ‘bits’ no ciberespaço, onde nada perde ou se apaga.
Esse novo mundo, repleto de sinais embaralhados e “propenso a mudar com rapidez e de forma imprevisível”(Z. Bauman),provocou uma mudança de mentalidade que não poderia deixar de tocar o  processo criativo em sua ampla concepção, frente a ideia de ‘tempo presente’.
Foi o que aconteceu comigo.

2 . Entre 2005 / 2007 meu trabalho começou a desviar para pesquisas sobre a sutil ‘ruptura’ entre cultura analógica e cultura digital. Apesar de não ser uma ruptura que teve origem no ambiente estético/artístico, não ter sido bombástica e estilosa, fundada em manifestos polêmicos e exuberantes provocações artísticas contra os métodos acadêmicos e a tudo que reverenciasse o passado a elegância e o ‘mau gosto’(sic) dos burgueses, mudou substancialmente a mentalidade artística.
Os vanguardistas históricos consideravam um atraso, prejudicial ao desenvolvimento humano e social, o congelamento estético submetido ao padrão neoclássico. 
Transgressão, a palavra de ordem de todos os movimentos radicais da modernidade, chocou os conservadores e, no correr do tempo, se banalizou. 
A título de fazer o 'novo' vigorar, contestações recalcadas ganharam corpo como expressão individual.O mundo das causas pessoais colaram em si o rótulo de Arte. 
“Tudo é Arte/Arte é Tudo” se tornou um mantra pós-moderno.  
É curioso que alguns artistas dos dias atuais, paradoxalmente apelidado de ‘pós-moderno’, ainda creem nesse postulado.
Todavia, ao penetrar nos corredores da matrix, meu ponto de vista sobre as atitudes, gestos e coisas ‘pós-modernos’, correntes nos dias de hoje, focadas nas recorrentes propostas teóricas e estéticas inspiradas na Vanguarda Histórica, hoje se tornaram uma ‘escola’- quase uma doutrina estética que modela modos de fazer similares e repetitivos. 
Em vista desses desafios teóricos me vi enredado na dicotomia do ‘mundo das referências’ cujas as partes geralmente opostas e complexas se converteram em lugar comum.
Como escapar da arapuca de uma ‘arte de citações’, prenhe de referências restritas aos estilos consagrados no mundo da arte, agora consolidada na tendência global rebocada por temas político-sociais de gênero, grupos, minorias e particularidades étnicas e pessoais – autobiografias estetizadas - se instalou  no ciclo intermitente do ‘valor’ estético contemporâneo, reciclado do referencial com o passado e nos múltiplos ‘ismos’, camuflados de novidade? 
  
3 , Essas reflexões me levaram a encarar uma mudança radical no meu processo pictórico para escapar do ciclo de oferta de ‘mais imagens’ num mundo superpovoado delas, e voltar a me encantar e surpreender com um fazer que desbravasse um novo viés do fenômeno criativo.

Essas questões me levaram a confrontar o âmago das transformações em curso. O que observei é que não se tratava mais de um debate ‘fechado’ no velho contexto da ‘arte pura’ em torno da estética da erudição e da alta cultura artística já que –para mim – as mudanças em curso arrastaram tudo, se estendendo ao amplo campo da cultura geral em efervescente ebulição.

Aos poucos fui percebendo que a sutil sobreposição de uma nova cultura geral, paulatinamente revolucionava o modo de ver o mundo, as mentalidades e as trocas sociais.

Como essas mudanças aconteciam nas artes sem serem provocadas pelo inconformismo dos artistas e intelectuais?

4 . Muito se fala das mudanças oriundas das tecnologias digitais e do encantamento das pessoas pelos artefatos multifuncionais, designer elegante e acesso ilimitado ao universo dos dados, conceitos e imagens que inundaram o ambiente da cultura geral.
Porém, pouco se fala sobre o que está abaixo da superfície reluzente dos equipamentos digitais. De fato, a revolução digital não é apenas mais um movimento tecnológico, como os que ocorreram sucessivamente desde os primórdios da civilização.  Isso é o que aparece no toque das superfícies dos meios digitais. Porém, a ‘deep web’, vanguarda da ruptura cultural, em contraposição à cultura analógica - que trançava e protegia o conhecimento na esfera 'cult' e intelectualizada ancorada nas correlações e referencias consolidadas na era moderna, inundou indiscriminadamente o sistema de informações que antes só transitavam em ambientes específicos, revelando que as coisas mudaram de fato, disponibilizando indistintamente um acervo gigantesco de infos para um grande e plural contingente de usuários. Sem grande estardalhaço, a Cultura Digital contundentemente penetrou nos hábitos e costumes da sociedade global.

Já convencido que a vitrine tecnológica era mais do que uma ‘onda’ passageira –era, de fato, um tsunami cultural, -  inicialmente desprezado por grandes figuras da intelligentsia e adeptos da erudição enciclopédica do velho mundo, que a criticavam como usina de ‘gadgets’ para formatar medíocres, reconsiderei essas transformações no plano estético propriamente dito. Minhas interações no ambiente digital foram diluindo a cortina de fumaça do conservadorismo erudito. Percebi, desde então, que não havia condições concretas de resistir ao empuxo do tsunami cultural que varreu o mundo, soprando uma brisa renovadora.
Essas reflexões foram vitais para a virada no meu processo de trabalho.
Em 2007 fiz uma grande exposição no Paço Imperial com obras da Série Divisões Internas. Obras dessa serie eram realizadas em superfícies sintéticas, mas ainda submetidas à tradição pictórica- com referências esparsas entre as formas geométricas, o gesto sensível, a caligrafia das pinceladas, as sutilezas das texturas cromáticas que no meu caso particular aconteciam no dialogo hipotético com as fontes do Concretismo e do Neoconcretismo históricos.  Até então, esses movimentos eram para mim um porto seguro, cheio de tesouros referenciais, que  há tempos eu desejava deixar para traz.  
Minha visão crítica sobre as sequelas do colonialismo cultural e seus desdobramentos no tecido social nativo não se dá apenas em relação à demarcação- interna e externa- do Brasil como ‘exportador’ de commodities agrícolas e minerais, de abundante exotismo naif mercantil e um território aberto à fácil disseminação de réplicas dos arrojados modelos culturais internacionais. A frágil constituição da nossa modernidade artística não é um garrote que nos condena a ‘autodeterminação’ cultural. Em vista disso, para mim, eleger estilos modernos consagrados como ‘alma nacional’ – se tornou uma contradição danosa ao conhecimento e o pensamento estético. Somos arrojados e mais complexos do que isso!

Como tentativa de escape desses paradigmas, nessa exposição dediquei uma sala para a projeção de um trabalho experimental intitulado Imagem & Memoria(link). 
As obras dessa serie não existiam concretamente, versavam apenas em manipulações digitais compartilhadas na memória do programa do computador que me impulsionaram a criar imagens imateriais manipulando dados coletados a esmo nas interações no ciberespaço. Há um pequeno filme sobre essa experiência e um texto que fala das intenções da proposta.

5 . Em 2008 realizei duas exposições na Caixa Cultural. Uma no Rio e outra em São Paulo, que foram divisor de aguas no meu processo pictórico.  As mostras mesclavam pinturas em técnica e suporte tradicionais e obras realizadas sobre superfícies sintéticas, interfaces magnéticas e metais –aço carbono e alumínio, revestidos com pigmentos especiais e substratos (resinas) sintéticas de tecnologia de ponta– PU / Poliuretano Uretane.
Esses insumos de alta tecnologia, não produzidos especificamente para a produção artística se mostraram compatíveis com a experiência que me dedicava. Recondicionando a técnica industrial chamada ‘fechamento de filme’ – ao meu proposito estético, apanhei o substrato básico – uma resina sintética, mais transparente que a clara de ovo usada no processo da tempera-  desenvolvi uma fórmula de diluição de pigmentos translúcidos sucessivamente  aplicados em finas camadas sobrepostas com objetivo de puxar  o croma predominante para superfície onde as cores eram aplicadas, trazendo à tona a fisicalidade do suporte revestido pela cor –aço carbono ou alumínio espelhados. 

6 . A partir de 2008 – depois de muitos erros e acertos- adotei em definitivo esse tipo de procedimento pictórico para todas as obras que produzo desde então.
Nota: o que mais me surpreendeu nessa exposição (2008) foi ter ouvido de diversas pessoas que essa experiência escapava do ‘campo da pintura’. Era outra coisa, não mais pinturas! Alguns achavam que era um processo de reprodução digital de ponta -metacrilatos e similares - comuns nos dias atuais.  Como senti os comentários como autênticos, sem conotação pejorativa a minha obra, guardei como um elogio gratificante. Eureca! ‘Transgredi’(ops) com êxito os limites impostos à pintura e conclui: pinturas únicas, feitas à mão, muitas vezes dadas como  ‘mortas’, se desdobram em múltiplas e sensíveis aparências no mundo das ‘coisas’ reais.

5 . Em 2012, fiz uma pequena exposição só com obras com essa técnica na Galeria Gustavo Rebello. Depois (2014) fiz outras. Uma no Rio (Mercedes Viegas) e duas no exterior.

7 .  O conceito que reveste essa série - em processo - tem duas pegadas. As duas relacionados ao ‘tempo da pintura’. Um tempo é o do próprio processo pictórico em si (in compartilhável). O outro (compartilhável) é o tempo do objeto pintado frente ao observador eventual. Essa fatura pictórica dispensa o gesto sensível, a textura pictórica marcada pela caligrafia autentica e inconfundível do pintor, para dar vida autônoma à superfície pintada em relação ao observador que nela se vê refletido enquanto aprecia e se movimenta frente à obra. Esse conceito tem intima relação com o ‘tempo presente’ e o transito das informações em diversas camadas, eixo da cultura digital.
Do ponto de vista poético, essas obras reativaram em mim a alegria da experiência desbravadora que se lança numa viagem sem rota- projeto/croqui ou estudos- tendo em vista que um ‘projeto’ de pintura é incompatível com o meio. Isso me levou também a um novo encontro com os fenômenos da natureza sem ter como base as ilustrações naturalistas/ desfiguradas ou abstraídas, pela vontade do autor.
As alusões aos fenômenos da natureza dizem respeito à incidência da luz ou ausência dela, sobre as coisas do mundo. Ao evitar representa-las artisticamente –os fenômenos naturais da luz, cores e formas em movimento -  acontecem aleatória e singularmente. As difusas e mutáveis aparências formais dessas obras sobrevêm a cada ‘visão’ do objeto.
Não trato de representa-las como tal, mas sim torna-las em si –intrinsecamente- pinturas ‘espelho d’agua’ em posição anômala -porque vertical -  aos espelhos d’água horizontais espalhados na natureza que desde a infância me encantavam por amalgamar em um só elemento os mistérios da profundidade à platitude, como fenômenos espelhados nas superfícies reluzentes.