A cultura é coisa do homem que mora num certo lugar e num certo tempo
Gerardo Mello Mourão
O contemporâneo é sempre heterogêneo,fértil e inquietante.
Esses fatores impulsionam sua dinâmica. Outrora, contida por modos mais rígidos e limitada pelo conhecimento,técnicas e disciplinas circunscritas à cultura de cada época,tal dinâmica permite aquilatar que a característica primordial do contemporâneo é ser - em essência - um tempo em suspensão, onde germinam incertezas.É certo que nunca houve de fato um meio capaz de assegurar experiencias similares compartilhadas simultaneamente entre os contemporâneos.
Não falo aqui de um modo pessoal e subjetivo de interpretar o tempo.Falo da constatação de que nesse tempo incerto tudo é relativo,sobretudo, no que tange as diversas modalidades de percepção.
Ainda que para inserir-se na sua fugidia natureza, insista-se em moldar narrativas sequenciais, presumivelmente aceitáveis, recorrendo-se à historia como uma panaceia para dirimir a insegurança ou planejando-se o futuro de curto prazo, o fato é que a contemporaneidade sempre impõem questões desafiadoras. Em síntese;o que é seguro para economia não é uma baliza para os desafios da existência. Ao menos, até que se imponha uma 'Economia da Vida' que espero nunca triunfe.
Por essas e outras,sempre considerei uma discrepância falar-se em 'cultura contemporânea'.
Datar o contemporâneo e rotula-lo como 'estilo'(s) é um artificio recente. O contemporâneo, propriamente dito, não se reduz a registros pré definidos.
Além de ser um equivoco, utilizado frequentemente por quem investe nas intensões dissimuladas de reduzir o complexo mosaico contemporâneo que move-se continuamente, nota-se,nesse procedimento o intento de infundir ideologias e métodos,consagrar tendencias e,finalmente,controlar politica e culturalmente esse período incerto do tempo.
Os fenômenos temporais não são determinantes a ponto de conduzir toda a sociedade a compartilhar de uma mesma época,no sentido existencial,intelectual,cultural e social que caracteriza um período. Um paralelo desse equivoco pode ser visto nas resenhas jornalisticas que partem do pressuposto de que personalidades da mesma geração tem - 'algo mais' - em comum, além da década em que nasceram e viveram.
O advento da cultura digital,a interatividade entre realidade real e realidade virtual, em tempo real, perturbou a noção um tanto absurda de contemporaneidade,desorganizando a verticalidade com que se hierarquizava as camadas do tempo, nelas situando supostas rupturas entre a alta cultura e os diferentes costumes das elites pensantes em contraposição ao mundo dos 'leigos'.
O que anteriormente se classificava como classes econômica e intelectualmente privilegiadas, em contraposição ao povo em geral, ainda persiste,apesar das transformações substanciais geradas por uma nova cultura,agregada ao complicador inerente às mudanças que se apresentam a cada dia. Dinâmicas velozes levam muitas pessoas a se sentirem inseguras num mundo sem chão e sobre o qual se sustentava anteriormente uma cultura de valores pré definidos.Tudo de repente se tornou liquido,incerto e mais difícil de ser percebido.O fato é que,na realidade, as premissas da 'era do saber e da informação' focam exatamente na quebra do padrão que se equilibrava precariamente numa linha hierarquizada de valores que marcaram a modernidade.
A contemporaneidade,assim estendida, subverteu radicalmente a dinâmica cultural, quebrando incessantemente a linha hierárquica da distribuição dos saberes em contraposição direta às concepções pre estabelecidas de mundo,cidadania,participação politica e do pensamento dominantes na modernidade.
Hoje,ainda que analises dos fatos em curso busquem nos situar frente as inserções de eventos atuais no contexto de um tema ou questões especificas, as tentativas de consolidar analises sobre o contemporâneo,como um dado determinante, se diluem em respostas que não encontram eco na sociedade. Quanto mais se insiste no método, mais se dilata a sensação de estranheza sobre a vida contemporânea.
Enquanto muitos pensadores se aprofundam em analisar esses fenômenos, a maioria investe na vida regular,interagindo em grupos com os quais trocam códigos e valores e,claro,se protegem das vicissitudes da vida contemporânea que,convenhamos,não é tão amigável quanto outrora.
Essa proteção, ainda que gere algum conforto, tende a trazer muitos dissabores.
Qualquer hipótese que critique a convergência de grupos sociais sobre as escolhas do momento é motivo de mais incertezas.A gradual perda de consistência da ideia clássica de maioria (religiosa/politica) e a crença no protagonismo do individuo como força politica transformadora contribui para complicar ainda mais o espectro contemporâneo. A premissa de avançar mais sobre as conquistas sociais tem levado a confrontos que se potencializam na sociedade como ameaças terríveis.
No campo especificamente artístico, as contradições contemporâneas,em contraposição as atitudes, ações e obras da vanguarda do modernismo histórico,refletem uma realidade não muito questionada mas que merece ser pensada.Ainda que a contemporaneidade se mostre distante das experiencias sócio culturais daquele período,as ideias que levaram à ruptura da vanguarda histórica ainda permanecem como um modelo estético predominante no sistema cultural,nas escolas de arte e no circuito artístico geral.
As tentativas de consolidação de tendencias estéticas, seguidoras da matriz da vanguarda histórica do seculo XX, se mostram vulneráveis,esvaziadas que são de potencia criativa em dialogo com o processo cultural em curso.
Ainda que não explique o fenômeno,as auto biografias estetizadas, o 'artistismo' das teses exóticas de antropologia cultural,da proto filosofia,dos sociologismos,dos conceitos politicamente corretos, das expressões do senso comum convertidas em arte e etc, se tornaram fontes de inspiração,uma especie de 'espirito' que move um corpo sem forma que vaga pelas escolas artísticas da atualidade.
O que se percebe é que não ha um confronto crucial entre uma suposta inovação artística e a cultura geral,como havia na era antecedente a ruptura moderna.
Hoje,uma aparente conivência se instalou como regra geral.Tudo parece permitido.
Contudo,uma pergunta se destaca sobre todas as demais. Maior visibilidade da produção artística contemporânea,circunscrita aos últimos trinta anos, reflete os anseios de uma sociedade mais livre e aberta que a do período moderno antecedente?
Houve,de fato,nos últimos trinta anos,uma mudança radical nos extratos sociais que resultou numa convivência mais harmoniosa de modo a consolidar uma estética mundialista?
Se a resposta for sim,não ha o que se debater. Tudo está nos conformes. Para os seguidores do modelo, vivemos no 'melhor dos mundos'.Pelo menos para alguns artistas e as artes que produzem.
Para os adeptos dessa versão dos fatos, os avanços sociais globais refletem uma interação harmônica com as propostas artísticas que se pretendem radicais. O 'outsider' de outrora se converteu no 'insider' da atualidade.
Se a resposta for não, ha muito o que se debater sobre o fenômeno da mundialização da arte contemporânea.
Para os que consideram a mundialização artística em curso uma alternativa artificial a batalha é árdua.
Em tudo diferente das propostas de internacionalização da arte defendida pelos modernistas,a mundialização estética da atualidade parece atender a uma demanda crescente por novidade. Mas,onde encontra-la?
As instalações,nascidas da ruptura modernista da metade do seculo XX, se tornaram um modelo dominante nas grandes mostras contemporâneas.
Em alguns aspectos,esse modelo de exposição parece atender a lógica da massificação, técnica muito comum num tempo em que a informação agigantou o consumo cultural em escala global.
Não conheço recorte histórico em que se deu tamanha sinergia entre artistas,curadores,investidores, consumidores,instituições,agentes,mídia,marketing.
Por isso, não é de se estranhar, que nos domínios da arte, o modo de ver o contemporâneo seja questionado por muitos artistas que enxergam nessas modalidades uma interação conservadora entre as pontas da produção artística e das curadorias.
Se a contemporaneidade é marcada por incertezas,onde encontra-las na veloz e estratégica inserção da produção estética da atualidade nos museus e no sistema de arte como um todo?
Nesses ambientes o que se enxerga são consagrações fundadas na presunção de uma certeza quase 'histórica',digamos assim,sobre as obras e os artistas que exibem e difundem.
Se o mundo real reflete insegurança e incertezas,o sistema de arte contemporâneo,ao contrario, reflete certezas estéticas e econômicas a dispor do grande público.
Algo não confere, já que nesse ambiente tudo está moldado para atender à 'espetacular' demanda de produtos artísticos jamais visto na historia.
Sabemos que para uma estrategia se consolidar no meio social é fundamental que se reduza o campo das incertezas,substituindo-as pelo poder afirmativo dos agentes e intermediários(marketing cultural,mídia,instituições e mercado) de maneira a conferir credibilidade,projeção social e econômica a uma corrente estética aparentemente plural mas,de fato,agregada ao modelo mundialista .
Essa fórmula permitiu que se projetasse um salto de etapas, amparado na inserção internacional da produção artística antes periférica, nos centros hegemônicos de arte e cultura.
Assim,o que antes exigia um longo processo de decantação crítica e temporal,cujo perfil era traçado por critérios rigorosos de aferição da obra de arte de maneira a legitima-la institucional e socialmente(museus,institutos,industria editorial) hoje,pode ser feito por uma equipe de marketing,curadores,agentes promocionais,mídia cultural e dealers. Os paradigmas surgidos na pós modernidade,fundados no pressuposto do 'salto de etapas',na liberação e aceitação estética imediata na rede de instituições de arte, dá vazão à produção estética contemporânea suprindo a contento a demanda de um público mais 'ilustrado', avido por novidade.
Entretanto,as investidas de muitos artistas,agentes e curadores que tentam ajustar tecnicamente a nova 'démarche' temporal (salto de etapas + inserção global)entre experiencia criativa,obra e observador, mostram distorções quando recorrem a procedimentos tradicionais a fim de legitimar precocemente os movimentos estéticos da atualidade.Esse 'É' o maior dilema herdado pela réplica contemporânea do que foi a ruptura da 'vanguarda histórica'.
Esse artificio tornou mais problemática a argumentação do triunfo da arte contemporânea ao mesmo tempo em que desmantelou a ideia de que o pluralismo criativo 'vencedor' enterrou o velho preconceito contra a periferia.A produção artística contemporânea foi pacificada pelo formato mundialista hegemônico que conciliou o irreconciliável,abrandando as diferenças e tonando-as palatáveis. Pode-se dizer que um dos 'triunfos' da arte na pós modernidade é de caráter econômico. Nesse tocante não ha duvidas!
Ainda que um oportuno relativismo se apresente como o modo mais ajustado para difundir a arte do nosso tempo,o 'modus operandi' persiste o mesmo dos velhos tempos.
Sobretudo quando deparamos com os conceitos que regem as grandes mostras de arte a moda antiga, como as bienais que focam parte da produção contemporânea e não refletem a complexidade do tempo presente. Dar consistência a um conjunto de obras contemporâneas é uma forma de conter a profusão estética de modo simplista através das escolhas subjetivas dos curadores. Esse modo aparentemente novo é tão velho quanto as propostas que visavam dar ordem ao 'caos', com a pretensão de diagnostica-lo pelo viés da leitura especializada. Uma pretensão sempre frustante.
Não ha como substituir o frescor do contemporâneo pela rigidez da hierarquização pautada na intermediação dos curadores e suas narrativas complementares, sem profundidade de campo.
Tudo pode ser juntado num pavilhão. Até mesmo lapsos de contemporaneidade.Basta se ter um projeto e dinheiro para realiza-lo.
Mas,esteja certo,lá terá de tudo,menos o contemporâneo.
A tentativa de canalizar a criatividade de um tempo em um determinado sentido e, finalmente, controlá-lo,visa,sobretudo, acelerar a legitimidade social das manifestações estéticas de modo a lhes aferir sustentação nos segmentos culturais,institucionais e de mercado.
As incontáveis tentativas de controlar a singularidade da arte, revestindo-a de uma aparência de globalização estético/artística ,desprovidas de confrontos e passivamente assimilados em todos as quadrantes do globo, é um resquício da narrativa conservadora que visa objetivos concretos e não reflete a complexa conjuntura do contemporâneo.