Para aliviar as tensões e o cansaço do trabalho intenso das ultimas duas semanas decidi que este fim de semana seria dedicado apenas ao prazer. Solo feminino - amor e desacerto, romance de Lívia Garcia-Roza, estava à minha espera. Epa! Isso é promessa garantida de momentos de prazer. Já na primeira página entrei no banheiro e na intimidade de Gilda. Fui, passo a passo e silenciosamente, espionando, qual um agente secreto, as dúvidas os temores, as angustias e sensações de liberdade que emanavam dos relatos de Gilda. Devagarzinho, fui penetrando na intimidade do desejo feminino que, para mim, é um ambiente tão misterioso e atraente quanto um ritual de magia ancestral. Num determinado ponto da historia, não sei por que razão, o nome Gilda acendeu a minha mente com o intenso brilho de um anuncio em neon. Esse nome é um emblema. Na infância e adolescência eu tive uma vizinha com esse nome. Era uma menina misteriosa. E o filme?Quem não se lembra do filme?Na juventude me excitava com a idéia e tremia só de pensar que poderia encontrar uma Gilda hollywoodiana, perversa e dominadora, escondida no interior das mulheres que um dia eu amaria. O perigo, quando belo e sedutor é extremamente excitante. Encantado por essa demanda seria previsível que, mais cedo ou mais tarde, a encontrasse na figura de mulheres belas, desafiadoras e indomáveis. Não deu outra! Na puberdade fui levado a imaginar que o maior desafio seria possuí-las. Santa ilusão! Só quando adulto percebi que o verdadeiro temor se escondia na possibilidade de uma Gilda se interessar demais por mim. Please, Gilda!Antes de seu strip tease preciso recobrar a razão!Pensei. Há mais de duas semanas, antecipando os afazeres que me cercam, vasculhei algumas caixas de livros guardados no sótão. Numa delas reencontrei o magnífico álbum das touradas do Picasso. O coloquei no canto da estante para folhear quando tivesse um tempo disponível. Essa era a hora!Num salto o alcancei. A fantástica dança caligráfica de Picasso envolvendo touros e homens encheram meus olhos de beleza. São desenhos fabulosos que descortinam os gestos elegantes da esbelta figura de um toureiro em contraponto aos contornos sólidos dos touros voadores. Essas feras, revestidas de músculos poderosos e arrobas de fúria e desatino, impressas em negro cintilante sobre o branco incólume do papel, se contorcem de dor diante dos meus olhos. A arte é o canto da cultura onde o mistério se processa por inteiro. É ali que se instala com perfeição o maior dom da humanidade. Quando nos entregamos aos devaneios percorremos caminhos sinuosos de encontro ao inesperado. Com a mente divagando sobre Gilda's, Picasso, toureiros e touros, fui sendo gradativamente despertado para realidade na voz do locutor do UFC anunciando que, em cinco minutos, teria inicio a luta de Anderson Silva contra Vitor Belfort. Numa espécie de link ininterrupto ou escritura de um hipertexto, comecei a divagar sobre o combate tradicional entre homens e feras. Lembrei da primeira e única tourada que assisti. Meu deus, aquilo era um espetáculo de loucura e tristeza. Ainda que os antropólogos coloquem aspas em tudo que é tradição cultural e alguns artistas encontrem significado e beleza na tortura e na dor, aquele espetáculo me impressionou pelo enorme poder que emanava do martírio. Foi uma impressão tão inexplicável que na segunda corrida, para espanto dos vizinhos de arquibancada, eu torcia pelo touro. Recordo que sai da Plaza de Toros puto da vida. Joguei a culpa da minha ira nas apologias estéticas de Picasso e no romance Morte ao Anoitecer de Ernest Hemingway que tanto me impressionara. Não, Hemingway, a tourada não é a única arte em que o artista expõe a vida. A arte,quando grande,acontece nos extremos. O artista que a pratica expõe sempre a própria vida. Depois de alguns minutos, diante de uma taça de um delicioso xerez e abrandadas as impressões das mórbidas visões, caí em mim e lembrei que a escolha de ir e vir, independente dos meios que as estimulam, é responsabilidade exclusiva do individuo, no caso das touradas: eu! Ah!Gilda. Não se trata aqui de um suspiro para a Gilda hollywoodiana, ambiciosa matadora de homens que com um sorriso enigmático consegue ser mais elegante e perversa que um toureiro. Penso na Gilda do solo feminino, uma combatente que procura forças para sobreviver às estocadas das farpas compridas, curtas e de palmo, ao balançar doloroso das bandarilhas e aos efeitos cênicos da capa do matador que antecedem a estocada final da espada mortal. Os combates entre homens são em tudo diferentes. São fenômenos que se ajustam a lógica moderna de forma mais leal, digamos assim. Essa é uma das razões que me faz gostar de boxe e das lutas marciais e detestar as touradas e qualquer tipo de disputa cultural esportiva travada entre homens e bichos. Valorizo a disputa entre iguais, sem armas ou artifícios imorais. Las Vegas, 05 de fevereiro de 2011. O locutor do UFC 126 anuncia a entrada no octógono do desafiante. Vitor Belfort, um grande lutador carioca, senhor de excelente técnica, é o desafiante. No lado oposto do octógono encontra-se Anderson Silva, considerado o melhor lutador de MMA (artes marciais mistas) do mundo. Anderson é um lutador extraordinário. Campeão dos Meio Médios do Shooto, Campeão dos Meio Médios do Cage Rage e atual campeão do cinturão dos Médios do UFC.
Enquanto rolava as apresentações eu recordava o cartel dos grandes lutadores que tanto me impressionaram: Eder Jofre, Muhammad Ali, Sugar Ray Leonard, Roberto Duran, Carlos Monzon, Marvin Hagler, Thomas Hearns, Alexis Arguello, Roy Jones Jr, Mike Tyson, Evander Holyfield, Oscar de la Hoya,Julio Cezar Chávez e outros mais. Pouco antes do início da luta eu conjecturava, sem nenhuma conotação cívica, sobre a ascendência dos lutadores brasileiros nas arenas internacionais. Se a tourada pode ser considerada uma arte em que o artista expõe a vida, as artes marciais podem ser entendidas como a expressão do talento de vencer o medo que antecede a derrota e a morte. Anderson Silva venceu o desafio, confirmando ser o maior campeão do UFC. Volto agora para outra espécie de desafio capital. Retorno para o solo feminino-Amor e desacerto.