sábado, outubro 06, 2007

VISUALIDADE TÁTIL E A PARTILHA DA ARTE


de 27 de setembro a 16 novembro 2007




Pouco mais de duas décadas depois, Adriano de Aquino volta a expor em Vitória e a apresentar, em primeira mão, efeitos do acaso, tomados por ele como experimentação essencial à obra de arte. Em 1985, na meritória galeria Usina Arte Contemporânea, viram-se os primeiros trabalhos da série Negra, cuja evolução demarcou seu afastamento de um campo pictórico excessivamente regrado, submetido à previsibilidade da razão e desejoso de uma pureza por vezes desatenta ao caráter intempestivo da criação. Hoje, torna-se possível conhecer e experimentar suas Formas magnéticas transitórias, decorrentes dos descaminhos a que o artista tem sido levado desde o surgimento da série Divisões internas em 2001.

A mostra se resume, basicamente, a dois conjuntos de obras, ambos caracterizados pela ativação do que se pode chamar de visualidade tátil e que corresponde à percepção simultânea, na pintura, do contínuo e do descontínuo. Explico-me adiante, pois é preciso distinguir os suportes de que a pintura se vale para promover, de maneira objetiva, a atividade sensorial de quem entra em contato com ela. Trata-se, no primeiro conjunto, de placas quadradas de mdf em que cisões, deslocamentos ou superposições seduzem a forma original e não a deixam se recompor. No segundo conjunto, chapas de ferro se recriam pela inserção de mantas magnéticas, cujos deslocamentos possíveis traduzem as contribuições do público para os modos como a pintura se define e redefine ao longo do tempo.

A palavra alemã Takt, comum e corretamente traduzida por tato, carrega consigo diversos outros significados relacionados à música e, por extensão, à audição. Takt também é compasso musical. Taktstock, a batuta do regente e Taktmesser, metrônomo. Os adjetivos compassado e cadenciado podem ser traduzidos pelo vocábulo taktmässig, e o senso rítmico, cuja figuração se aproxima da idéia de delicadeza, por Taktgefühl. Há na palavra alemã, portanto, conotações de medida, andamento, cadência, sucessão e ritmo, este, contudo, compreendido no sentido de intervalos indicados por alternância, regularidade e acentuação, forte ou fraca, e não como duração e heterogeneidade ininterrupta, que me parecem o entendimento mais adequado às obras da série Divisões internas.

Ao recuar até as raízes das línguas européias, chegamos ao radical latino tag–, do qual se desdobram, ainda no latim, contato, contaminação, contigüidade e contingência; no francês arcaico, taster – atualmente, goûter –, que quer dizer saborear e apreciar, tanto um quanto outro sentidos bem próximos da palavra inglesa taste, cujos significados correntes são paladar, sabor e gosto; no italiano, encontra-se tastare, sentir, manipular, e no francês, tâtonner, tanto tatear quanto observar e experimentar, tatillon, minucioso, e tâtons, às apalpadelas ou às cegas. Depoimentos de diversos artistas ajudam a revelar a sinonímia existente entre tatear e ter olhos nas pontas dos dedos, bem como a modulação da expressão ter bom gosto em relação às sensações do paladar: precisam tocar a pintura para compreendê-la melhor, impulso muitas vezes revelado pelas crianças, e sentem e utilizam o gosto das cores.

Visualidade tátil, portanto, refere-se não só à indistinção ou mescla dos sentidos cotidianamente localizados por nós em um órgão ou conjunto de órgãos, como também à simultaneidade perceptiva a que se chega ao apreciar estas obras de Adriano de Aquino. A recorrente redução da pintura à visão, à hegemonia do que se vê, é apenas um caso particular das condições e dos limites da percepção sensorial. Deve-se favorecer, ou mesmo privilegiar, a continuidade que se vivencia entre diversas sensações corporais, conformando-se o ritmo de um espaço fisiológico, intimamente ligado à memória e à história tanto pessoal (aquele que constrói ritmicamente seu discurso sobre a arte) quanto coletiva (o que cada época histórica, a um só tempo, revela e oculta).

Nesta exposição, de todo modo, o decisivo é apreender que, nas Formas magnéticas transitórias, o movimento deixa de ser exclusivamente interno à pintura, pois pode ser alterado pelo público, ao deslocar as mantas sobre as chapas de ferro e, por vezes, ao prolongar ou ultrapassar a sua forma quadrada. O público é um dos fatores constitutivos da obra, mas sua participação deve reconhecer de onde provém a pintura do artista, pois nem toda ação desempenhada no espaço pictórico, sobretudo se fortuitas, será coerente com seus princípios construtivos. Mais do que uma aproximação irrefletida entre arte e vida, sobretudo quando essa proximidade tão-somente se opõe à reivindicação moderna de autonomia da criação artística, aborda-se aqui a indução de proposições estéticas do público sobre as obras expostas, em detrimento da crítica, no sentido de uma operação que procura prevalecer, instituir-se ou tornar-se hegemônica. A alegria a ser desejada, mas muitas vezes não alcançada, será sempre a de partilhar com o artista competências distintas e entender que o espaço comum inclui o invisível e jamais se completa.


Luiz Eduardo Meira de Vasconcellos

setembro de 2007