Agradeço o convite da Academia Brasileira de Filosofia para participar deste evento no qual o AMOR é o centro das atenções, tanto dos palestrantes como dos participantes. Em tempo, existe um tema mais digno da nossa atenção do que o AMOR?
Aproveito para agradecer à organização do encontro por ter corretamente referido a minha atividade como "artista plástico", em vez do genérico "artista visual". Explico: em outras ocasiões, sugeri que a mencionassem dessa forma, mas não obtive êxito. Aliás, várias vezes tentei retificar a aplicação do termo em apresentações, sem sucesso.
Na física, a plasticidade, quando aplicada a um vastíssimo conjunto de corpos materiais, incide em transformações que, ao serem submetidas a ações externas – inclusive humanas –, não retornam ao seu estágio inicial. No fenômeno criativo, as substâncias físicas, amalgamadas pelos artistas, dão forma e corpo a algo que antes não existia. Os materiais e a forma que derivam da plasticidade não voltam mais ao estado original. O termo se aplica com exatidão à minha atividade.
Foco:
Perspectivas, desdobramentos e variáveis dos sentimentos provenientes da virtude do amor na contemporaneidade.
O conceito "amor líquido", criado pelo sociólogo Zygmunt Bauman, que consta de sua obra homônima, descreve o tipo de relações interpessoais que se desenvolvem na atualidade, caracterizadas pela ausência de solidez e cuidado, e pela marcante tendência de serem cada vez mais fugazes, superficiais e alheias a compromissos. Todavia, ao acolher o termo "amor" no âmbito da sua análise, Bauman parece concordar que as negatividades por ele aludidas não descartam a persistência do amor nas trocas humanas. Nesse sentido, não seria um disparate recorrer à plasticidade como resgate das virtudes do amor.
Diante disso, não sendo eu filósofo e menos ainda estoico, peço permissão ao filósofo Sêneca, para quem o amor, em especial no tocante à divindade cósmica (Deus), é uma virtude estoica, não moldável em sua essência e não sujeito à plasticidade, no sentido filosófico, evidentemente.
O desafio de forjar em palavras minha visão do amor se restringe às dimensões humana e terrena.
Entendo o amor como um conceito forjado pela cultura, sujeito a camadas sucessivas de experiências sociais em diferentes contextos históricos.
Plasticidade/Dialética
Nota: Na neurociência a plasticidade se refere à capacidade de adaptação e mudança, especialmente no cérebro. A neurociência avançou bastante sobre a dinâmica do nosso cérebro em resposta à experiência. Trata-se, portanto, de um evento de cunho individual, desprovido de regras pré determinadas. Dialética é um método de investigação e argumentação que busca a verdade através do confronto de ideias opostas dentro de nós e aquelas que circulam no mundo.
A "plasticidade", na acepção filosófica, é para mim o eixo dos infinitos desdobramentos do amor nas relações humanas, sejam elas íntimas ou platônicas. As muitas camadas do amor – à humanidade, materno-paterno, filial, romântico, fraterno, pelas ideias/conceitos/conhecimento (ideia de Deus), etc. – fazem do amor a experiência existencial mais inspiradora, profunda e bela.
Aqui faço uma inflexão em direção à paixão, um estado emocional intenso, impulsionado por atração física avassaladora e idealização do outro, abrangendo uma variedade de manifestações psíquicas acionadas pela descarga hormonal da libido. Ainda que a experiência nos alerte sobre as armadilhas da paixão, mergulhamos nela com frequência. Não confundir paixão com amor é uma atitude psíquica/emocional saudável. Coaches da antiga Grécia aconselhavam seus seguidores a contrair paixão na adolescência e a evitá-la na idade adulta. Sábia recomendação.
Entre muitos sentimentos despertados pelo amor, o temor e a perda estão inevitavelmente inseridos. Até porque o medo de amar está intrinsecamente vinculado à perda, seja por rejeição ou morte – duas circunstâncias demasiado humanas sobre as quais os poetas, ao longo de toda a história humana da qual temos registros, criaram e continuam criando obras profundas e maravilhosas sobre as vicissitudes do amor.
O tempo é inexorável. Não há nada sobre a Terra imune à sua influência. Os labirintos do tempo são imprevisíveis a ponto de nos levar a temê-lo tanto que nos abrigamos no subterfúgio do "tudo é efêmero". Uma porta de escape para grandes tormentos, sobretudo porque as ações do tempo não se importam com nossos sentimentos, desejos, ideias, projetos e teorias.
Com o surgimento e a universalização da cultura digital e suas características ímpares, uma das maiores aflições da cultura contemporânea é a perspectiva de perdermos a humanidade e o amor entre os homens ser tragado para um buraco negro nos confins do universo. Desaparecer.
Porém, ao contrário das mudanças deslumbrantes de ordem prática, como a veloz alfabetização digital — que alavancou um enorme contingente da sociedade a possuir uma identidade virtual, interagir com tutoriais simples e objetivos para acessar a malha dos sistemas operacionais do cotidiano, obter as mais variadas notícias do mundo em tempo real e compartilhamentos indiscriminados em larga escala, etc. — trouxeram também uma curiosa versão de correspondência afetiva/amorosa e desdobramentos no âmbito do desejo. É isso que pretendo abordar, sobretudo porque, creio eu, a cultura digital estendeu as relações humanas para dimensões inusitadas, compartilhadas em tempo real.
A era digital se pauta na expansão do conhecimento, no compartilhamento de ideias e na aproximação indiscriminada de culturas diversificadas. Simultaneamente, vimos surgir o medo generalizado de sermos atirados no espaço da solidão cósmica, onde o encontro entre pessoas reais será paulatinamente suprimido. Seus duplos virtuais vagarão no ciberespaço pela eternidade.
No universo das artes, ao me ater com atenção sobre a "travessia" entre o analógico e o digital, o que vejo é estimulante e promissor. No tocante aos sentimentos derivados do amor, essa travessia tem se revelado profícua. Seria muito longo abordar em profundidade obras de arte, romances literários e filmes que prefaciam essa transição com ousadia. Cito apenas dois: "Blade Runner 1", onde homens naturais escravizam seres replicantes criados pela engenharia genética e, no final, o herói humano cai de amores por uma andróide; e "Her", que aborda a vida de um solitário escritor que mergulha numa relação amorosa com um avatar feminino ultrarrealista gerado pelo novo sistema operacional do seu computador.
O escritor Theodore é um ser moderno lato sensu. Muito antes da aparição da Samantha, uma entidade virtual intuitiva e sensível que inspira amor e desejo, ele já sofria do sentimento de angústia em relação à vida e aos significados da existência. Aliás, angústia existencial é um sentimento (ou programa?) que mobilizou a geração do imediato pós-guerra e se estendeu nos muitos movimentos da contracultura de viés libertário que marcaram o século XX. O enredo de "Her" tangencia o resgate das musas da mitologia grega. Frequentemente, elas eram figuras femininas reais ou míticas que despertavam a criatividade, imaginação e o deleite dos artistas.
Porém, é na criação e difusão da produção musical contemporânea que existem exemplos do trânsito suave da travessia dos paradigmas da modernidade e do que se convencionou chamar de pós-moderno para a era digital.
Desde que substituí minha discoteca física (LPs/CDs/Blu-rays) por um canal do YouTube onde arquivo minhas playlists, um outro horizonte – não natural – descortinou-se. Quem frequenta com assiduidade essa plataforma sabe disso. Não se trata apenas de uma via de informação, mas de um cosmo de fluxos intermitentes de produções diversificadas jamais vistas, disponibilizadas nas pontas dos dedos. Assim, minhas interações de mão dupla nesse universo levam e trazem coisas que eu levaria séculos para coletar e fruir no formato analógico.
Foi assim que tomei conhecimento de canais onde circulam produções e artistas os quais as tradicionais empresas de comunicação e entretenimento — seletivas por definição e ancoradas no mercantilismo — são incapazes de difundir. Constatei também que o AMOR ainda é o mais frequente tema para os criadores de conteúdo musical que "bombam" nas redes sociais. Para muitas pessoas pode parecer apenas uma simplória representação midiática do amor. Contudo, em meio ao turbilhão de produtos, é possível encontrar criações autênticas e sensíveis.
E mais, é através desse meio digital que se percebe o quanto as ideologias e o dirigismo das velhas elites intelectuais estão defasadas no tempo e fechadas em si mesmas.
Do ponto de vista da cultura geral em trânsito livre nas redes virtuais, esses movimentos são verdadeiras falácias. Certamente, por constatarem sua inexorável decadência, financiam milícias reacionárias para reprimir a liberdade de expressão e denunciar núcleos virtuais independentes e autônomos.
Exemplo da capilaridade da comunicação virtual é a interface 'Reaction' do YouTube, onde milhares, talvez milhões de usuários, ancoram suas 'TLs' de apreciação comentada da produção musical da atualidade.
Aqui vale um contraponto em relação às tradicionais fórmulas de análise crítica,fundadas na autoridade intelectual de especialistas eruditos versus opinião popular.
No fluxo digital, percebe-se com clareza o quanto os movimentos sociais dirigidos por grupos autoritários, identitarismo/woke e dirigismo acadêmico, são insignificantes.
A tese do racismo estrutural, por exemplo, só têm eco nos veículos tradicionais da grande imprensa, entre o professorado nos campi,a militância progressista,artistas e celebridades 'personalíssimas', abrigadas nas trincheiras do coletivismo politicamente correto, irmanados na crença de que o mundo só será melhor após eles salvarem a humanidade e o planeta(sic) .
Cito um exemplo da falácia identitária : por volta de dois anos atrás, o grande sucesso nos 'reactions' foi a apresentação do compositor/cantor Chris Stapleton na premiação da CMA.
Stapleton é um músico branco,natural do Estado de Kentucky, portanto,identificado como 'white country music'.
Para desespero e frustração dos progressistas 'wokes' e identitários, sua composição 'Cold' — uma comovente canção de amor perdido — foi por dois anos a performance musical mais emocionalmente comentada e enaltecida nos 'reactions'.
O dado relevante desse estrondoso retorno virtual é surpreendente.
Contava-se, claro, que Stapleton seria ovacionado pelos cowboys texanos, pelas loirinhas 'countries' e pelos sulistas brancos e melancólicos, abastecidos de 'whiskey' do Tennessee.
Para minha surpresa e talvez de todos, o que vi nos 'reactions' foi que os mais vibrantes e emocionados comentaristas da performance do Stapleton eram majoritariamente usuarios negros.
Até mesmo negros voltados para o repertório blues/jazz/rap, avessos a 'country music', fizeram questão de postar 'reaction' emotiva enaltecendo à performance do músico.
Essa reação é um choque de realidade na falange do racismo estrutural.
O sentimento amoroso confirma-se de fato como uma virtude que transcende etnias, ideias, teorias e projetos políticos de direcionamento e controle social.
Outro ponto que merece destaque são os canais de difusão para compositores e cantores desconhecidos da grande imprensa e invisíveis à indústria do entretenimento, como 'Colors'.
Sucessos como Billie Eilish, hoje no auge da fama, tiveram suas primeiras apresentações públicas nesse canal. Suas refinadas e belas composições, bem como sua voz, falam de amor numa versão original e encantadora.
Anamaria Sayre fala assim sobre ela: "Saudade é uma palavra portuguesa que pode ser definida, grosso modo, como um sentimento de melancolia, nostalgia ou anseio por algo amado, mas ausente. Não existe uma tradução perfeita, mas uma das expressões mais próximas que já vi em inglês para essa palavra é a performance de Billie Eilish em Tiny Desk. Você pensaria que a cantora nascida em Los Angeles inventou o termo. Cada respiração é tão cheia de melancolia indulgente e arrependimento esperançoso que, aos 22 anos, ela se tornou uma figura cativante do que significa, ou melhor, do que se sente, amar e perder simultaneamente."
Noutra perspectiva, surgem composições que também falam de amor numa dimensão radicalmente platônica.
Um caso que tem gerado polêmica é o do compositor Daxlin Vielo com sua balada romântica 'Sangrando Através do Silêncio' (Bleeding Through the Silence), que emociona milhares de usuários.
Porém, sua performance vem levantando controvérsias, pois atribui-se a ele o fato de não existir como pessoa real. Dizem tratar-se de um robô sentimentalizado, como Hal de '2001: Uma Odisseia no Espaço' ou um tipo de robô sensualizado como a Samantha do filme 'Her'.
Supõe-se que Daxlin seja uma criação virtual de um programador de IA que coletou milhões de informações, uma infinidade de poemas de amor,perda e dor, texturas musicais na órbita dos blues e baladas românticas, timbres de voz e sonoridade de grandes cantores e instrumentistas, passou tudo por um filtro seletor, juntou ao arquivo um avatar ultrarrealista de perfil nostálgico e solitário e deu 'vida' a um cantor de sucesso.
Alguns se disseram decepcionados por chorar pelo sentimento de um avatar.
Chorar ao som de uma triste música de amor é algo muito comum.
Mas, chorar pela 'dor' de um programa computacional fala mais do sentimento de abandono do próprio usuário.
O que nos leva a refletir sobre a carência que assola as sociedades dos nossos dias.
E ela vem de longe.
Derramar lágrimas "por algo amado, mas ausente", motivado por um ente hipotético/virtual , torna o lamento humano vergonhoso?
Chorar por um amor perdido só é digno quando vivenciado intensamente no plano real?
Essas são questões que vêm à tona no trânsito cultural que agora atravessamos.
No desdobramento dessas reflexões, a expressão clássica: -"De onde viemos para onde vamos?" remete a questões existenciais de fundo sobre a origem e o destino da humanidade.
O temor pelas mudanças em curso adicionou um alerta: até que ponto podemos ir sem que o sentimento de amor à vida e à humanidade nos abandone?
A nostalgia frente ao eclipse da modernidade e aos percalços da convivência afetiva duradoura é mesmo a causa que resultou na liquidez do amor dando lugar a "ausência de solidez e candura, a tendência generalizada das relações amorosas serem cada vez mais fugazes,superficiais e descomprometidas."?
Não creio!
No vasto oceano das trocas sociais,o AMOR permanece o que sempre foi: fonte inesgotável de inspiração para obras de arte, belas poesias e boa literatura, densas e intrigantes dramaturgias e cenário atraente para os consumidores de folhetins sentimentalistas gerados pela indústria do entretenimento.
Na política tem sido usado como slogan simplório por oportunistas e demagogos.
No plano ético/moral foi inserido no discurso maniqueísta de membros da alta corte de justiça que se arrogam tutores da 'recivilização' e escrutinadores do bem e mal, do certo e errado.
A institucionalização desses fatores no plano da política é intimidador.
Objetiva judicializar a crítica, dissipar o contraditório,cercear e punir os debates públicos e as plataformas digitais.
Isso projeta um mundo sombrio. Tão temeroso quanto os piores recortes da história.
Só a liberdade torna as sociedades mais humanas,as pessoas mais seguras de si e abertas ao amor verdadeiro e real.