sexta-feira, janeiro 08, 2010

Neurônios Ágora- O lugar do afeto



-Pai, por que a obra de um artista fica mais cara depois que ele morre?
O flash de respostas automáticas para filhos estava prestes a ser disparado quando a sensação de que algo mais poderia ocorrer se eu consentisse, tomou conta dos meus sentidos. O acesso ao diálogo aparece veloz como um raio, se não for apanhado pela cauda desaparece tão rápido quanto surgiu. A Ágora, para os gregos da Era clássica, o lugar da palavra, local de múltiplas atividades onde as pessoas conversavam sem que houvesse uma voz dominante, acontece em nossa vida a todo instante sem que às vezes percebamos. Isso porque, no meu entender, a matriz de Ágora se transmutou no correr dos séculos convertendo-se num valioso patrimônio da espécie humana. Por não possuir os contornos físicos de outrora, muitas vezes o acesso aos seus domínios parece invisível. Não vamos mais para Ágora, não trilhamos os caminhos e partilhamos incidentes para chegar a ela. A Ágora se moldou em nossos neurônios e, muitas vezes, não lhe damos a devida atenção.
A pergunta do Antonio atravessava as colunas de Ágora e quase escapava em respostas pré-concebidas quando fui alertado pela enorme banalidade contida no ato de restringir as respostas a sua idade cronológica. Vencida essa premissa iniciamos o dialogo que aqui reproduzo.
_Antonio, existem várias respostas para sua pergunta. Vou me fixar em duas opções para tentar te passar como entendo sua dúvida: a primeira opção é curta e grossa e se reduz ao fato de que hoje em dia o preço das coisas se confunde com valor.

_Mas, pai, não é a mesma coisa?
_Não, valor e preço são dois fenômenos distintos. O preço das coisas está ligado a um mecanismo que reúne uma gama de fatores vinculados ao sistema produtivo e ao lucro. Esse mecanismo, fundado nas necessidades de troca de produtos e serviços entre as pessoas, deu origem a complexos conceitos econômicos no correr da historia humana. Por força do habito aprendemos a lidar com esse engenho sem saber muito bem como ele foi construído ou como funciona.Muitos pensadores esmiuçaram esse mecanismo.Um filosofo alemão elaborou uma critica a esse sistema que deu origem ao termo "mais valia",ainda hoje muito debatida. Mas, o que importa é que o poder desse sistema, a tradição arraigada, a falta de tempo ou paciência reduzem a questão para o cidadão comum a dois pólos: caro ou barato. Se for caro, porém, precisarmos ou desejarmos muito, pode-se possuí-lo através do financiamento. Mas, ainda que o financiamento altere a composição do preço falar sobre ele nos levará para longe do objetivo de nossa conversa. O fato é que a formação do preço, via de regra, se basea em procedimentos, formulários, planilhas e indicadores que circundam a rede produtiva e definem seu custo e margem de lucro. Hoje, na pratica você vivenciou o fenômeno do preço versus valor quando ficou em dúvida se comprava o livro que acabou comprando, lembra? Venceu a decisão de comprá-lo porque, gostando do que aquele escritor escreve você resolveu pagar o preço.
_Claro!Só fiquei em dúvida porque estaria com menos notas na minha carteira.
_Exatamente!E, você só comprou porque entendeu que o que aquele escritor escreve tem valor para você, já que o que está escrito numa nota de dinheiro nunca te interessou ler, não é verdade?
_É mesmo!Nem sei o que está escrito numa nota. Só vejo cor e números.
_Pois então, o preço das coisas que rodeiam nosso dia a dia só se torna complicado em circunstancias especificas, sobretudo, aquelas que, ao contrario dos produtos industriais disponibilizados no comercio, tem características únicas. Por exemplo, parte da formação do preço do livro que você comprou tem características similares a de todos os livros fabricados por todas as editoras. Porém, algo de especifico o diferencia dos demais e pode explicar uma parte da questão; seu autor. Os segmentos, industrial e comercial, de um livro são mais ou menos iguais,dependendo, é claro, da qualidade de impressão, do papel usado e demais itens que entram na fabricação e divulgação do livro. Isso significa que acolá do talento do escritor e, em diferente dimensão, o fato de que o preço que ele cobra por sua criação ser um item específico, todos os demais que formam o preço final do livro depende de métodos produtivos mais ou menos parecidos. Depois de pronto e colocado na estante das livrarias a única coisa que o diferencia dos demais, afora o preço e o volume de vendas, é a qualidade literária. Esse predicado não é adicionado a um livro pelo fato de ter bom ou mau acabamento industrial, da popularidade ou a fama do escritor. Um escritor muito famoso tende a vender mais livros que um menos reconhecido, contudo, esse fato não quer dizer que o que vende muitos livros é um escritor esplêndido, superior aos demais. Porém, a grande vendagem de um autor aumenta a quantidade de livros a serem impressos e distribuídos. Esse procedimento torna um determinado livro um objeto com maior visibilidade e, por conseqüência, mais ambicionado que outros. Mecanismos alheios a qualidade da escrita podem subitamente tornar um livro de baixa qualidade literária em best- seller atraente para o publico e lucrativo para as editoras. Contudo, nenhum desses fatores é expressão inconteste do valor de uma obra literária.
_Por que não?
_ No inicio da conversa disse que preço e valor são coisas diferentes.
_É, disse!
_Você entendeu meu comentário de como o preço se cola sobre as coisas?
_Entendi!
_O vinculo dos escritores com a indústria editorial e as formas de circulação do livro desenham a fronteira na qual o escritor ganha seu sustento. É nesse lugar onde se organiza o preço de seu trabalho. Se carecer de mais grana para viver ele terá que escrever em jornais, revistas, dar aulas ou fazer conferencias. Na maior parte dos casos, fazer tudo isso numa só vida. Isso quer dizer que o resultado econômico de seu trabalho principal, ou melhor, o preço de seu trabalho criativo, estará sempre ligado ao contrato com seu editor e a venda dos seus livros. Os escritores não produzem objetos que escorregam para uma alternativa que admita uma oscilação, para cima, dos preços praticados pelas livrarias e do qual seja o único beneficiado, Alguns exemplares de uma edição magnífica podem até se tornar raridades e,quando adquiridos por colecionadores, atingir grandes somas. Todavia, os escritores não estarão vivos ou, se estiverem, não receberão nem um tostão por isso. Espero que essas considerações sobre a formação do preço tenham sido claras.
_Entendi sim!
_Já o valor da obra de um artista independe dos fatores relacionados ao preço. Digo isso porque o valor, ao contrario do preço, é gerado dentro nós, se processa no cerne da nossa consciência e é fruto das múltiplas experiências que vivenciamos desde o nascimento. Nossa visão do mundo se reflete numa lente interior, digamos assim, que vai se ajustando à medida que vamos coletando sensações, experiências, talentos e saberes vida afora. Consciência e valor são, portanto, irmãos gêmeos, poderia dizer que são extensões de um mesmo ramo molecular. As causas externas são fatores cruciais na formação de valor de uma pessoa porque agem diretamente no desenvolvimento da própria consciência. A consciência que nos possibilita escolher o que avaliamos como precioso se expande à medida que nos emancipamos das normas herdadas, da tutela de terceiros e das fórmulas consagradas . Num sentido figurado, consciência e valor atingem melhor desempenho quando se fundem na forma de uma fita circular, sem rupturas ou emendas. No ambiente onde se desenvolve o valor/consciência a fusão preço/valor se desintegra e as doutrinas dos arautos da verdade absoluta tornam-se ecos distantes,parecidos com os gestos e berros dos feirantes. A arte, a ciência, a filosofia, a religião, a ideologia, a historia, a política e todas as abas do pensamento se acumulam num dique que chamamos cultura. Nas fissuras da parede de contenção vivem os artistas. É lá que surgem as belas e inquietantes obras de arte. Quando um artista morre um desses vazamentos se fecha. Suas obras se tornam raras e, por uma serie de razões, mais cobiçadas. Essas coisas acontecem porque a matriz que as gerou não mais existe. Como nunca sabemos o que fazer quando algo que nos abastecia deixa de existir, abrimos um gargalo automático a fim de substituir de modo simplificado nossa admiração. Então, a obra do artista morto é cultuada de diversas maneiras, dentre elas a do preço que se torna mais alto do que quando ele vivia. Eu diria que isso é nada mais que um culto onde se tenta mesclar coisas díspares a fim de transferir significado elevado para o dinheiro e dar prosseguimento a um código simples que exprime um conceito equivocado: quanto maior o preço melhor a arte. Como o ser humano é um bicho fascinado por cultos e o culto ao dinheiro hoje é soberano, essa pratica persiste. Deu pra entender?
_Um pouco, estava prestando atenção em outra coisa.