terça-feira, maio 22, 2007

Variações sob a cor*



Luiz Eduardo Meira de Vasconcellos
abril de 2007

Em uma primeira aproximação, estas pinturas de Adriano de Aquino podem ser entendidas como variações de um mesmo problema pictórico a que seu trabalho chegou nos últimos anos: a persistência da cor como enigma. Essa apreciação, contudo, corresponderia a uma transposição de um conceito musical para o campo da pintura. É preciso, ao menos, alguma distância para refletir por que meios a simultaneidade cromática sob a qual ocorrem tais variações consegue gerar em nós certa escansão temporal, ou melhor, um fluxo rítmico irreversível que nos permite absorver os modos pelos quais somos renovados e ultrapassados por essas pinturas furta-cores, esses catassóis descendentes de quadrados e avizinhados a um certo tipo de mistério sobre o qual se deve ter prudência ao falar, mesmo que sua companhia se mantenha ao nosso lado por quase toda a vida.
Trata-se aqui de um espaço de pintura – quiçá interior (somos nós sempre outros?) – que ainda não é e, por isso, não se vê, não quer ser logo visto, bem como pretende manter seus contornos permanentemente indefinidos, pois só pode existir como futuro partilhado e desde que se faça
presente. Esse espaço projetado, portanto, não é receptáculo de impressões, associações ou opiniões que o espectador, supostamente, faria recair sobre a pintura, como se esta pudesse se apartar de sua materialidade ou ser compreendida segundo um contexto no qual finalmente se daria a ver. Não é tampouco algo em que se pode ver sem ser visto e cuja manutenção invariavelmente tende a apagar os efeitos da luz sobre as coisas do mundo.

A esse espaço só se chega por meio da própria experiência, na qual cada obra ou conjunto de obras é uma situação inédita e as ações válidas são exclusivamente aquelas de quem chega a ver. Abeirar-se, demover-se, arredar-se, girar sobre si próprio e esquecer-se são exemplos de alterações que acompanham ou perturbam os movimentos oculares e sua sina em buscar compreender o que resulta da visão. São, em outros termos, uma sorte de responsório silenciado, em torno do qual se expressa o que nos divide como sujeitos e é condição singular para aceder ao que a pintura deixa ver de invisível.

Nesse microcosmo, a um só tempo fisiológico, pictórico e musical, os valores incondicionais se dispersam e se esmaecem, reencontrando-se tão-somente além de quimeras embaladas pela promessa (demasiado humana) de eternidade, sem a qual o desejo de ver outra vez, de outro modo, com outros olhos, encontra sua nascente. A cor, então, ainda que múltipla, é passagem temática para o que nestas pinturas, mas também em nós, permanece inalteradamente outro: a heterogeneidade e a duração melódicas de um suporte ou corpo enxertado de tintas ou palavras, dos quais quase sempre provém o testemunho rítmico de que se varia de uma coisa só.

*texto para exposição da Série Divisões Internas

fotos: Jaime Acioli

Galeria Valu Oria

São Paulo

10 /31 de maio de 2007


terça-feira, maio 01, 2007

Quadros Deitados



Teixeira Coelho, crítico de arte e curador-coordenador do Museu de Arte de São Paulo (Masp), e a diretora de teatro e cenógrafa Bia Lessa (nesse ritmo em breve as exposições de arte terão assessoria para figurino e adereço, afinal, como diria Agamenon Mendes Pedreira: pintura também é gente) foram os responsáveis, respectivamente, pela curadoria e o conceito espacial da exposição Itaú Contemporâneo: Arte no Brasil 1981-2006, que ocupa os três pisos da instituição com obras do acervo do banco. A mostra, que encerra no dia 27 de maio vem desagradando artistas, críticos e outros segmentos ligados às artes plásticas pela forma com que as pinturas são apresentadas. O curador e a cenógrafa, vítimas da síndrome da contemporaneidade, que entre outras alucinações se manifesta por surtos de prepotência, desprezaram as inúmeras razões que levam os artistas a criarem quadros para paredes, ao adotarem um ponto de observação pitoresco mostrando-os deitados no chão. Fiel a tradição liberal dos banqueiros, a diretoria da instituição cultural permitiu que fizessem o que bem entendessem com as obras de sua coleção. Ora! Devem ter pensado: pra que se aborrecer, afinal de contas quadros expostos no chão proporcionam ao observador um curioso ponto de vista. Seguindo a norma vigente nesse tipo de divertimento, a mostra também oferece um seminário Investigações Contemporâneas (ufa!) que se inicia no dia 3 de maio.

Atualmente é comum ouvirmos que as mudanças que vêm ocorrendo descartam os laços de compromisso ético, moral ou coerência intelectual nas artes, ciências, política e negócios, que tornam possível um alto grau de liberdade nas sociedades abertas, as forçando a encarar intermináveis discussões sobre sistemas de valor. No ambiente artístico nacional essas questões vêm atormentando mentes e corações, dissipando desejos em troca de projetos de fama, dinheiro e glória póstuma - usufruída de preferência em plena vida.
Um bom exemplo do impacto das incessantes mudanças na vida das pessoas se manifesta em suas oscilações temperamentais. Um desses casos pode ser constatado lendo-se o post Bienal do Mercosul: Margem ou Via? postado no HiperBlog e que aqui reproduzo um trecho:

[Tempos atrás o Fórum Permanente de Museus realizou discussão sobre o tema] O Curador e a Instituição de Arte. http://forumpermanente.incubadora.fapesp.br/ [Naquela ocasião Teixeira Coelho disse que] o curador é um crítico diplomático, pois ele faz uma seleção dentre as obras e as justifica, calando-se sobre as obras que ficaram de fora. [Teixeira afirmou também que] as curadorias se fazem hoje, na maioria das vezes, no limbo das questões não feitas, que para ele seriam fundamentais. [Ainda, segundo ele] o crítico, tem mais condições de trabalhar as questões mais sensíveis da obra. Entretanto, o paradigma que se tem para o crítico é o mesmo do curador, ou seja, o da falta de questionamento.

É inútil exigirmos compromissos dos intelectuais com seus discursos do passado o que torna mais fácil o entendimento sobre como as questões não feitas levaram a conceituação e a montagem da exposição... Itaú Contemporâneo: Arte no Brasil 1981-2006.

Daniel Feingold escreveu e fez circular na internet um texto que vem obtendo adesão de muitos artistas e críticos. Nele o artista analisa as complexas relações observador/pintura advindas de um processo histórico-cultural e pede ao Instituto Itaú Cultural que retorne as telas deitadas à posição vertical nas paredes do Instituto.

Adriano de Aquino

1 de maio de 2007


Quadros Deitados

Daniel Feingold

Quadros no chão, quadros deitados, enfim como quer que seja... Para não somente, desaforadamente, querer contradizer sub-autores pós-modernos que nos acusariam de conservadorismo, o que se deveria então dizer?
Vamos esclarecer certas relações históricas. Primeiramente é bom dizer que, por históricas, não nos referimos ao cliché do antigo ou do velho, mas sim àquilo que se entende por “processo histórico do vir a ser das coisas”_ resultado vivo do desdobramento que lega, através do tempo, o “bulk” de conhecimento adquirido e consequentemente transmitido dentro de qualquer cultura.

A pintura, dada como morta por muitos há muito tempo, como disse Sean Scully, com toda propriedade em conferência aqui no Rio (vide seu trabalho)_ é fonte inesgotável de conhecimento visual. Ela traduzia, na idade média, a relação de poder entre a cúpula da igreja e as monarquias ao redor, em cenas simultâneas representativas das hierarquias terrenas subordinadas às celestiais. Por meio de pequenas composições cênicas aglomeradas didaticamente no quadro assuntava-se uma narrativa de ordem sócio-política. Com o advento do Renascimento e do início do “split” político entre arte e poder religioso, a criação da perspectiva instrumentalizava cientificamente os modos de ver, inserindo formas ilusionistas volumétricas, possibilitando a divergência na verdade única da fé. O Imperador Constantino, no início da era cristã, obrigava a forma plana na constituição do ícone bizantino pois temia a ameaça que o duplo sentido da ilusão, se alí se instalasse, poderia trazer à estabilidade do poder.

Surgia assim um horizonte artificial sobre o qual pontos fugidios falsificavam a construção do olhar. Buscava-se então uma nova representação que se utilizou de temas clássicos do passado para constituir uma nova moral, através de uma razão projetiva induzida pelos argumentos da perspectiva. Daí por diante, a pintura constrói cada vez mais autonomamente _buscando secularizar-se tal qual o homem que a produz_ o modo de ver ocidental ao se desdobrar em formas que fazem colapsar a relação renascentista perspectivada de mundo, em prol de uma ascese da planaridade que se inicia com Cezanne e que desencadeia um processo de busca da verdade plana das coisas.

A fragmentação analítico-cubísta em Braque/Picasso se deu quase simultaneamente à completa abstração em Kandinsky. A possibilidade da visão totalmente plana em Malevitch levou ao neo-plasticismo de Mondrian que, tendo chegado a planaridade absoluta, poderia, se fosse o caso, ter rebatido a horizontalidade frontal do quadro para outra razão observacional tal qual uma épura da geometria descritiva. Se assim tivesse sido, incorreria-se em redundância de qualquer maneira. A pintura é relação frontal de pensamento; e por que frontal? Porque a antiga relação perspectivada de mundo, razão projetiva do quadro como janela, construto fisico da ilusão, se desdobra modernamente em estrutura fisico-planar. Se sai da parede não é mais o quadro e sim outra coisa. A interrupção da mesma se daria em prol do que? A ênfase na frontalidade intensifica a experiência planar bidimensional. Mudar a relação observacional sem razão intrínseca seria provocar redundância, a operação gratuita de mudança de referencial implicaria em um não quadro.

Em Pollock, o suporte é transferido para o plano horizontal. Trata-se de uma ruptura irreconciliável com o quadro de cavalete, com a visão projetiva perspectivada de mundo. É importante não se confundir a atitude de horizontalização na concepção pollockiana, do total “ataque” à superfície _espaço físico de expansão de toda a carga da unidade corporal_ com “travessura cenográfica”, i.e., tentativa de arremedo formal na concepção de montagem da exposição. Pollock, ao contrário de Kandinsky, estabelece uma nova via abstrata que abarca a crise do sujeito moderno, potencializando-o totalmente no mundo com a inserção de seu corpo inteiro, não mais o fragmento corporal punho/braço, antigo corpo do artista europeu. Através da magnitude escalar, oriunda do desdobramento do espaço pictórico pós-cubista em superfície puramente bidimensional, cria um novo topos, um lugar sim, porém não geométrico, afastado do racionalismo europeu, sincreticamente norte-americano. Logo a seguir, levanta então o novo construto afirmando sua única posição possível, a vertical, fazendo ativar a relação frontal com o observador pois sabe que depende dela para contrapor dialeticamente passado e presente, para contrapor Tintoretto, o da construção da grande cena, à “si próprio”,i.e., ao eu totalmente moderno, a êle mesmo, Pollock.

Portanto, a razão que leva o homem a chegar a se expressar através da forma abstrata é uma razão advinda de um processo histórico-cultural, um sofisticado construto intelectual que vem sendo gestado há pelo menos 600 anos. Aquilo que se dá como consequência do desdobramento deste processo, a faculdade de pensar abstratamente, é com certeza uma expressão maior da inteligência e que se encontra dominante tanto dentro da ciência, tal como da arte, da poesia e da música.

Pensar que não haveria cobrança cognitiva. Pensar que o exercício livre das próprias razões desprezando o cuidado que o conhecimento exige à realização de qualquer ensaio dentro da arte e da cultura poderia passar despercebido! Achar que qualquer delírio de cenografia decorativa poderia passar em brancas nuvens pelo crivo dos próprios artistas é atestado de burrice completa.

É esse então o ganho da cenógrafa Bia Lessa? Pela falta de conhecimento de causa, em prol de um arranjo decorativo jugo das próprias razões, exaltante da vaidade pessoal, exultante pelo reconhecimento coletivo, resolve instalar quadros deitados no chão? O desejo de liberdade de expressão pressupõe o conhecimento que resulta do áspero relacionamento com a “vida” da história. Caso contrário só resta a força negativa que a ignorância também usa para se expressar.

Merece crítica severa a atuação do curador contratado pelo Instituto Itaú Cultural, senhor Teixeira Coelho, um profissional que ignora as razões geradoras da relação observador/pintura apresentadas acima. Um profissional competente deveria, em seu papel, encabeçar com fidelidade histórica a árdua tarefa de conceber e montar uma exposição complexa como esta com tantas direções e pensamentos a seguir. A instituição que contrata um curador que organiza a leitura dos trabalhos de arte desta maneira, além de não colocar limites na ação dos seus contratados, tende a formar conceito errôneo no público que procura atingir.

Sendo assim, objetivando que todo o pensamento que até aqui vimos discorrendo tenha função didática e crítica, queremos do Instituto Itaú Cultural que faça retornar as telas deitadas pelos senhores mencionados acima às suas posições verticais nas paredes do Instituto. Aguardamos com toda a urgência a execução deste procedimento. Colocamo-nos abertos a responder quaisquer perguntas que possam esclarecer ainda mais esta situação.