quarta-feira, novembro 29, 2017

O Jaguar e as Lésbicas







Tanta coisa transborda da internet que até minha memória está se tornando preguiçosa. A introjeção da inteligência artificial nos afazeres diários transformou nosso modo de agir e pensar e, quem sabe, até lembrar coisas do passado.
Hoje, fazendo uma busca especifica no oráculo digital, um bit intrometido fez aparecer - do nada, sem que eu tivesse solicitado - a foto da traseira de um velho Jaguar –com placa do Estado da Guanabara – estacionado em um tempo distante, numa rua qualquer desse país.
A surpresa me espantou. Primeiro porque a consulta não tinha relação alguma com automóveis. Eu fazia uma pesquisa para atualizar as informações sobre as ilhas gregas que visitei muitos anos atrás. Dentre as ilhas consultadas estava a de Lesbos. A ilha, assim como as mulheres de Lesbos, ganhou notoriedade através do tempo devido sua mais ilustre figura, a poeta Safo. Pertencente a alta sociedade e extremamente culta, Safo organizou a primeira academia de mulheres, onde ensinava música, dança e poesia. Safo se inspirou nas grandes obras, como o Ilíada e a Odisseia de Homero. Seu grande carisma a levou a reunir em torno de si as mulheres de Lesbos e, com elas, desbravar um novo ponto de vista para a cultura grega: um ‘olhar’ o mundo à partir da própria mulher.
Até hoje Safo encanta mulheres e homens. Platão a admirava. A chamava de “Musa Sábia”.  Os romanos da Roma Imperial a tinham em alta estima. A conotação pejorativa dada às mulheres que amam e se relacionam sexualmente uma com as outras, só surgiu muito tempo depois da decadência do Império, durante a Idade Média. Com o passar do tempo essa conotação ganhou musculatura se tornando um rígido preconceito. 
Deixando de lado os feitos maravilhosos e sedutores da poeta, mas,não sem antes mencionar uma fagulha da sua sensível e ousada consciência: “Alguns homens dizem ser as cavalarias, outros dizem ser os soldados, e outros dizem ser as naus a coisa mais bela sobre a terra negra. Mas, eu digo, o mais belo é o que amamos”, volto para a foto do calhambeque conversível branco que, tenho como certo, pertencia ao meu pai. O lindo Jaguar branco pérola - em perfeito estado - é exatamente como era e guardo na lembrança o carro do meu pai nos idos dos anos 50/60.
Naquela ocasião aquele tipo de Jaguar era raro na paisagem do Leblon. Os pais dos meus amigos de infância tinham lindos  e modernos Cadilac’s, Chevrolet, Hudson, Dodge, Desoto, Buick, Oldsmobile,Ford e outras marcas americanas. O Jaguar Mark V branco conversível, estacionado em frente ao número 80 da Rua Afrânio de Mello Franco, era único no bairro.
Foi o Jaguar do meu pai que me transportou em direção a primeira visão e ao sentimento inaugural do contato físico e amoroso entre duas mulheres. A retirada do véu, que encobre os mistérios em torno das relações amorosas entre gêneros, aconteceu no verão de 1956 ou 57. Eu era muito garoto, tinha dez,onze anos ou pouco mais que isso, quando minha  família tomou a estrada a bordo do magnifico Jaguar Mark V, com destino a região dos Lagos, onde o fato aconteceu. 
Só tempos depois, já adulto, entendi o impacto que a cena teve sobre mim.  
Lembro de alguns verões com meus pais e os casais amigos que iam para a região se divertir, pescar, jogar pôquer, beber, dançar e fazer coisas de adultos que, para nós meninos, não eram assim tão interessantes e as  quais ,tirante a sensação maravilhosa de liberdade, pouco lembraria mais tarde. 
Mas, esse caso em particular, teve um destaque especial entre tantos outros que aconteceram na ocasião.  
De dezembro a fevereiro eu, meus irmãos e amigos deixávamos de lado os limites da vida na grande cidade, as aulas e os professores e mergulhávamos de cabeça na liberdade de correr pelas pedras, remar, nadar, aventurar no mar, caçar siris, guaiamuns e mergulhar entre as rochas, sem tempo para retornar de uma aventura, aguentar advertências ou reprimendas disciplinares. Calção, camiseta, snorkel, máscara e pé de pato era tudo que usávamos da manhã à noite. Foi no retorno de um longo dia de aventuras, por volta das 7 da noite, concentrados numa desculpa esfarrapada para dar ao ‘Comodoro’ Antunes sobre uma desastrosa manobra que lançou seu barco inflável sobre as rochas, danificando o motor de popa, que o ‘espanto' aconteceu.
Eu, meus irmãos, Alexandre e Ângelo e o amigo Álvaro, estávamos tão concentrados na mentira que inventariamos que ao vislumbrar o grande Jaguar em frente a uma porta que supus ser do nosso quarto não titubeei. 
Meti a mão na maçaneta e a escancarei, deparando com a visão frontal de duas mulheres peladas, abraçadas e se acariciando na cama. 
Não me recordo se elas se espantaram mais que nós. 
Por longos segundos fiquei agarrado à maçaneta tentando entender a cena. Ninguém deu um pio, nem se moveu. Todos com olhar fixo naquela cena. Elas se moveram bruscamente. Deram um salto e agarraram os lençóis como quem agarra uma tábua de salvação. Dei um pulo para trás, fechei a porta e saímos em disparada.
Agora, tínhamos dois problemas para resolver. Explicar para o pai o desastre com o barco do Comodoro e tentar entender o que tínhamos acabado de ver.  
Ora, o que tínhamos acabado de presenciar era hierarquicamente menos grave que o desastre com o barco do Comodoro. Além de ser mais fácil de explicar já que não precisávamos mentir.  Naquela hospedaria nós não olhávamos os números dos quartos. Nossa referência era o Jaguar, sempre parado em frente ao nosso quarto. Por sorte ou azar meus pais saíram enquanto nos aventurávamos no mar. Quando retornaram estacionaram na frente de outro apartamento. Explicar –mentir -  para o pai sobre o que levou ao desastre com o barco do Comodoro era o maior dos problemas. Em vista disso, tentar entender o que tínhamos acabado de ver era moleza. O prejuízo do barco foi rapidamente resolvido entre os adultos. Não contei para meu pai a cena das duas mulheres peladas. Mas, contei para minha mãe. A interpretação dela sobre o ocorrido foi tão natural e convincente que, desde então, o amor, as caricias e a libido entre as mulheres nunca se tornaram um problema, sequer um fetiche para mim, como homem. Numa noite, ao entrar no salão inundado pelo cheiro dos cigarros e do whisky, onde os adultos se debruçavam sobre a mesa da jogatina que varava madrugada, lá estavam as duas, sentadas na mesma mesa da minha mãe e do meu pai e outros jogadores. Enquanto falava com minha mãe sobre alguma coisa que fariamos no dia seguinte, eu não tirava  os olhos da morena que eu achava a mais linda das duas. Aliás, eu achava as duas muito bonitas. Ao me despedir de todos, ela me sorriu e piscou carinhosamente. 
Acho que enrubesci, fiquei quente, mas gostei daquela cumplicidade.       













quarta-feira, novembro 15, 2017

Sobre Artistas e Finanças




Quando se fala em ‘Economia Criativa’ muitas pessoas logo imaginam ‘muita grana’, sucesso financeiro, fama e fortuna dos artistas. O fato dessa ideia estar em voga atualmente confunde aspectos significativos de como a economia acontece nas artes. 
Na superfície, a ideia veste de glória os artistas que alcançam grande sucesso midiático. Entretanto, trata-se de uma ilusão. Tirante as estrelas do showbiz, os astros pops, os expoentes da indústria cultural  e os artistas que pautam suas produções no sistema de comunicação – incluindo, nesse contexto, os financiados pelos investimentos do marketing no setor editorial, cinematográfico, televisivo e as ações do mercado para alavancagem dos preços das obras de artistas vivos, a realidade da economia criativa é bem diferente do que em geral se supõem 
No tocante aos artistas, estrito senso, a ‘economia criativa’ - na realidade -é uma ficção. 
Ela não tem base concreta nos custos inerentes à produção artística e nos possíveis lucros auferidos aos autores. 
Nem poderia ter! Os fatores envolvidos na criação artística não são objetivamente mensuráveis. Alem disso,a 'mais valia' de uma obra de arte no correr do tempo beneficia financeiramente os mercadores e investidores.
Os desafios e os custos da produção artística vão muito além dos gráficos da economia monetária propriamente dita. 
Cabe ao artista, sabedor dessas limitações, entender e enfrentar outro ângulo da economia que decorre da questão existencial e de sobrevivência e, também, objetivamente, fundar uma maneira de manter incólume a liberdade criativa, a livre experimentação e a superação das dificuldades inerentes ao seu trabalho. 
Isso, claro, se ele pretende fazer uma obra emanada do frescor e que o surpreenda como criador. 
Para manter o fluxo do consumo de obras imersas nos códigos esteticos estabelecidos, o custo é basicamente o do material e do empenho promocional em torna-lo um alvo midiático de grande visibilidade e um fetiche de mercado. 
Não é fácil. Porém, é menos difícil que ousar algo novo e autentico, por excelencia. 
Na maior parte das vezes, os itens pautados na ousadia criativa tendem a exaurir os recursos investidos e, algumas vezes, podem afetar a saúde do artista. Isso porque a economia do artista, digamos assim, tem como prioridade ampliar o arco das suas investidas criativas. Opção esta que nem sempre reverte em ganho monetário. Esses itens são muitas vezes entendidos por alguns artistas como a causa do seu sofrimento e incompreensão por parte do público.
Não digo peremptoriamente: 'Dane-se o público' porque a incompreensão me apraz. E muito! 
E, também, porque há um grande egoísmo - orgulho de si - em todo criador.
Por esses e outros motivos somos tomados de tristeza quando um grande artista - na juventude ou na velhice - sofre de carência financeira. 
Nas colunas de entrada e saída da economia de um artista, os fatores não se expressam em cifras. Se expressam na ousadia, na determinação e na qualidade intrínseca da sua obra. Não é raro ver artistas muito dedicados, que não cumprem uma planilha de trabalho regular e não medem despesas para suprir sua demanda por material, que atravessam noites e dias debruçados sobre seu trabalho e que, quando se dão conta, espantam-se não apenas com o fato de o dinheiro ter acabado, mas que a ‘economia’ da sua saúde mental ou física foi um pouco abalada. 
Como inserir esses fatores numa tabela progressiva da Economia Criativa?
Inútil e infecunda tentativa! 
A Economia da Cultura se aplica estritamente aos investimentos em setores da Industria Cultural e fomenta a Cultura do Espetáculo. 
Para a criação artística não existe um plano previamente traçado, previdência social ou aposentadoria. Muitos artistas ancoram suas produções em incentivos fiscais. Mas,tal perspectiva, gera outro tipo de angústia e não supre as necessidades mais fecundas da criação. Convenhamos que fazer um 'Projeto' para cada 'inspiração' é um treco insano. 
O artista, estrito senso, que não produz com uma equipe de auxiliares, é um ser solitário, sujeito as intempéries do seu talento. 
A única vantagem dessa forma de vida é que ele é o primeiro contemplar algo belo e se extasiar ou – se decepcionar com sua mais recente criação,porque não lhe tocou a alma. 
Então, de volta ao serviço!




sábado, novembro 11, 2017

Constructor Social



    Primeiramente (LOL); Fora os carrascos da Intolerância que estapeiam ideias e agridem pessoas que as expressam. Segundamente (BIS); antes de um breve comentário sobre Judith Butler, manifesto minha discordância pelo trato estupidamente hostil às ideias da filosofa. 
    Ela não é a primeira e não será o último exemplar da espécie humana a exibir uma fórmula simplista (cultural) de superação da natureza. 
    Fazer o papel de ‘deus’, senhor dos fenômenos naturais, sempre foi a maior aspiração da cultura.
    Muitos seres humanos - intensos e geniais - já tentaram.
    Todavia, as principais características que identificam os mamíferos permanecem inalteradas.As glândulas mamárias e a gestação em útero, componente orgânico circunscrito às fêmeas mamíferas,são os mesmos desde o surgimento das especies.Tirante, claro, os marsupiais, que criaram (sic) uma bolsa intermediaria para a função de procriar.
    Enquanto os protótipos Pós Humanos – replicantes – seres fundamentalmente culturais - permanecerem matéria de pesquisas laboratoriais e anátemas religiosos, os mamíferos humanos continuarão nascendo das fêmeas dessa espécie insatisfeita e frustrada com sua restrita dimensão humana.
    Ainda que tal circunstancia natural aborreça profundamente os adeptos do 'constructo social', essa é a realidade da especie
    Que merda! Por que não nascemos deuses? Por que nosso gênero não é consequência da nossa própria vontade ou daquela formada pelo mainstream que molda os desejos, caráter, personalidade e a forma de se apresentar ao mundo?Da cultura da época,claro!
    Ah! A arcaica frustação humana por seu insignificante protagonismo na criação do Universo é uma posição diminuta e inaceitável para quem se quer deus.
    O homem chegou atrazado e cheio de pressa para desviar da desconfortável e inexpresiva posição frente as forças da natureza.
    Por isso,lançou mão da balsa da cultura.
    A balsa da cultura é uma variante em material sintético da Arca de Noé.
    Ela nos dignifica culturalmente frente a forma mais visível de deus : A natureza!
    Pressumir que ela (natureza) não nos reduzirá - enquanto seres sociais - aos seus caprichos, é uma pressunção descabida.
    Judith Butler é mais uma culturalista na frente de batalha contra as injustiças (incompletude) da natureza humana.
    Para ela a CULTURA não deve se dobrar aos fenômenos da natureza. Ela põe fé teórica na ideia de que a ‘construção social’ pode aprimorar e mesmo dar algumas lições de bons modos às arbitrariedades totalitarias da natureza.
    Se a cultura nos da garantias – livre arbítrio - de podermos incorporar o gênero que desejarmos, por que a maldita natureza tem que se intrometer na vida privada dos humanos?