terça-feira, dezembro 27, 2016

Agora estamos acordados.














Em 1926, Arthur Schnitzler,( Viena, 1862/1931)escritor e médico austríaco, escreveu um dos mais fabulosos romances que já li na vida. 
Na semana do natal reli 'Traumnovelle' ( Breve Romance de Sonho,versão em português).
Como presente natalino fechei a semana revendo a adaptação do Kubrick no seu magistral filme “De olhos bem fechados”.
Freud declarou inúmeras vezes sua profunda admiração por Arthur Schnitzler. 
Ambos viveram, cada um ao seu modo, muito intensamente, as profundezas abissais do sonho e do inconsciente. 
 Em 1922, Freud escreveu uma carta a Schnitzler, onde registra algumas observações sobre a obra do escritor e confessa ter evitado, durante muito tempo, ser apresentado a ele, pois, ao ler seus textos, acreditava que se tratava de seu “duplo”. Alguém que, como ele, era “explorador das profundezas” e que mostrava “as verdades do inconsciente”.
Disse,Freud: “Sempre que me deixo absorver profundamente por suas belas criações, parece-me encontrar, sob a superfície poética, as mesmas suposições antecipadas, os interesses e conclusões que reconheço como meus próprios. Ficou-me a impressão de que o senhor sabe por intuição – realmente, a partir de uma fina auto-observação – tudo que tenho descoberto em outras pessoas por meio de laborioso trabalho.”
Kubrick ambientou o trecho que encerra o romance numa loja de departamentos, onde o casal nova-iorquino Kidman / Cruise fecha na integra lindo dialogo original do final do livro (abaixo) 
(...)"Poucos segundos depois, sentiu a mão macia acariciar-lhe os cabelos. Levantou, então, a cabeça e, do fundo do coração, escaparam-lhe as palavras: “Vou contar tudo a você”. A princípio, Albertine ergueu a mão em silente recusa; Fridolin tomou-a, segurou-a entre as suas, e lançou à esposa um olhar a um só tempo de dúvida e súplica. Ela consentiu, ele começou a contar. O dia amanhecia cinzento através das cortinas quando ele terminou. Nem uma única vez ela o interrompera com perguntas curiosas ou impacientes. Sentiu que ele não queria nem podia ocultar-lhe nada. Deitada e serena, os braços sob a nuca, ela fez ainda longo silêncio depois de ouvir-lhe a história. Por fim, deitado ao lado dela, Fridolin curvou-se sobre a esposa e, diante daquele rosto imóvel com os grandes olhos claros, nos quais o novo dia parecia agora estar nascendo também, perguntou-lhe repleto de incerteza e esperança: “O que vamos fazer, Albertine?”. Ela sorriu e, após breve hesitação, respondeu: “Agradecer ao destino, penso eu, por termos escapado incólumes de todas as aventuras — as reais e as sonhadas”. “Você tem certeza de que é o que você quer também? ”, perguntou ele. “Estou tão certa quanto suspeito que a realidade de uma noite ou mesmo de toda uma vida não representa sua verdade mais íntima. ” “Nem sonho algum”, suspirou Fridolin baixinho, “é totalmente sonho. ” Ela tomou a cabeça dele nas mãos e aninhou-a com carinho sobre o peito. “Agora estamos os dois acordados”, disse, “e assim será por muito tempo. ” Para sempre, ele quis acrescentar, mas antes ainda que houvesse pronunciado as palavras, ela colocou-lhe um dedo nos lábios e, como se o fizesse para si mesma, sussurrou: “Melhor não perguntar ao futuro”. E assim permaneceram ambos deitados, talvez cochilando um pouco, juntos um do outro e sem sonhar — até que, como em todas as manhãs, bateram na porta às sete horas e, com os ruídos habituais provindos da rua, um vitorioso raio de luz atravessando a fenda na cortina e uma aguda risada de criança no quarto ao lado, principiou o novo dia."