quarta-feira, novembro 02, 2016

Carpe diem...(seriado em 4 capítulos)



   







Cap.1

Às vezes tenho que contrariar minha preferência pelo ‘carpe nocte’ e partir para atividades físicas e mentais no ‘carpe diem’. 
Meus amigos mais próximos sabem da minha lassidão frente aos empreendimentos sociais que implicam na divulgação midiática da minha atividade artística. 
“Ora, se até chocolate tem que fazer propaganda, por que um artista deve relaxar na difusão da sua produção? Agindo assim vão acreditar que você já morreu. Aliás, sequer nasceu! ” Disse-me o amigo empenhado em me converter à performance midiática e me convencer a ir a reunião com uma empresa de promoção e marketing cultural, indicada por ele.
Deixei de lado meus hábitos boêmios e mergulhei no “Carpe diem”. 
Ao olhar minha cara no espelho às 7 da matina tive que me apresentar de novo: Olá! Carpe diem para você!
Parti agencia!
O centro do Rio é um mafuá galáctico, pontuado de pequenos ‘enclaves’ pós-modernos revestidos de mármore ou granito, climatizados, ambientados e sonorizados como nave espacial, cuja a fila da rampa de acesso ao ascensor mistura povos de planetas distintos. A miscelânea cultural e social dos passageiros do elevador revela que nessas plagas as fronteiras geográficas ficam inteiramente dentro dos limites de um outro território estrangeiro. Elevador lotado, lá vamos nós rumo ao espaço. Ao meu lado um sujeito barrigudo, trajando camiseta sem manga, bermudas e chinelos, carregava um pacote de documentos com carimbo ‘Confidencial’.  Na minha frente uma moça bonita e cheirosa, ajeitava um colar reluzente, ajustava o relógio de pulso ao mesmo tempo que despertava o celular, objetos que durante a escalada do elevador tirou de um esconderijo secreto na sua bolsa. Nas ruas, quer dizer; nos territórios bárbaros, ela não porta nada disso, pensei.
Depois da sequência de sons eletrônicos que alertam o passageiro sobre os vários estágios do voo, aportei na plataforma de destino. 
Saguão com piso de mármore branco coberto com tapetes da antiga Pérsia, dispostos cromática e proporcionalmente. Na lateral à porta de entrada do escritório,uma grande pintura ocupava toda a parede, do chão ao teto. Em cores soturnas, pinceladas dramáticas e discretamente iluminada, a pintura confronta o visitante ocasional com a visão ‘sensível’ de uma metrópole opressiva. Admirei a obra por algum tempo. O contra plano entre a metrópole real, que havia deixado antes de embarcar no elevador, e a metrópole ‘sensível’ do pintor, compuseram na minha retina um díptico contrastante. O inferno pictórico é menos agressivo que o real que fica 15 pisos abaixo,pensei. A vida pode ser mais bela quando projetada pela interpretação do real.Pelo menos para alguns artistas.
Antes de acionar a campainha e a câmara de vigilância, fiz uma limpeza na minha memória. 
Num processo de meditação ‘zás traz’, enviei minhas impressões sobre a viagem até aquele ponto para um segundo plano mental.    

Cap.2

Seja bem-vindo! Disse-me o recepcionista. 

Um perfume sofisticado, levemente doce, imitando uma flor inexistente na natureza, penetrou minhas narinas.
Ambientes ricos e sofisticados exalam aromas e sensações inebriantes. Enquanto aguardava, sentado confortavelmente numa poltrona de couro, assistia ao telejornal de uma emissora por assinatura que só tem mulheres como apresentadoras, repórteres e comentaristas. As poucas vezes que assisto esse tipo de programação me pergunto: O que foi feito dos homens? Ficam escondidos na redação? Os poucos que entram na grade dessa emissora só desencantam nos telejornais noturnos, às 10 horas.
Será uma luta de gêneros ou somente um estilo que considera mais adequado um telejornal da manhã, feito somente por mulheres para mulheres?

Cap.3

Uma sala de reuniões cinematográfica. Mobiliário hi tech, objetos de decoração e arte de bom gosto,compõem um diálogo discreto e elegante. Duas sócias do escritório entram sorridentes e sentam-se à minha frente. Tudo combinando. São estereofonicamente simpáticas e agradáveis. Me apresentam um vídeo sobre as atividades do escritório, os artistas e celebridades que atendem e as projeções das suas ações na grande mídia. 

Tudo impecável!
Após os prolegômenos de praxe, uma das sócias chamou a curadora de projetos, a gerente de imagem e a jornalista que cuida da mídia impressa e eletrônica dos clientes. Em poucos minutos me vi como um paxá em meio a um harém de profissionais jovens, bonitas, elegantes e competentes. 
Na verdade, me senti um ‘dimenor’! 
No monitor, as apresentadoras do telejornal continuavam gesticulando e falando uma com as outras. O som 'off' não permitia que eu ouvisse qual era a notícia do momento. Num determinado ponto cheguei a imaginar que apenas eu e o segurança da recepção éramos os poucos homens que restavam sobre o planeta. A sensação se intensificou com chegada de uma moça esbelta trazendo uma bandeja com cafezinho, água e biscoitos. Nesse ponto, eu já havia perdido a conta de quantas mulheres estavam em cena. Sorri comigo mesmo ao lembrar da cena do ‘Oito e Meio’ do Fellini quando Marcello Mastroianni é banhado, enxugado e acariciado com toalhas do mais puro branco, manuseadas por mais de uma dezena de delicadas mãos femininas.
Ah!Adoraria que o mesmo acontecesse comigo, ali mesmo,naquele momento. 
Ao ser informado que a pintura exposta na recepção era de autoria de uma pintora famosa no Brasil e no exterior e cliente do escritório, fui subitamente tomado pela súbita sensação de entendimento da essência de algo que também pode ser ilustrado por um termo usado para a realização de um sonho...uma epifania. 
O mundo é, enfim, das mulheres! 
De volta a nave que me traria ao térreo, me indaguei se o objetivo da minha entrevista havia sido alcançado. 
A lógica primaria das técnicas de difusão e marketing são uteis para os artistas que buscam maior visibilidade e fluidez mercantil para sua produção. O alvo dessa iniciativa é ampliar o arco da demanda comercial pelos produtos mais destacados na vitrine de um determinado segmento social. Do ponto de vista operacional é um facilitador na medida em cria maiores expectativas de demanda, monetiza a produção, revertendo para o artista reconhecimento social e pujança econômica. Não é de se estranhar que o sucesso dessa categoria tenha estreita conexão com o que se convencionou chamar de pós modernismo. 
Em vista disso, as pessoas que mergulham conscientemente naquilo que desejam,não podem evitar a  pergunta:qual o custo existencial de se integrar a esse tipo de ação? 
O que a princípio parece solução pode apenas esconder outro problema.As vezes, muito mais graves. Os mergulhos profundos no processo criativo não prescindem da liberdade. 
No meu entender, o  processo criativo  é um amalgama entre o impulso do artista, o tempo e a experimentação, fenômeno que só ocorre com a completa sinergia entre esses elementos. 
A fim de preservar esse princípio evito produzir para cumprir  uma agenda de compromissos que exigem foco, determinação, objetividade e controle cronológico do tempo.
Já trabalhei para cumprir uma agenda. Conheço bem os danos que advêm do confronto entre a exegese e a conclusão física de uma obra. Sobretudo, porque, o meu processo de trabalho não tem origem ou segue a linha pré-estabelecida de um projeto de pintura. Além disso, não sou um artista movido pela compulsão de pintar. Para mim a pintura não é  um evento lúdico ou uma catarse. Muito menos ilustração de recortes da realidade objetiva ou uma 'ideia' sobre arte,um dialogo referencial com um estilo ou artista especifico ou registro auto biográfico.
Na prática, a pintura é para mim a porta de acesso ao sagrado no sentido original da palavra latina ‘sacrum' que se referia aos deuses ou a alguma coisa 'misteriosa' em seu poder. Essa palavra foi concebida originalmente como referência a área em torno de um templo, onde se poderia  transcender para além das questões objetivas que regem o mundo.  
Vem dessa antiga tradição o conceito de que o território onde se erguem os templos é do domínio do sagrado. Religiosos são os templos.Não seu entorno.
Como podem perceber mais uma vez a epifania abateu meu frágil pragmatismo. 
Tergiversei do programa original ao qual me havia proposto. 
Se me propusesse a aplicar as propostas objetivas apresentadas tecnicamente pelas consultoras eu teria que interpretar um papel que não me atrai e para o qual não sou talhado.
Teria que encarnar o canastrão que acredita em si mesmo e que, ao sabor dos ventos e das marés, se reinventa inteirinho como pessoa a cada evento.
Nascer de novo,no sentido radical do termo, é do domínio da metáfora. 
No plano do real, prefiro o nascer de um novo dia!  
Continuarei, portanto, mantendo um distanciamento  crítico em relação ao desempenho pessoal na escalada do sucesso. 
Até porque, as  gratificações que transitam no mundo das artes,ainda que pareçam dádivas dos deuses conferidas aos eleitos,não são gratuitas. Tem um alto preço.
Ilude-se mais quem acredita que o reconhecimento é uma resposta espontânea do meio social ao trabalho artístico. 
A sociedade responde  às suas crenças.
Mas,o artista que se dedica a atender essas crenças,tende a se tornar um mitificador.

Cap. IV

Em vista do exposto,uma síntese sobre os capítulos anteriores ajudará ao leitor a entender o que de fato me mobiliza e gratifica.
Desde o advento da cultura digital,em particular as redes sociais,tenho tido respostas muito animadoras sobre novas formas de interação social. 
Ainda que as técnicas de marketing cultural e visibilidade midiática  sejam recursos muito poderosos para difusão do trabalho de um artista,elas não respondem às minhas expectativas sobre a forma particular com que um espectador se aproxima do meu trabalho artístico. Chegar a um artista pela sucessão de matérias jornalisticas, textos curatoriais, eventos e promoções especiais de arte e cultura,através da abundante divulgação pelos veículos da grande mídia, é a forma mais usual do marketing e do jornalismo cultural.
Esta é uma via de resultados expressivos para o exito de um autor e de um show de arte.
Mas, como frisei nos capítulos anteriores,ela não ocorre como um ' milagre'. 
Tem um custo e exige muito empenho do interessado.    
Ha quase duas décadas tenho usado as redes sociais para compartilhar minhas ideias em tempo real com milhares de usuários.
O feedback dessas postagens, descortinou para mim uma nova modalidade de interação social. 
A rede de relacionamento social,em tudo revolucionária,tem respondido aos meus interesses de maneira gratificante.
Muitas pessoas que visitam minha TL,mal sabem quem sou. 
Muitos não tem a mínima ideia da minha atividade profissional ou minha carreira artística.Porém,ainda assim,leem,comentam e compartilham meus textos sobre cultura,politica,arte e divagações sobre a vida. 
Essas ocorrências -são muitas - tem me ajudado a visualizar um caminho inédito e promissor para a difusão do meu trabalho artístico,na  exata medida do meu desejo.
São incontáveis as mensagens  'in box' que me são dirigidas por pessoas que seguem minhas postagens e que,curiosas,confessam ter recorrido ao Google para se inteirar sobre minha pessoa,meu currículo profissional e minha carreira.
É esse 'algo' peculiar,urdido do próprio punho,capaz de chamar atenção para si, a ponto de despertar o interesse de terceiros a sondarem um site de busca a fim de pegar mais referencias sobre o que lhe tocou de alguma forma, que me enche de satisfação.
Mais estimulante ainda é antever que esse meio permitirá pessoas de um 'novo' mundo,num futuro próximo, a serem menos dependentes da intermediação dos poderosos meios empresariais e estatais de comunicação social em beneficio das suas próprias escolhas.
Creio que esse será um passo adiante rumo a autonomia do pensamento e maior liberdade. 
Na atualidade,arte e comunicação se tornaram quase sinônimos. 
Palavras vagam entre coisas.
Sinônimos,as seguem.         
Por isso,a Arte que me estimula fruir sobre a experiencia estética é,sobretudo,aquela que escapa pelos interstícios do diversificado e onipresente sistema de comunicação.