terça-feira, junho 11, 2013

A ARGÚCIA DO OLHO



Desde o seu surgimento, na Renascença, a perspectiva como elemento de composição pictórica, foi paulatinamente se consolidando no imaginário artístico e nas praticas pictóricas como um novo conhecimento. Imaginem como antes do advento da perspectiva se processava a informação e se organizava uma cena representativa do ponto de vista de um pintor?  Imaginem, também, as conexões de códigos comuns compartilhadas entre observador e imagem pictórica. Para que essa  imaginação se constitua numa abordagem mais proveitosa é necessário nos munir dos relatos históricos, porém, esse recurso, no modo de uma narrativa, por si só, não nos conduz para um ponto especifico no tempo e no espaço,nos colocando dentro do episodio e submetidos as categóricas sócio culturais, hábitos e costumes dominantes. Uma imersão através das camadas da historia pode nos descrever em detalhes muito precisos as condições de vida, cultos e estrutura social. Essa atmosfera nos consente montar um cenário de suposições que, como um roteiro cinematográfico, nos coloca diante da cena como visitantes. Basta um passo para frente e estaremos noutra camada do tempo, um passo atrás, no período medieval. Os estilos pictóricos desse período, por razões diversas, (inclusive, por disciplina, método e balizamento cultural) são testemunhos de que a ilusão visual de profundidade não era um conhecimento exercido na pratica pela maior parte dos artistas. No entanto, pela marcante influência dos gregos (e romanos, em evolução à arte grega) esse intento, como narram historiadores, era latente no interesse dos artistas pré-perspectivistas. Contudo, a ideia de somar aos seus conhecimentos e técnicas a profundidade ilusória como um elemento relevante na composição de uma pintura, permanecia um grande desafio a ser superado.Para alcançarem um efeito espacial persuasivo, ainda que de forma rudimentar, muitos artistas usavam as linhas diagonais como forma de obtenção de espaço interno de representação Esse processo empírico ficou conhecido como espinha de peixe. Apesar das excelentes pinturas do período a pergunta que se coloca é: por que artistas tão dotados não tinham se dado conta, até então, da existência do ponto de fuga?
Várias especulações rondam essa ‘santa ignorância’ ou melhor, essa forçosa impossibilidade. As hipóteses mais fantásticas discorrem sobre um obstáculo de natureza orgânica, neural mesmo, que me parece bastante arbitrária. Outra, explica essa impossibilidade como algo não atribuído a fatores cognitivos e técnicos, mas, a subordinação à doutrina de perímetro conferida pelo  olhar religioso,portanto,quase uma regra. Nessa demarcação o geocentrismo, quando muito o heliocentrismo, ainda que parcialmente tolerado, eram limites intransponíveis ao saber. Um tabu. Galileu- nascido 45 anos após a morte de Leonardo- legou para a humanidade uma contribuição extraordinária com o seu método científico em contraposição a metodologia aristotélica, soberana para a ciência da época e que reinava absoluta no agrément religioso.Pois bem,com todo o seu gênio, Galileu que além de sábio  era cristão, não logrou escapar da Inquisição .Mas,isso é outra historia,porém,serve aqui para ilustrar que as idas e vindas em matéria religiosa atravancavam o desenvolvimento da ciência e,por que não dizer,da representação artística de mundo, subjacente a doutrina da  Igreja Católica.
É senso comum que o processo de transformação cultural dos modos de fazer é complexo demais. Primeiro porque exige uma abertura da percepção do real e segundo, porque uma das perturbações mais corriqueiras da cultura diante do impacto do novo é a tendência dos agentes dominantes de se refugiarem na tradição, ou seja, naquilo que é estabelecido. Além disso, o surgimento de algo previsível, no plano do sensível, por si só, não desfaz os códigos antecedentes, os diluindo inexoravelmente no passado. Mas, ainda que um novo conhecimento seja sutilmente percebido por artistas muito especiais, as ferramentas e técnicas e não apenas eles, disponíveis não davam conta de opera-las simultaneamente e no mesmo ritmo em que esse novo saber  é absorvido e hierarquizado nos códigos estético-culturais dominantes. Quando o conhecimento (ciência) e a sensibilidade (ousadia) se amalgamam, abre-se um portal para as mudanças mais substantivas da cultura.
Ainda que no ano 1000, o matemático e filósofo árabe Alhazen, na sua obra Perspectiva já tivesse, teoricamente, fornecido uma base óptica da perspectiva,suficiente para fundamentar pinturas onde os objetos eram dispostos de modo convincente e esquematizava, pela primeira vez, a compreensão de que a luz projeta-se em formato cônico no olho humano, Alhalzen não era um pintor. Ele estava mesmo era preocupado com a óptica, não com métodos de representação comum aos pintores.As interelações entre  conceito e concepção estética não é matéria simples . Além disso, conversões cônicas são matematicamente difíceis, de forma que a construção de um desenho utilizando-se delas seria bastante demorado e, na ocasião, talvez, impraticáveis. Porém, nada impede que especulemos que os grandes mestres da pintura msmo antes da consolidação desse saber, vislumbraram no método Alhazen as bases mais perfeitas para a representação pictórica. A perspectiva é um expediente geométrico que reproduz de forma convincente a ilusão da realidade. Os objetos, dispostos no plano seguindo uma orientação precisa da luz, tamanhos e proporções, organiza os fatos visuais e os estabiliza, colocando  o observador num ponto ao qual o 'mundo' todo converge.
Alguns estudiosos estimam que muito antes do uso corrente da perspectiva pelos artistas do resnascimento,outras culturas ja a utilizavam,ainda que de forma simbólica, para definir as posições de personagens mais importantes do registro visual.Porém,essa é uma hipotese que levanta muitas discordâncias.O fato incontestavel é que o conjunto de ações e o acervo de obras do renascimento confirmam que a consagração da perspectiva na obra pictórica é um feito que se consolida com o renascimento. A  emblemática frase de Leonardo Da Vinci fornece uma pista do impacto cultural causado por sua aplicação: ‘a pintura é uma coisa mental’. O pensamento de Leonardo, neste caso, é um contraponto ao de seus contemporâneos. Além de estimar para a arte o mesmo status da ciência, Leonardo deu ao olhar uma compreensão mais complexa do que as apresentadas até então pelos seus pares.É claro que ao deflagrar tal afirmação Leonardo tinha em mente objetivos precisos em relação a sua obra .Na ocasião,contudo,ninguém imaginaria  o quanto esse aforismo seria poderoso para as transformações propostas pelos  artistas modernos que tempos depois se beneficiariam da noção de que a arte é um processo mental.
Essa introdução, na sua perspectiva temporal, é uma tentativa de ilustrar as investidas dos sucessores de Leonardo que, como ele, firmaram sua produção a partir do primado do olhar como meio mais eficiente para alcançar o saber e sua consequente difusão. Nesse contexto, a pintura se constituía o meio mais ajustado a ideia de perfeição. Contudo, apesar da potência liberada por tal evento, as hierarquias estéticas, montadas após o renascimento, culminaram na configuração das academias, dando margem a rigidos modelos que privilegiavam a técnica e o método em detrimento da experiência singular da autoria. Com o passar do tempo, exauridas, as academias foram eclipsadas pelos cortes  modernos advindos do impressionismo, expressionismo e demais ismos, até atingirem seu ápice na ruptura moderna promovida pela vanguarda histórica.
Pois bem, penso que nesse parágrafo ficou  claro que pretendo questionar a investida da pós modernidade  contra  o primado do olhar como o eixo da abordagem das artes plásticas ou artes  visuais.Tirante os aspectos subjetivos que ocorrem no contato  entre observador e uma obra de arte, excluindo-se os  itens relativos a sensibilidade,coisa difícil de mensurar,o que temos como fator predominante é que para as artes visuais o  olhar é o campo primordial,porque não dizer;exclusivo.Desprezar esse sentido, em prol das sensações tocantes,é  entorpecer  o olhar,quase o fechando. 
Entretanto, os cortes estéticos promovidos pela vanguarda histórica e por movimentos artísticos subsequentes, infligiram nos artistas uma serie de reflexões que visavam, no fundo, estender para fora do plano bidimensional suas investidas mais radicais. Vou pular citações de caráter descritivo sobre as diversas correntes estéticas do modernismo para ir direto a um ponto que me parece comum a maior parte das estratégias das vanguardas contemporaneas. Como a representação naturalista, os limites da condição do objeto estético contemplativo, os domínios das grandes narrativas, os temas nobres da arte e as ideologias estéticas consagradas já haviam sido relegados ao passado pelos cortes mais representativos do modernismo, os artistas pós-modernos se depararam com um grande dilema. O espólio da modernidade empurrou para as gerações seguintes um desafio intimidador. Se por um lado as novas gerações se beneficiavam dos avanços alcançados num curto espaço de tempo pelo modernismo, por outro, se viam compelidos a romper com o passado ou serem arrastados para confrontos indigestos. Rejeitar, apriorísticamente, os paradigmas modernos ainda predominantes foi uma saida. Tal atitude, a principio, pressupõe uma ousada emancipação em relação aos postulados herdados. Mas, só a principio e apenas para os incautos, porque, o olhar arguto desvenda rapidamente a trama que fertiliza os procedimentos que se sucedem e revelam um artifício penoso,por vezes mimético e sem consequências renovadoras  para o pensamento e para a arte. É muito chato explanar aqui o porquê da profusão de teorias (hoje, todo mundo tem uma só pra si) e fundamentos que se sobrepuseram desde as ultimas décadas do século XX.Mas,basicamente,podemos dizer que elas proliferaram para embasar e emprestar significado para intenções um tanto banais a titulo de paradigmas estéticos dignos de atenção. A sucessão veloz e ininterrupta de paradigmas individualizados deu corpo a uma miríade de estilos artísticos que leais à pluralidade, deitaram e rolaram num padrão estético dominante, gerador de coisas artísticas inspiradas em autobiografias estetizadas, misturadas a sub antropologia acadêmica e atitudes burlescas e iconoclastas. Não podemos deixar de lado as citações proto-revolucionárias com pitadas, aqui e ali, de condimentos filosóficos e referências especificas ao campo da arte.Uma espécie de troca de códigos entre 'colegas'. Um paradoxo tão evidente é a parte mais sedutora do cardápio da pós-modernidade.
Se aventurar num tempo despojado de história não é mole!
O curioso disso tudo é que ao lançar ao mar a sequência da historia o que sobra é nada mais que uma montanha de escombros. Em terra de ninguém e desprovida de historia, pegar um naco do  Warhol juntar com um  pedacinho de pintura paisagística japonesa e 'rasgar' a superficie numa alusão pueril a obras de um artista do passado pode resultar em espanto e histeria novidadeira,no sentido mais rentável dos termos.
É muito chato explicar aqui, em detalhes, a profusão de teorias que se sobrepuseram para embasar os desígnios singulares que seguem à risca as técnicas da comunicação e do espetáculo. Porém, um ponto me parece significativo nesse conjunto. Aí, voltamos ao inicio desse texto que trata o olhar como o sentido privilegiado para abordagem das propostas artísticas. Mas, sei lá porque diabos, os herdeiros da modernidade lançaram esse recurso no quinto dos infernos e priorizaram suas experimentações com ênfase no sensorial, na micro narrativa,na conceituação egocêntrica  e em caixinhas de surpresa  para apresentação de cenas estéticas bombásticas (feito para os grandes eventos,toda Bienal tem uma),aludindo uma espécie réplica compacta e pronta para o consumo das massas de um "choque do novo",troço que a midia cultural adora e  registra como polêmica. As instalações,objetos insólitos,atos,gestos, atitudes e pequenas narrativas de natureza intima, por razões evidentes, lançaram ao mar o primado do olhar como eixo  prioritário na relação autônoma  entre  observador e a arte.O que vale e o que se  deve imprimir no imaginário do espectador é o sentido do espetáculo multimídia,cenográfico,caleidoscópico que, no entender dos autores e curadores das grandes mostras institucionais,arrepiam os sentidos do observador, refletem uma cultura multifacetada e a pujança da sociedade contemporânea.É nos intertícios dessa modalidade aparentemente tolerante que qualquer expressão pode se converter em obra de arte. Para que o fenômeno se complete,os agentes do sistema de arte,as instituições,galerias,mídia e editoras emitem um certificado de reconhecimento cultural. Bem, nesse ponto é preciso fazer justiça. Os curadores, agentes mais interessados nesse jogo, o elegeram  por razões que dizem respeito a estratégias específicas de natureza acadêmica ou econômica, em sincronia com o sistema de arte,para  difundir suas conjecturas teoréticas.
Oh! Ideias!O que elas são capazes de promover.
Para encerrar, falarei da minha surpresa ao ir essa semana à escola de arte aqui do Rio para uma conversa  informal  com alguns estudantes. O texto acima, parte das anotações que mandei para um fórum sobre arte há alguns anos, foi o foco da minha apresentação. Há muito tempo eu não ia a escolas de arte. No caminho divaguei sobre a predominância dos modelos estéticos fundados no sensorial, nas instalações, gestos, atitudes e demais procedimentos afins que nos últimos trinta anos são predominantes nas Bienais globais, tem grande visibilidade midiática e se destacam nos eventos institucionais e oficiais de arte. Será que lá verei simulações dessa vertente da arte de grande destaque curatorial?
Que nada!Qual não foi minha surpresa quando constatei os corredores apinhados de cavaletes, pinturas penduradas por toda parte,salas repletas de estudantes enfronhados na velha prática pictórica.
Tem alguma coisa aí a se aprender? 

segunda-feira, junho 03, 2013

UM ESCAFANDRISTA NA BIENAL DE VENEZA


Transitando pelas vielas atemporais, transpondo biografias estetizadas, objetos multiformes, verbetes de antropologia cultural,estetização dos discursos ideológicos e miríades de erários auto confessionais, alinhados sob o pórtico da arte do século XXI, o escafandrista devotado busca no seu navegador indicações sobre o percurso a ser seguido nessa inspeção. Encontra no seu navegador de ultima geração o mapa traçado por Lawrence Alloway em seu livro a Bienal Veneza 1895-1968. Sim, pensa ele, o lugar é precisamente esse!
Mas, logo percebe que no correr desse curto espaço de tempo algo estranho aconteceu na Bienal de Veneza. A tentativa de mostrar a abundância da arte contemporânea ao mesmo tempo em que se tenta remover as ervas daninhas da incerteza para fora do contemporâneo a fim de adequá-la aos novos ciclos da arte, de solução prevista,levou a Bienal de Veneza a perder gradativamente  substância sensível, ao mesmo tempo em que ganha lastro especulativo espetacular.
Esse conjunto de fatores acrescido as intempéries do mar e da atmosfera geopolítica foram desastrosas para a estabilidade da instituição. Recarregar de nova potência um corpo em decomposição é missão hercúlea e com fortes tendências ao fracasso. Nesse item, o escafandrista marcou na sua tabuleta de avaliação um X sobre a opção:"resultados insatisfatórios". A danosa corrosão, provocada pela clausura do sistema de arte frente aos novos desafios da atualidade, somado a fatores objetivos de natureza econômica e mercadológica e pretensiosamente politica, se impôs  no mesmo  passo em que degradou impiedosamente essa histórica instituição de arte. Essa que,alias, é a mãe de similares espalhadas pelo mundo e que algumas já pereceram há muito tempo. Pesada demais e imprópria para navegação em tempos hiper modernos, a Bienal de Veneza afunda mais rapidamente que as edificações maravilhosas dessa cidade emblemática. Apesar da diversidade entre os pavilhões nacionais onde as nações tentam mais uma vez mostrar um perfil  supostamente inovador sob o viés do deus do tempo pautado numa máxima ultrapassada : "vejam quão contemporâneos somos" o que se registra como evento singular é sua sobrevida como parque temático ilustrativo das questões periféricas à arte mas que tocam e se impõem como ações mercantis subvencionadas por políticas culturais ambíguas que ainda cultua a 'critica' ao sistema da arte como o motor propulsor das transformações sócio culturais.Ha muito não é mais!
Um dos exemplos observáveis são as repetições do mesmo recurso estratégico usado pelos EUA para a consagração da arte norte americana(POP)na edição de 1960.Hoje, a China e outras nações, antes periféricas no circuito internacional da arte,recorrem ao método  que daquele tempo para cá, se tornou um  padrão. As Bienais se tornaram uma espécie de antítese da arqueologia. Enquanto esse campo do conhecimento se esmera em  revelar ao mundo a "descoberta" da tumba de um desconhecido faraó  que, de fato, um dia foi  soberano, as Bienais se esmeram em mumificar lendas contemporâneas.
A visão do século XX,  projetada por  Allan Bloom,( A Cultura Inculta) como  o século da crise intelectual, quando as universidades ruíram  pela “falta de conhecimentos dos estudantes, desde os clichês da libertação à substituição da razão pela "criatividade" dando espaço para ideias continentais vulgarizadas de niilismo e desespero e  de relativismo disfarçado de tolerância”, inspira os devaneios profundos do escafandrista que se põem a imaginar  o século XXI  no papel do  'exterminador do  futuro'. No registro dessa pesquisa submarina resta apenas uma pequena anotação de pé de página, em contraponto ao aforismo do Beyus:"Toda pessoa é um artista" o escafandrista sublinhou: “Nesses moldes,definitivamente,eu não sou um artista”