sábado, agosto 28, 2010

Marketing – A seita tecnicista do Século XXI

Cabeça de alho, crucifixo, amuletos arcaicos, bíblia, mandinga, elefante branco e outros símbolos de proteção divina perderam a validade diante da maior seita do século XXI – O Marketing.

Você, artista amigo, está deprimido, enfrentando dificuldades para dar visibilidade à sua obra? Acha que merece ser reconhecido internacionalmente e tem ambição de estender sua dadivosa criação estética por plagas distantes? Não se apoquente. Hoje, existe uma seita tecnicamente bem equipada capaz de lançá-lo na Lua, se assim desejar.

Você, político obscuro, de fala intrincada, inescrupuloso, sem idéias, prontinho para aceitar qualquer cambalacho e que, por principio, não aceita submeter-se à ética e outros fundamentos de convívio social da antigüidade, essa é a hora para afiar as garras e lançar-se na vida publica.

Você, modelo/atriz, não têm mais motivos para sofrer! Pra que abrir as pernas para um diretor de telenovelas, um agente de modelos tarado ou uma colega falsa.

Hoje, por motivos profissionais, só sofre quem é masoquista.

A solução de todos os problemas - da difusão de produtos estéticos, idéias de qualquer natureza à ascensão de talentos hipotéticos - está ao alcance da mão.

Como puderam notar, acordei outro homem. Por que resisti tanto à sabedoria popular?

Quanta bílis espalhou pelo meu organismo nos confrontos com os harmoniosos itens da ideologia do “vale tudo” hoje dominante. É inútil me atazanar com o desprezo por critérios baseados em fundamentos sólidos e abertos a especulação dos sentidos e do intelecto quando o “gosto” pessoal - essa dádiva divina - tudo pode interpretar, admirar e difundir.

Vade retro sofrimento inócuo que só prove o isolamento e a frustração.

Em minha apologia à “nova onda” não desprezo a importância da rede de relacionamento interpessoal. Considero-a importante, porém, confeccioná-la demanda certo esforço. E, convenhamos, esforço é um troço démodé. Coisa dos derrotados. O bacana é acordar num sábado e ser reconhecido como o talento do ano por todos os jornais e revistas do ocidente, quer dizer - do eixo Rio/São Paulo - sem ter feito muito esforço para isso. A seita do marketing o protege e o protegerá para todo sempre.

Além disso, costurar uma rede de relacionamento interpessoal exige tempo e muito trabalho. E, o tempo, companheiros, é precioso. Quem deseja ficar famoso e ser reconhecido pelos garçons quando tiver 65 anos de idade? Só um otário!

Fico feliz quando observo que a provocação de Wahrol –o prestígio do artista recluso é o Velho. O Novo é o brilho das celebridades” - se tornou o aforismo mais coerente da pós – pós- modernidade –

É maravilhoso receber de manhã mais um convite para o lançamento de uma edição de luxo das Obras Completas de um artista que integrou o circuito das artes nos últimos três anos. Mais excitante ainda é o catalogo das edições de uma instituição publica que lista uma serie de livros sobre arte contemporânea. É magnífico perceber o cuidado da curadoria em organizar uma nova coleção. Orientada por uma obscura intelectual da academia de arte essa nova coleção reedita as mesmas imagens dos mesmos artistas anteriormente publicadas pela mesma instituição federal. O ineditismo dessa nova edição é o fato das obras desses expoentes das artes de nossos dias serem acompanhadas de um texto de um curador com 13 anos de idade .

Meu Deus! Como é comovente quando tudo no mundo se torna pleno de sentido.

Bom dia a todos! Vou agora pesquisar qual a igreja dessa seita é mais próxima de meu ateliê.

O marketing politico no jogo democrático

A proximidade das eleições requenta o debate político, levanta poeira e embaça a visão do eleitor, relativizando a importância do voto. De saco cheio com a pasmaceira algumas pessoas propagam a anulação do voto em todas as instancias. Todavia, no conjunto dos fundamentos democráticos o voto é a prerrogativa individual mais eficaz. O voto era o bicho papão do político profissional. Deixou de ser! Os políticos não temem mais nem Deus nem o Diabo. Eles temem apenas o Ibope.

O gigantesco poder do marketing político tudo mudou. As campanhas políticas travam seus combates no território do marketing. O esquema é simples e funciona muito bem. O conceito de que a voz do povo é a voz de deus, levado aos extremos, eleva a aceitação popular de um personagem político ao nível de Verdade. A estratégia mais comum do marketing político é grudar nesse aforismo. É a versão política do toque de Midas. Essa estratégia se baseia na convenção de que tudo que é popular é bom e representa o bem. Tudo que daí deriva é Verdade. Tempos atrás a propaganda de um fabricante de eletrodomésticos produziu uma campanha promocional baseada nesse artifício e obteve grande êxito propagandístico. Divulgação gratuita e espontânea das massas. Quem não quer? O slogan empolgou de tal forma o público que se tornou uma forma popular de avaliação de coisas e mesmo pessoas. A frase era simples e eficaz, pois conferia ao público consumidor o ilusório poder de qualificar coisas, produtos e pessoas da mesma maneira que se anuncia uma lavadora automática: “Não é nenhuma Brastemp”. Esse slogan foi copiosamente utilizado até por pessoas dos níveis médio/superior de instrução. A ardilosa armadilha agregou ao departamento de vendas do fabricante, sem nenhum custo adicional, uma multidão de garotos propagandas. O sucesso do slogan se confirmou na empatia popular pela frase, ainda que a maioria dos repetidores não tivesse condições financeiras de comprar o produto.

O marketing político, baseado em técnicas específicas consolidou sua estratégia a partir desse nexo. A inconsistência da política parlamentar movida, na grande maioria, por interesses alheios a coisa pública, fez desaparecer a oposição combativa. Os políticos que divergem do governo o fazem de forma lerda, insossa e solitária. Afinal, a oposição tem que seguir seu roteiro de marketing. Os políticos menos volúveis sonham com o dia em que surgirá no seio da sociedade, quer dizer, de uma pequena fração de cidadãos indignados, o apoio político que os manterá no poder por mais uma legislatura. Nesse ínterim, cidadãos insatisfeitos, espantados diante de tamanha mediocridade, assistem a destruição paulatina da ética e a perpetuação da gênese dos conchavos políticos mais vergonhosos.

Esses itens não estão agregados nos formulários de pesquisa.


domingo, agosto 22, 2010

Aventura entrevada

“È muito excitante estar cercada por predadores maravilhosos!”

-Há mais de uma hora o episódio da série Semana do Tubarão tinha encerrado e essa frase continuava nadando na minha mente. Imagens submarinas são para mim cenários atraentes. O silencio subaquático e as maravilhosas formas de vida marinha me encantam. Eu apreciava os documentários do Cousteau. Hoje, é tudo diferente. Um novo foco tomou conta das produções. O pesquisador deu lugar ao homem comum nas aventuras pseudocientificas. A idéia de que tudo é possível a qualquer pessoa tornou-se o modelo de varias produções atuais. Invés de um pesquisador treinado para desafios arriscados, os documentários apresentam pessoas sem nenhum conhecimento especifico entrando em vulcões, atravessando uma geleira infindável ou um deserto árido cheio de bichos venenosos. Um casal chato é o centro de aventuras arriscadas. Uma loura bonita e seu parceiro bonitão mergulham nas profundezas do pacifico, invadem o habitat da vida marinha e vão encher o saco dos “predadores maravilhosos”. Realizado em tecnologia high definition e recheado de comentários idiotas a maior parte desses documentários revelam, sobretudo, o grande potencial humano para a chatice. Roteiros aborrecidos suprem apenas a curiosidade superficial. Depois de duas doses tornam-se atrações requentadas. Irrita-me constatar que nem mesmo os animais que vivem nas profundezas dos mares conseguem escapar da tolice humana. Após esgotarem o repertório de bobagens humanas na superfície terrestre os produtores de documentários sobre a natureza resolveram esgotar a paciência dos tubarões. Durante alguns segundos torci para que um “predador maravilhoso” engolisse a lourinha vestida em trajes subaquáticos cintilantes que alegremente alimentava os tubarões com pescados mortos e devidamente limpos, tripas e cabeças retiradas, contidos numa sacola amarela. Enquanto alimentava os tubarões a atriz soltava gritinhos excitados e comentava sobre a violência da mordida dos animais. Os gritinhos da moça e o abastecimento de atuns mortos e limpos aos tubarões esgotaram minha paciência.

O significado da aventura foi tão aviltado que deixou de ser um desafio ao conhecimento e uma narrativa inquietante dos mistérios do mundo e da vida ou uma epopéia sobre o medo do homem. Tornou-se, de um tempo para cá, uma mesmice e apenas mais um item na vitrine do consumo inútil. Aliás, as farsas insípidas sobre os medos do homem tornaram-se ícones banais, desprovidos de conteúdo capaz de mobilizar nossa consciência sobre o lado obscuro das coisas. Um tubarão num tanque de formol, exposto numa galeria de arte, é apenas um estimulo superficial para o deleite dos freqüentadores dos ambientes cosmopolitas internacionais.

-Oh! Como são formosos, elegantes e assustadoramente belos os predadores vorazes! Exclama uma grã fina enrolada no seu casaco de pele de 50 mil dólares, diante da fera imóvel, aprisionada num container transparente sobre um branco piso de mármore de Carrara. Afinal, não é apenas um tubarão - é uma obra de arte. Isso é, em si, assustador. Um susto tão agradável quanto uma cócega, desprovido da consciência do medo.

-Ontem sonhei que um casaco de vison se vingou da sua proprietária. Ao chegar à mansão a senhora X tentou retirar a veste de pele e não conseguiu. Chamou o marido, um milionário esquálido, que também não obteve êxito. Veio a arrumadeira, o mordomo, o cozinheiro e até o jardineiro fortão e nada do casaco sair. Acordei quando os paramédicos tentavam salva-la do aquecimento global, quer dizer; pessoal, enfiando-a, com casaco e tudo, num freezer, disse Salomé.

-Coitada! Ela despertou a ira da natureza e acabou indo morar pro resto da vida numa geleira artificial. Quem me dera pudesse programar um sonho onde a atriz do documentário da Semana dos Tubarões fosse devorada por uma fera aquática. Falou Frederico.

-Sobre essas vestimentas caras feitas com peles de animais, me contaram uma historia que parece verdadeira. Numa cidade do nordeste do Brasil, onde o calor alcança 50º à sombra, varias senhoras da alta sociedade possuíam casacos de pele caríssimos. Ocorre que nos trópicos essas vestimentas são proibitivas. Porém, no inverno – para os pirados a designação das estações do ano autoriza qualquer arbritariedade – essas senhoras pediam aos anfitriões das festas e recepções que regulassem o ar condicionado para 10º. Quando a sauna natural dos trópicos atingia 15º as madames surgiam nos salões como Cinderelas glaciais, cada uma portando um casaco de pele mais caro que o outro.

-Ah! Isso é piada, Salomé.

-Não!É um fato! Isso acontecia nas décadas de 50/60. Não sei se continua acontecendo. Soube disso através da filha do cônsul da Itália que durante três anos morou numa capital do nordeste.

-A soberba desconhece fronteiras. Ocorre nos salões refrigerados do nordeste brasileiro e numa galeria sofisticada em Knights Bridge. A estupidez é uma moléstia global. Completou Frederico.

quinta-feira, agosto 19, 2010

A Ilusão do Vassalo

Quando Timothy sentou-se na platéia o professor Frederico Nimbus já havia iniciado sua conferencia.

Timothy estava de péssimo humor. Não era um sujeito de meias palavras e tinha passado uma noite péssima. Eram muitos os motivos para estar puto. A fim de entender e tentar domesticar sua ira resolveu criar uma hierarquia de aporrinhações. Por alguma razão que desconhecia, achou que o motivo principal de seu ódio fora a exclusão de seu nome na listagem de artistas divulgada pelo novo curador do Museu de Arte de Sacramento. Que merda! Porque li o jornal logo depois do almoço. Resmungava Timothy pra si próprio. Ele desprezava o sujeito. O considerava um anêmico mental, um serviçal de dois mestres da Universidade Católica de Cancun.

- Ser subalterno de dois mentores é submissão em dose dupla. A que ponto chegamos! Conjecturava Timothy.

A rebeldia intelectual de Timothy era progressiva, Se não reduzisse o fluxo sanguíneo no cérebro seria capaz de cometer uma loucura. Diabos! Sou obrigado a reconhecer que os incompetentes têm uma puta capacidade de articulação. Sozinhos não se garantem, não representam nada, porém, agregados numa rede de afamados tornam-se poderosos. Lótus Caminha é o protótipo mais perfeito e acabado da escravidão mental. A fim de estimular sua vocação subalterna freqüentou os cursos de historia do professor Paulino e sentava na fila do gargarejo, embasbacado com as palavras do intelectual free lancer Brutus . Os dois são os maiores expoentes da maquiavelice cultural. Seus cursos na católica são muito concorridos. A freqüência é ultra selecionada. A mulher do diretor de um grande jornal é mais que uma aluna, é uma militante convicta, disposta a tudo para difundir as idéias e apoiar os planos culturais dessa parelha de intelectuais. Certamente, por influencia deles, a madame Debuxe conseguiu empregar Lótus Caminha, seu colega de mestrado, no jornal A Província, uma das empresas de seu marido. Lótus é um sujeito sem idéias próprias. Na universidade cumpriu mediocremente o currículo e conseguiu se graduar. Seus textos são chatíssimos. Porém, uma coisa é inegável, Caminha tem a qualidade básica para galgar cargos importantes. É obediente como uma mula e um servidor dócil que cumpre à risca as determinações de seus tutores. Lótus sempre foi um subalterno opaco. Um big ass!Todavia, Lótus está no comando do Museu de Sacramento e Timothy está puto da vida.

-... A crise ética das sociedades contemporâneas do ocidente não se restringe apenas a esfera econômica. O setor cultural, sobretudo, o campo da arte, vem sendo manipulado de forma venal e indecente por indivíduos inescrupulosos, alheios e insensíveis a complexidade da arte de nossos dias. As instituições culturais foram o foco inicial de uma ação política sem precedentes na historia da arte. O que hoje assistimos teve inicio nos anos 80 e agora - em 2010 - atingiram o clímax da desfaçatez. Ao afirmarem que os jogos sócio - culturais são partes integrantes e inseparáveis da realidade, alguns intérpretes da atualidade desviam o enfrentamento do problema e evitam pensar sobre qualquer assunto grave e complicado no campo da arte. Parece um bando de jogadores em campo ensaiando jogadas de efeito para um jogo com resultado combinado de antemão. As instituições culturais não respondem e certamente não responderão tão cedo à pergunta: os jogos culturais da atualidade estão sendo praticados com signos culturais? Qualquer míope sabe que não! Porem, não existe o menor interesse por parte de um curador, por exemplo, de responder essa pergunta. De um tempo para cá, o curador se tornou o dono da bola, do campo e do resultado do jogo. Um jogo viciado! Recentemente, um artista me confidenciou que foi excluído de uma exposição do acervo de um Museu que possui varias obras suas. O mais grave nesse episódio, ainda segundo o artista, é que a exposição era voltada para um período em que ele estava em visível atuação. A exclusão ocorreu por determinação do curador da instituição. Entendo que o curador não tenha por obrigação trocar simpatias com quem quer que seja. Essa é uma hipótese possível e ate certo ponto um procedimento freqüente e tolerável, nas relações interpessoais. Contudo, que autoridade superior se arroga um curador para negar ao público - friso, negar ao público - a possibilidade de contemplar obras que não gosta ou, em casos extremos, obras de um artista pelo qual não tem nenhuma simpatia? Mais absurdo ainda é o fato que, se o curador excluiu as obras desse artista por desconhecer totalmente o período sobre o qual organizou sua curadoria, deveria, então, ser demitido por justa causa. Se não conhece um período que pretende trabalhar deveria, no mínimo, estudar o que não sabe antes de apresentar ao publico a mesquinhez da sua visão da arte de um período. Ou, então, voltar para escola e reclamar o dinheiro que investiu na sua precária formação. Desse episodio execrável podemos deduzir que a política institucional da arte está sujeita as idiossincrasias dos seus gestores. Isso é uma aberração!

Qual o baralho que está sendo usado no jogo da arte contemporânea? O tarô? Não, nada disso! O jogo cultural da atualidade está sendo jogado com dados afetivos e mercantis e pautado em estratégias alheias ao campo da arte. Tornou-se um jogo de cartas marcadas onde apenas o cassino ganha. As instituições culturais tornaram-se cassinos, o curador o corrupie e o comando superior da instituição, ainda que não pertença à máfia, é apenas uma instancia representativa, alheia as questões da arte e irresponsavel no que tange o atendimento ao público. Ocorre, todavia, que o desenho de uma instituição cultural é traçado pela imparcialidade, a excelência profissional e a clareza de princípios. São esses fatores que alicerçam a instituição cultural num grau de Verdade, verdade no sentido de honestidade cultural e legitimidade, não uma Verdade cientifica,é claro. Como podem ver, estamos diante de uma crise ética de proporções arrasadoras... “

Antes mesmo desses três pontos da conferencia de Nimbus, Timothy já era senhor dos seus sentidos, O mundo das idéias, da ética, da inteligência e coragem ali apresentado havia resgatado sua alegria, revelando, ao mesmo tempo, o esplendoroso poder do homem de reverter as veleidades do destino.

quarta-feira, agosto 18, 2010

O Bem e a Verdade



-O bem ou o mau, assim como a verdade ou a mentira são, no entendimento de quem está no comando da ação prática e sob os efeitos do relativismo cultural apenas - o Bem e a Verdade. A adoção geral e irrestrita dessa mentalidade é tão confortável quanto os assentos da primeira classe deste avião de carreira. Aliás, se perguntarmos para os passageiros que só viajam na primeira classe, certamente as opiniões serão relativas. Alguns dirão que o conforto oferecido merece melhorias. Falarão que as aeronaves precisam ser aprimoradas tornando as viagens internacionais menos sofridas e desgastantes e que os vinhos e o serviço de bordo precisam melhorar, assim como os toaletes devem ser maiores e mais iluminados. Outros dirão que se sentem privilegiados por viajarem em condições similares a dos anjos. Para mim, essa poltrona da classe turística é terrivelmente desconfortável, o avião uma merda e a tripulação parece aflita e despreparada para atender tantas solicitações.

-Por favor, Frederico! O que está havendo? Por que está reclamando tanto do avião desde que partimos? Foi você que quis embarcar nas condições que te ofereceram.

-Não tinha outra alternativa, Salomé. A minha palestra é amanhã à noite. Ontem, quando telefonei para agencia, fui informado que a classe executiva estava lotada. O que eu podia fazer? Essa universidade só paga passagens na classe turística para os palestrantes. Devem pensar que um palestrante é alguma espécie de turista. Intelectual não é turista nem quando viaja a passeio para um país exótico. Ele chega ao povoado sabendo mais da vida e da cultura nativa que os próprios habitantes.

-Querido, à parte o seu mau humor eu adorei a estocada no relativismo. Já deu pra perceber que esse seminário vai pegar fogo. Li anteontem que Carlos Sacii, o mais destacado pilar do relativismo cultural, vai fazer uma palestra fartamente ilustrada sobre as correntes estéticas contemporâneas.

- Eu sei! Li trechos do paper dele. Embora Sacii não seja um relativista autentico, está mais para um oportunista inescrupuloso, é um esgrimista ligeiro e talentoso com as palavras. Sua língua é diariamente lubrificada com manteiga de cacau, escorregadia e pronta pra convencer gregos e troianos a comprar armas na Pérsia. Além disso, para confirmar sua incerteza no relativismo cultural,Sacii aposta na loteria mais do que investe em arte e cultura. Já ganhou fortunas no jogo e vive reclamando da loucura de preços que sacode o mercado de arte, apesar de apenas vender,jamais comprar.Sua rápida ascendência na carreira acadêmica é só um detalhe. Alías, um detalhe rebuscado, já que foi projetada pelas mais ambiciosas mentes do marketing cultural e apoiada por muitos partidários de aluguel. Numa mesma frase Sacii é capaz, sem pausa para o diafragma se recuperar, de submeter tanto a reitoria como comprometer o governo e subjugar os professores e funcionários, se os lucros forem promissores.

-Bem!Nisso ele não é muito diferente de vários colegas. Fred deixa isso pra lá, ainda falta muito para chegarmos. Fale-me mais sobre sua abordagem critica ao relativismo cultural. Vou ficar atenta, juro que não vou cochilar.

- Ora!Salomé, por que não lê o trabalho?

-Porque eu prefiro quando você fala, desdobrando o rigor do texto corrido e inundando a paisagem mental do ouvinte com expressões divertidas.

-Ih!Dando uma de Sacii?

-Nada disso!Você sabe que não é isso.

-Há quanto tempo venho te dizendo que a expansão do relativismo cultural é conseqüência de um largo espectro de idéias que ambicionam controle, poder e...lucro,altos lucros. Abordá-lo e desbravá-lo, na sua totalidade, exige do investigador um esforço hercúleo.

-Humm!Humm!Há muito tempo você toca nesse tema.

-À medida que pego uma ponta do sistema, outra surge envelopada dentro dela. Lembra-me uma historia de ficção científica onde um robô auto-programável reconstrói-se indefinidamente. A auto programação robótica é o sonho dos escravos da tecnologia! Ela encerrará, antes mesmo do que se imagina e aqui mesmo na Terra e ainda no século XXI, o frenesi humano de uma guerra futurista e intergaláctica do homem versus máquina.

-Meu Deus! Espero que esse avião não tenha esse recurso tecnológico adaptado nos seus vários computadores de bordo. Brincou Salomé.








-Os procedimentos relativistas estão preparando as mentes para o paraíso robotizado, onde os homens serão escravos da técnica em troca de um conforto pré - programado pelas maquinas humanizadas. Se você me perguntar se existe uma estratégia nesse processo eu, de imediato, responderia que sim. Porém, temo que ao afirmar tal suposição meu pensamento tangencie equívocos sucessivos e danosos. Pra me prevenir, escapo por outra saída. Penso sobre o “boom” das atitudes politicamente corretas, o sumiço da critica apurada, o desprezo por critérios bem fundamentados,a desvalorização do trabalho humano bem realizado e o pouco caso com a especulação intelectual sobre a vida e o homem.Curiosamente, esses acontecimentos surgiram simultaneamente, na fronteira dos anos 80/90. O que essa conjunção de fatores pode nos dizer? É isso que me anima a investigar as razões que tornaram possível a predominância do tecnicismo, do pragmatismo e do imediatismo no pensamento contemporâneo. O fato é que, ainda que não se delineie como um método visível, tais procedimentos se incrustaram de tal forma na mentalidade atual que tentar abordar o problema já dá uma trabalheira danada. Quem hoje ousaria contestar que a ética e o conhecimento tornaram-se valores tão estranhos a ponto de se antagonizarem?

-É mesmo!Em todos os cantos da vida contemporânea esse se tornou um comportamento padrão. Retrucou Salomé.

-Na política, na cultura e nas atividades humanas mais banais a relação entre ética e conhecimento se dissipou por completo.

A corrupção e a degenerescência proliferam em ritmo veloz. As inverdades e incertezas cotidianas e o amesquinhamento da alma humana, tornaram-se circunstancias, atitudes e sentimentos passivamente tolerados. Basta que um indivíduo tenha os meios para realizar seus objetivos e os obstáculos desaparecem num passe de mágica. Numa sociedade extremamente técnica, meio é o que não falta. Uma idéia brilhante (sic) é rapidamente apresentada como mais uma retumbante realização da mediocridade. O relativismo cultural protege o medíocre. Afinal, pra que serve o dispositivo politicamente correto? Como ninguém vai criticar, o produto se basta. Esse modelo “genial” pôs pra funcionar uma espécie de justiça cultural que, anulando os critérios que dificultavam a ascendência da mediocridade no circuito artístico, defende a inclusão de qualquer afoito, não importando o que façam, pensem ou produzam. O pacto deve seguir em frente. Os produtos são para ser expostos à venda. Dinheiro e um esquema de marketing são capazes de inflar o ego de qualquer aventureiro desprovido de um grama de talento e honestidade. Basta isso, para termos diante dos olhos mais um fenômeno das artes, da política e dos negócios. Quem ousará contrariar uma maquina com poderes estupendos de criar mitos da noite para o dia. A instrução subliminar é muito eficiente e vem estampada na compra do figurino politicamente correto. A instrução número 1 consiste em obliterar, denegrir e achincalhar qualquer critica através da argumentação simplória de que todos têm liberdade para fazer o que bem entender. A instrução número 2 informa que toda critica é uma forma de coerção. Quem quer ser, num mundo padronizado, um estranho no ninho? Um chato de galocha! É mais fácil ser sedutor e agradável e assim se integrar a massa dos contentes. Sou obrigado a reconhecer que nesse laboratório o robô auto - programável vem realizando uma façanha digna de um Titã. Milhões de mentes são tragadas, processadas e devolvidas aos seus portadores humanóides todas as manhãs. No dia seguinte as pessoas não sentem nenhuma diferença substancial do que eram no dia anterior. Apenas notam que seguem com mais entusiasmo para a fila de produção e consumo. Não há queixas, lamurias ou decepções, apenas uma frustração estonteante que serve de estimulo para produzir mais, ganhar mais dinheiro e comprar o que ontem parecia impossível. Quando nada se ajusta as necessidades, o crime é uma opção viável ao alcance da mão. Não se assuste, já existe uma solução justa para essa circunstancia: para os ladrões de galinha, traficantes, assaltantes e pobres; a morte ou a cadeia. Para os gatunos de alta estirpe e os políticos escroques as manchetes dos jornais e algum aborrecimento na hora do almoço. Uma úlcera, em casos extremos.

Essa ideologia se tornou um senso comum. A idéia de que fazendo o melhor para você, estará contribuindo para o Bem de todos é um marco de nossa era. Ainda que o objetivo do indivíduo não seja fazer necessariamente o Bem, o milagre desse preceito sobrevém,mesmo contra a vontade do sujeito. Essa instrução vem funcionando as mil maravilhas. Ninguém duvida dessa Verdade. Aliás, ela se tornou a melhor Verdade do império do relativismo cultural.

-Meu Deus! Onde foi parar o meu passado histórico?Brincou Salomé.

- Nesse admirável mundo novo a critica tornou-se um estorvo e os critérios bem fundamentados, assim como a especulação intelectual sobre a vida humana, foram colocadas em segundo plano. As antigas alusões aos valores e princípios perderam o sentido. Algumas pensatas do gênero ainda permanecem agregadas aos portais decorativos das fachadas dos velhos templos do conhecimento por puro esquecimento. As relações entre a ética e conhecimento tornaram-se, de um tempo para cá, códigos incompreensíveis.

O curioso disso tudo é que o desaparecimento da critica apurada deu lugar a fartura de teorias acadêmicas. Nunca na historia se produziu tanta teoria. No campo da estética todo dia lançam uma nova teoria. A publicação de teorias estéticas acelerou. Nesse ritmo,em breve, disputará corrida com as rotativas dos jornais de grande circulação.

-É! Algumas tão inacessíveis à compreensão quanto os testes do Enem. Comentou Salomé.

-Estilos proliferam. O mais recente de que tenho noticia porta o rótulo de Arte Fetiche. Ninguém até agora tem a mínima idéia do que se trata. Porém, se é fetiche, deve ser ao menos pitoresco.

- Fantástico né?Li algumas coisas a respeito. Disse Salomé.

-Mal tomo conhecimento de uma novo estilo no dia seguinte surge outro para lhe sobrepor. A pluralidade criativa está concorrendo com a velocidade de oferta dos produtos de tecnologia de ponta.As inúmeras nominações da arte contemporânea parecem inspiradas num índice de pesquisas científicas. Não é de hoje que sabemos que a ciência é o território da perfeita clareza. As experiências científicas da atualidade são regidas por exigências e metodologias rigorosas de comprovação da Verdade. A legitimação de uma teoria cientifica só é aferida na superação de regras muito bem definidas. Todavia, a aferição de uma Verdade artística é uma ambição sem propósito. Porém, essa mania se infiltrou de tal forma na mentalidade artística de nossos dias que hoje se tornou comum os produtos artísticos se imiscuírem com paradigmas científicos, sem qualquer pudor. Prospecção criativa é coisa do passado. Hoje, uma sacada esperta tem o mesmo valor de uma descoberta. Além disso, pra que esforço? Tudo pode ser rapidamente apropriado nos meios, nas técnicas e saberes complementares. A inspiração, por exemplo, pode surgir, numa consulta superficial a algumas teses da antropologia cultural.

-Essas reflexões me lembram um episodio engraçado que aconteceu num seminário na USP. Lembra?

-Não!

-No meio da sua fala um artista protestou a plenos pulmões: A Arte é vida, a vida é arte!

Ah! Claro que lembro!

-Então! Lembra que a platéia emitiu um zumbido desaprovador e que eu te disse depois que me contorci na poltrona esperando você mandá-lo à merda?

-É mesmo|!

- Qual não foi minha surpresa quando você, incorporado pelo alter ego Dalai Lama, sorriu e respondeu: - Companheiro, não restrinja a arte a apenas um fenômeno. Arte é vida e também é morte. A arte nos ofereceu no correr da historia e ainda nos oferece, obras maravilhosas que mergulham no mistério da vida e da morte. Mesmo hoje, nos dias atuais, muitos artistas tentam sofregamente encarar esses mistérios e nos encantar com sua arte. Alguns obtêm êxito, outros nem tanto. Sempre que reduzimos a arte a um único fenômeno - o da Vida -por exemplo, obliteramos nosso horizonte e reduzimos as experiências artísticas a um só ponto de vista. Afinal, sobre qual aspecto da vida estamos falando? Da vida individual, ou seja, da estetização de uma autobiografia, dos humores pessoais, da vida social e política, da vida das células, da natureza, dos insetos e das plantas ou da vida como tema genérico? Em qualquer dos casos citados e outros esquecidos a vida está presente. Seja atraves da manifestação de uma estética mórbida, hoje na moda, ou, em uma plena de alegria. Concorda? Entendo sua proposição, no entanto, você há de convir que não é necessário mais que quatro neurônios para concluir que seres vivos só podem se expressar através da vida. Todavia, nem toda expressão humana é um fenômeno artístico. Donde, é licito supor que, só através dela, da vida, podemos refletir, criar e produzir arte.

-Lembro! Lembro inclusive que durante os debates o sujeito se esforçou para explicar seu conceito de arte/vida. Enrolou-se todo e achou melhor resumir o assunto afirmando que tudo que uma pessoa faz ou produz é arte. As pessoas riram maldosamente. Eu, confesso, fiquei constrangido. Não me apraz fazer chacota com a dificuldade alheia. Meu respeito pela ingenuidade é sincero. Se ele fosse um petulante, um sujeito rempli de soi meme, eu teria ficado puto. Mas, não era o caso.

-Perdão interromper, disse a aeromoça.

- Pois não!Retrucou Salomé

-Um casal da primeira classe lhes oferece essa garrafa de champanhe.

-Oh! Quanta gentileza. Completou Salomé.

Sobre a bandeja da oferenda havia um cartão de visitas escrito em elegante caligrafia, onde se lia: Com os cumprimentos de Carlos Sacii e Aurora Celeste.

sexta-feira, agosto 13, 2010

Nada que é humano me é estranho

Eu sou homem e nada do que é humano me é estranho. O Carrasco de si
Terêncio - Roma [-185--159]

-Quanto custa um corpo humano? Perguntou Donald Kimberley, o pop star da arte inglesa contemporânea, ao plantonista da madrugada na delegacia do distrito de Bayswater em Londres.

-Depende! Existem inúmeras categorias. Alguns custam mais que outros. Além disso, se você pretende comprar um corpo humano vivo em bom estado é um preço, um mulambo é mais em conta, morto, dependendo da origem, também pode variar de preço. Entenda, por favor, que o preço desses corpos não tem qualquer relação com o valor e a qualidade de vida da pessoa ou da riqueza que desfrutou em vida. Respondeu o sargento O’Hara.

-O senhor é humorista? Instilou debochadamente o star.

-Ora, cidadão. O senhor está com sorte. Se eu não fosse humorista o senhor estaria agora chorando numa cela.

-Engraçadinho! Retrucou Donald

-Não! O senhor é que é um deprimido. Respondeu o sargento.

-Como se atreve dizer tal coisa sem me conhecer? Bradou Donald

-Ora, é simples meu caro. O que um sujeito cheio de pompa, envergando roupas caras, abraçado numa garrafa de champanhe que daria para pagar mais de dois meses do meu salário vem, às 3 horas da manhã, fazer numa delegacia policial? Passear?Buscar diversão em meio à ralé, putas, proxenetas, ladrões, assassinos, viciados e traficantes enclausurados e ferozes? Completou asperamente O’Hara

-Não! Respondeu Donald timidamente, olhando para o piso de mosaico carcomido.Não, sargento. Não é nada disso. Eu sou um artista, acrescentou Kimberley.

Depois de um breve silencio e sob o olhar inquisidor de O’Hara, Donald depositou a garrafa de Perrier-Jouët no piso, pegou delicadamente a mochila Louis Vuitton, abriu e retirou de seu interior três luxuosos livros. O brilho das capas excitou as pupilas do sargento e os títulos em letras de ouro refletiram no fundo das retinas de seus olhos escancarados. Quando o foco se ajustou O’Hara conseguiu ler: Donald Kimberley Complete Works Book I -1988 – 2000 – Donald Kimberley Complete Works Book II 2001 – 2005 e Donald Kimberley Complete Works Book III 2006-2010.

-Nem mesmo o Exército Real possui um prontuário tão luxuoso!Exclamou o sargento. Nunca vi nada igual. Completou.

-Toda minha vida está dentro desses volumes. Disse Donald.

-Como assim?Retrucou O’Hara

-Minha obra artística completa está contida nesses três volumes. Repetiu o artista

-Desculpe perguntar, o senhor me parece bastante jovem. Como uma pessoa tão jovem tem três volumes de obras completas antes mesmo de morrer, perdão, parar de produzir, melhor dizendo, se aposentar?

-Porque sou muito famoso e extremamente rico.

-Bem! Que me conste esses não são valores artísticos. Retrucou O’Hara.O preso da cela 18 é um traficante extremamente rico e famoso. Pelo que sei, não possui nem mesmo um álbum de figurinhas completo.Afinal, cidadão, o que o senhor deseja? A fila de clientes atrás de si está crescendo.Concluiu o sargento

-Eu queria comprar um corpo humano. Quer dizer, dois corpos humanos; um vivo e um morto. É isso que preciso no momento, afirmou o artista.

-Ok! Sente-se naquele banco ali atrás e espere enquanto consulto nosso estoque. Ordenou O’Hara com o habitual sarcasmo que usa no trato com os indivíduos que se entregam à policia por crimes que nunca cometeram.

Sentado no velho banco de madeira Donald deu três largos goles no precioso liquido Perrier-Jouët, abriu a mochila e dela retirou um grosso catálogo. Na capa, de um belo azul profundo, impresso em letras negras, lia-se: The Human Body – The Art of Günter Von Hagens. Donald pousou o exemplar no colo, deu outra talagada no champanhe e abriu o catálogo numa página marcada por um grande recorte de jornal. Repleto de fotos, a página estampava no alto à direita da logomarca do jornal, os dizeres: Critical section of Taxidermy Contemporary Art.

- Son of a bitch! Exclamou Donald. Seu desabafo foi tão alto que o sargento O’Hara retrucou imediatamente.

-Siiihhhhh!Silencio!Isso aqui não é um pub.

-Não posso me calar diante desse roubo!Exclamou Donald.

A jovem russa algemada, sentada a seu lado, deu um pulo do banco e saiu correndo para um canto escuro da delegacia esbravejando:

- Я ничего не делал, я невиновен! До вчерашнего дня был на вечеринке в Москве вчера и проснулась в постели гражданского служащего, где английский язык был удален со стороны полиции. . Боже мой, что происходит? (nota do tradutor: Não fiz nada! Sou inocente! Anteontem estava numa festa em Moscou.Hoje, fui brutalmente acordada pela policia londrina na cama de casal de um alto funcionário publico inglês em Chelsea. Meu Deus! O que está acontecendo comigo?)

-Sem dar atenção ao chilique da moça, como se ela nem mesmo existisse, Donald continuou seu protesto:

-É inadmissível! Eu sei que o estilo taxidermista não me pertence pelo fato de tê-lo criado e tornado sustentável pela critica,curadores e pelo mercado. Também sei que artistas de regiões menos influentes artisticamente adotaram o estilo taxidermista o incorporando a seus precários repertórios. Sou um sujeito generoso e vejo esses seguidores mais pobres do terceiro mundo como uma conseqüência previsível do meu enorme poder criativo. Mas, isso não me obriga a calar diante da desfaçatez. Há mais de dez anos tento realizar minha obra imortal e só tenho esbarrado em dificuldades. Logo depois da exposição de 1989 que teve uma repercussão global, eu venho me esmerando para concluir o diptico The possibility of the Death of the Mind in a living brain (nota do tradutor: A possibilidade da Morte da Mente num cérebro Vivo). Essa será uma obra de rara intensidade.


Será um diptico, onde um corpo humano vivo reproduzirá a mesma posição de um corpo morto. Esses dois corpos em pé, lado a lado, seriam abrigados em um compartimento hi tech protegido por vidros blindados.Dessa forma atravessarão a eternidade.

Nesse ínterim, toda a clientela da delegacia, policiais,escrivãos e faxineiros admiravam atentamente o orador.

Arrebatado pela audiência, procurou na mochila o exemplar do Donald Kimberley Complete Works Book II. Abriu as primeiras paginas e continuou folheando, exibindo para a platéia um verdadeiro zoológico taxidermizado flutuando em líquido colorido.Essa sessão extraordinária proporcionou aos ouvintes embasbacados uma visita guiada as suas obras. Folheava freneticamente as paginas cheias de ilustrações maravilhosas enquanto falava das sensações, dos estímulos e das referencias de cada imagem com a Historia da Arte.

Após a exaltação sentou-se lentamente.Cabisbaixo confidenciou com a voz embargada pela angustia:

-Enquanto isso Von Hagens aparece ao mundo como um astro da arte taxidermista. Uma mentira! Eu fiz tudo muito antes dele ter se curado da frustração de não conseguir nem ao menos ser um anatomista alemão de sucesso. Como cientista é um blefe! Seu controvertido processo de "plastinação", nome de sua invenção dos anos 70, é desprezado pela comunidade científica.Depois de convencer um marchand de Berlim, os curadores, a imprensa e o publico de que o que fazia era arte, tornou-se famoso em seu país. Pior ainda é que esse sujeito ganhou as manchetes internacionais com as exposições que realizou sobre os vários estágios da vida humana que incluía cena de sexo entre cadáveres além de outros 200 corpos inanimados.Miserável!Bradou Donald.

-Sim! Respondeu em coro a audiência. Um depravado, um miserável que impede os corpos de mergulhar dignamente nos abismos da morte.

Donald levantou-se e com os olhos fixados no chão como se vislumbrasse uma trilha nas frestas imundas do mosaico carcomido, atravessou por entre corpos vivos da clientela estupefata,se dirigiu para a porta.Atravessou-a e adentrou o negrume da madrugada londrina resmungando:

-Oh Deus!Que ódio! Esse bosh conseguiu corpos humanos em grande quantidade. E eu, aqui penando para conseguir ao menos um corpo humano vivo e outro morto. Estúpida burocracia inglesa ! Depois não sabem porque os alemães são tão adiantados,ricos e admirados.





quarta-feira, agosto 11, 2010

Relativismo genético - Uma proposta estética




A Escolha de Aurora

"Diferença entre um amador e um profissional. Um amador pensa que é engraçado vestir um homem como uma velhinha, sentá-lo numa cadeira de rodas e dar um empurrão na cadeira, para que ele desça ladeira abaixo feito uma bala e se esborrache contra um muro de pedra. Um profissional sabe que isso tem de ser feito com uma velhinha de verdade". (Groucho Marx)
A citação acima, impressa em letras garrafais, está afixada na parede da sala de estar da casa de Aurora Celeste. Artista e militante convicta da estética pós humanista, Aurora vive, ao contrario dos humanos, numa bolha repleta de objetos e coisas extravagantes. Ela é distinguida pelos amigos como uma pessoa de mente escancarada, que despreza qualquer forma de representação. Para ela, tudo tem que ser de verdade. O amor, a arte e a vida. Isto explica, em parte, a citação de Groucho Marx colada no centro da sala de estar. Além disso, ela não é de titubear, aceita sem restrições todo e qualquer paradigma contemporâneo.
Sua vida artística teve inicio numa tarde de outubro de 1999. Nessa ocasião Aurora estava ultra mobilizada pelo “bug” do milênio. Como tudo corria o risco de parar ela resolveu parar de vez com a vida de tiéte de artistas famosos e mergulhar de cabeça numa ideia genial. Nos dez anos que nos separa do inicio da Era do Conhecimento a obra de Aurora ganhou visibilidade. Tudo aconteceu subitamente, assim como acontecem os milagres.
Ela recorda com carinho aquela tarde quente de verão quando um amigo solicitou sua ajuda numa faxina em seu ateliê. No final do expediente, sob a soleira da porta, amontoaram uma pilha de edições antigas da revista Art Forum.
-Que destino você vai dar a essas revistas? Perguntou Aurora.
-Não sei! Não as quero mais. Talvez faça uma doação à biblioteca de uma escola de arte. Respondeu-lhe o amigo.
-Ah! Posso guardá-las para mim? Perguntou animada.
-Claro! Leve as que quiser.
Levou todas. Foi o que fez.
Durante uma semana inteira Aurora não foi a nenhum vernissage, não visitou galerias de arte nem museus, não leu jornais nem viu televisão, não navegou na internet ou mesmo falou com os amigos no telefone. Como não tinha o habito de ler livros, não sofreu o desgosto de abandonar uma boa leitura. Nesses sete dias de profundo recolhimento Celeste teve um lampejo que qualificou como semelhante ao que teve Jesus durante os quarenta dias que se recolheu no deserto em colóquio com o Pai, antes de dar início à pregação do Reino.
Foi nessa semana de intensa meditação que Aurora Celeste vislumbrou a luz criativa.
Dizem as más línguas que a artista ateve-se nesse tempo a folhear apenas três números das edições da Art Forum de 1974 e, maldosamente, insinuam que a jovem foi mentalmente abduzida pela onda de manifestos estéticos que usavam a genitália humana como modelo.
Os detratores falam que antes do insight que lhe trouxe fama, Aurora passava as tardes de sábado vasculhando brechós da Rua do Lavradio. Colecionava pequenos bibelôs e quinquilharias decorativas em ferro ou bronze, fundidos nos séculos XIX e XX e fotos antigas de personagens anônimos sobre os quais realizava intervenções. 
Era uma forma singela de reverenciar sua empatia com os ready made de Marcel Duchamp.
Todavia, ao dar de cara com um anúncio da sua exposição, publicado em 1974, na contra capa da revista Art Forum, em que a artista Linda Benglis, nua, de óculos escuros, ostentando um grande pênis e simulando a pose característica de um 'macho man', Aurora Celeste entrou em transe.



Também pudera, ela já estava prestes a surtar quando folheou as fotos da fatídica performance de Schwarzkogler, na qual o artista fragmentou gradualmente o próprio pênis com uma navalha.Esse episódio o levou à morte aos 29 anos.
Pouco importa o que comentem por ai. O fato é que Aurora ficou deslumbrada com a perspectiva que se descortinou a sua frente. 
Estava totalmente convencida de sua missão. Nenhuma critica ou argumento, por mais razoável que pudesse parecer, iria se contrapor ao seu empenho em desbravar o que considerava vital para a nova Arte do século XXI e uma verdadeira revolução política, digna de uma sala especial em qualquer Bienal do planeta.
As pesquisas sobre o sexo que fez na internet a levou a concluir que era preciso dar um basta a tanto sofrimento imposto por força do Determinismo Biológico .
-Quanto sofrimento tal determinismo impôs e ainda impõe ao homem. Pensou a artista.
–Diante do enorme conhecimento que hoje possuímos, da falácia das verdades absolutas e do enorme domínio tecnológico, o que a arte, juntamente com a ciência, pode fazer para ajudar os homens a adentrar a verdadeira felicidade? Essa foi a questão resultante das suas pesquisas.
-Até quando seremos compelidos a aceitar e a temer o autoritarismo dos genes? Balbuciava para si mesma.
Motivada por esses pontos Aurora Celeste mergulhou de cabeça nos debates mais quentes da ciência atual.
Numa das muitas consultas ao Google, esbarrou com um artigo cientifico que lhe despertou grande euforia.
A pergunta : “O que são e quantos são os gêneros que compõem a espécie humana?" que dava inicio a um texto, a levou ao orgasmo.Evidentemente,por motivações estéticas mais elevadas,um gozo não físico ou biológico.
-Que coincidência, a mesma questão que agora me atormenta. Disse a si mesma
Então, rolando freneticamente a ferramenta do oráculo cibernético, Aurora Celeste deu de cara com um conteúdo que a sacudiu na cadeira:

“O que determina o sexo de uma pessoa?”
Na leitura Aurora ficou sabendo que : “Ainda que a pergunta pareça fácil a resposta não é tão óbvia assim. 
Essa dúvida tem atormentado o meio médico, gerando debates acalorados e pilhas de estudos em alguns dos maiores centros de pesquisa do mundo. O senso comum diz que o sexo masculino acontece quando a pessoa tem um pênis e um par de testículos. E o feminino, quando há vagina e ovários. E não se fala mais nisso, certo?
Errado! 
Há pessoas que têm absoluta certeza de que pertencem ao sexo oposto àquele que seus genitais indicam.
Talvez,então, a resposta esteja nos hormônios sexuais. Errado de novo. 
Esse é um critério ruim porque os endocrinologistas já se cansaram de ver mulheres que têm maioria de hormônios masculinos no corpo e vice-versa. Então a resposta só pode ser a análise genética, já que todos sabem que se os genes se unem em cromossomos no formato XX a pessoa é mulher e se for XY a pessoa é homem. Outro erro, pois ocorre várias vezes o que os especialistas chamam de “mosaicos”,que são  misturas na formação cromossômica que podem desacreditar qualquer conclusão taxativa nesse campo. 
É melhor nem pensar que o que distingue o gênero masculino do feminino é o comportamento, porque as várias preferências sexuais reduzem à cinzas qualquer conceito radical de gênero(... )Essa dúvida, sobre o que realmente define o sexo de um indivíduo, está criando um drama ético crescente por causa de pessoas para quem nenhum desses critérios oferece uma resposta satisfatória.”
Ao ler essas anotações a jovem artista foi ao delírio.
Excitadíssima rolou rapidamente a página.
Foi então que ficou sabendo que um pesquisador brasileiro tinha uma teoria revolucionaria. Segundo ele:... “existem, na verdade, 11 sexos, sendo dez as versões masculina e feminina de heterossexuais, homossexuais, transexuais, gays e bissexuais e 1,o número ímpar, caberia aos hermafroditas.”
-Meu Deus! Exclamou esfuziante.
-Não se trata apenas de um novo paradigma artístico é algo para muito além de tudo que já foi proposto ou realizado pelos artistas do passado. Linda Benglis, Michelangelo, Schwarzkogler e muitos outros, se fixaram apenas no aspecto moral, quer dizer, nas convenções e tabus que atormentam os seres humanos e reprimem as sociedades. Concluiu a artista.
-Geeente! É isso que me aguardava. Minha missão é colocar a arte a serviço de uma causa em prol da liberdade, contra a tirania genética e as imposições da natureza que oprimem o homem.
De posse de um leit. motif a artista enfim repousou.
Na manhã seguinte,mal acordou, telefonou para Maldonado dos Santos, professor, critico de arte, teórico e curador de inúmeras bienais. Maldonado é uma espécie de bandeirante da arte política, revelador de novos e velhos talentos da vanguarda contemporânea.
-Maldo querido, veja o que descobri!
- Oi, Aurora estou agora numa reunião com todos os curadores da bienal. É um assunto muito longo? Perguntou Maldonado.
-É muito profundo, querido.
Oh!Deus, como preciso de você. Balbuciou Aurora
-Da pra resumir? Perguntou-lhe o amigo.
-Tentarei... Tentarei... Disse Aurora em tom titubeante
-O sexo é... Bem, o sexo de um indivíduo é um drama ético!
-Hein?! Como assim, querida? Retrucou o curador com espanto.
-Maldo, descobri que nenhum critério oferece uma resposta satisfatória para os seres que nascem com partes de genitais dos dois sexos: testículos, ovário, pênis e vagina combinados das mais diversas formas ou em dimensões incomuns. Alguns cientistas afirmam que não se trata de um drama raro, uma obra exótica da natureza.Eles afirmam que é um drama mais comum que se imagina.
-Entendo, respondeu o amigo.
-Então, é sobre esse...drama que pretendo conduzir minhas experiências em busca de uma nova estética. Uma estética biomolecular! Bradou Aurora.
-Genial!Respondeu Maldonado.
-Ah!Fico feliz com seu entusiasmo. Vou mergulhar nesse projeto agora mesmo. Até o final dessa semana terei alguns resultados práticos, quer dizer, plásticos.
Aliás, como está aquela situação da curadoria da Bienal do Turquestão Oriental?Complementou Aurora Celeste.
-Ótima!Estávamos falando disso na reunião. Estou confirmado, serei um dos curadores da Bienal do Turquestão Oriental. Respondeu Maldonado.
-Geeente!Que maravilha! Eu rezei tanto pra isso!
-Você acha que dá para me indicar com essa nova pesquisa, para bienal do Turquestão? Emendou a artista.
-Claro! Sua proposta se encaixa perfeitamente com a linha que pretendo adotar para aquele evento. Não quero nada convencional que se limite aos paradigmas pós modernos. Quero algo provocador, um laboratório aberto que esmiúce as questões políticas e interaja com a problemática sexual dos homens e mulheres do Oriente, da Ásia e do mundo. Pretendo que essa bienal seja um barril de pólvora no seio do fundamentalismo arcaico. Uma verdadeira revolução nos preconceitos que ainda perduram no ambiente artístico cultural . Essa bienal irá desnudar a hipocrisia em prol de um mundo mais justo.
-Geeente, que maravilha! Vou começar a trabalhar agora mesmo. Um beijo, querido.
-Outro grande pra você, querida. Tchau!
-Tchau!
Clic.