quarta-feira, setembro 29, 2010

O Tempo dos Assassinos








O BARCO BÊBADO

Arthur Rimbaud

Como eu descia pelos rios impassíveis,
senti-me libertar de meus rebocadores.
Tomaram-nos por alvo os índios irascíveis
e pregaram-nos nus aos postes multicores.

Já não me preocupava a carga que eu trazia,
fosse o trigo flamengo ou o algodão inglês.
Quando dos homens se acabou a gritaria,
pelos rios voguei, liberto de uma vez.

Ante o irado ranger das marés, me lancei,
mais surdo que infantis cabeças, no outro inverno,
fugindo! E para trás penínsulas deixei
que jamais viram tão glorioso desgoverno.

A procela abençoou meu despertar marinho,
dancei como cortiça entre vagas e atóis,
que fazem vítimas no eterno redemoinho,
dez noites, sem pensar no olho vão dos faróis.

Doce como a maçã na boca de um menino,
meu lenho se encharcou do verde turbilhão,
que um caos de vômito e de vinho purpurino
lavou, e destroçou meu leme e meu arpão.

E mergulhei então no Poema do Mar,
todo de astros mesclado, e leitoso, a beber
os azuis verdes, onde, a flutuar e a sonhar
um absorto afogado às vezes vai descer;

onde, a tingir de um golpe o azul, à luz safira
dos dias, ritmos arrastados e delírios,
mais fortes que a embriaguez e mais vastos que a lira,
fermentarão do amor os amargos martírios.

Sei os céus a estalar de clarões, sei as trombas,
correntes e monções: e sei o anoitecer,
a exultante manhã qual um povo de pombas,
e vi por vezes o que o homem julgou ver.

Vi o sol-pôr manchado a místicos horrores,
iluminando longas urnas arroxeadas;
como dos mais antigos dramas os atores,
as ondas a rolar à distância, encrespadas.

Sonhei a noite verde entre neves radiosas
dar aos olhos do mar mil beijos hesitantes;
vi a circulação de seivas misteriosas
e o áureo-azul despertar dos fósforos cantantes.


Longos meses segui, tal como vacarias
histéricas, o ardor das ondas contra a areia;
sem suspeitar que os pés brilhantes das Marias
pudesse apaziguar o Oceano que se alteia.

Atingi, sabei vós, Flóridas escondidas,
os olhos da pantera ajuntando às floradas,
com pele humana. E tenso o arco-íris, como bridas,
no horizonte do mar, quais alegres manadas.

Vi fermentar pauis enormes e lameiros,
onde apodrece um Leviatã entre os juncais;
e entre bonanças desabar furiosos aguaceiros,
despencando o longínquo em golfos abismais!

Gelos, argênteos sóis, ondas, céus abrasantes!
Encalhes colossais nos mais fundos negrumes,
onde o piolho come as serpentes gigantes
que tombam da galhada entre negros perfumes.

Desejara mostrar às crianças as douradas
da onda azul, peixes de ouro, esses peixes cantantes
– a espuma toda em flor ninou minhas jornadas
e um inefável vento alou-me por instantes.

Das zonas e do pólo, às vezes, mártir exausto,
o mar, cujo soluço as fugas me adoçava,
dava-me flores de ouro e de sombrio fausto,
e eu, como uma mulher de joelhos, descansava.

Quase ilha, a balançar gritando às minhas bordas

rixas e estrumes de aves de olhos afogueados;
eu ia, enquanto pelas minhas tênues cordas
desciam, recuando, ao sono os afogados.

Eu, barco naufragado entre as marinhas tranças
pelos tufões aos ermos do éter arrojado,
cujo casco ébrio de água os veleiros das Hansas
e os Monitores não teriam resgatado;

livre, a fumar, envolto em brumas violetas,
que perfurava o céu vermelho como um muro,
que traz – confeitos deliciosos aos bons poetas –
liquens do sol e cusparadas do azul-escuro;

prancha louca, a correr entre uma escolta preta
de hipocampos, rajada a estrias resplendentes,
quando julho esboroava a golpes de marreta
do céu ultramarino os funis comburentes;

eu, que tremia, ouvindo a distante agonia
do cio dos Behemots e dos Maelstroms estreitos,
eterno tecelão da azul monotonia,
lamento a Europa dos antigos parapeitos!

Arquipélagos vi do firmamento! e as ilhas
onde em delírio os céus se abrem ao viajor,
é nessas noites que tu dormes e te exilas,
ó milhão de aves de ouro, ó futuro Vigor? –

Mas, não, chorei demais! Magoam-me as auroras.
Todo sol é dolente e amargo todo luar.
O acre amor me fartou de torpores, demoras.
Oh, que meu casco estale! Oh, que eu me lance ao mar!

Se desejo da Europa uma água, é a poça estreita,
negra e fria, onde à luz de uma tarde violeta
um menino agachado, entre tristezas, deita
seu barquinho, a oscilar como uma borboleta.

Imerso em languidez, não posso transcender
o rastro, ó vagas, dos que levam algodões,
nem dos pendões o orgulho e das velas vencer,
nem já nadar sob o olho horrível dos pontões.

(Tradução de Renato Suttana)



sábado, setembro 25, 2010

Segundos de Contemporaneidade




“O próximo segundo será apenas uma vaga recordação de um tempo célere, que distancia
Frederico Nimbus
Último segundo de tempo algum.


Acordar numa linda manhã ensolarada, após uma noite amena e restauradora é uma dádiva sublime. A sugestão de Kant foi muito útil para Timothy.  Ele acordou sem a mais vaga lembrança dos febris, quase histéricos, acontecimentos sociais da noite anterior. Agora, com a mente desperta e renovada, tomava um café forte enquanto rolava sua pagina de e.mail Deletou, sem abrir, as noticias dos jornais, passou batido pelas ofertas dos sites promocionais e clicou sobre a mensagem mais recente de Nimbus, onde leu:
Caro amigo,
Ontem não pudemos conversar como eu gostaria sobre aquele trecho do livro do Allan Bloom – A Cultura Inculta – que tanto te agradou. Conferencias são eventos ansiosos que dificultam minha concentração em  assuntos muito importantes que possam,porventura,desviar meu foco da experiência em curso. O recorte que me enviou é deveras estimulante. Até agora apenas passei os olhos sobre alguns capítulos do livro. Numa resenha que li na semana passada alguém, que agora não recordo o nome, fez um comentário sucinto que me estimulou  mais ainda, a ler a referida obra de Bloom. Em resumo o tal sujeito diz que nesse livro Allan Bloom enfatiza que: “a crise social e política do Ocidente é realmente uma crise intelectual. Desde a falta de objetivos das universidades à falta de conhecimentos dos estudantes, desde os clichês da libertação à substituição da razão pela "criatividade", Bloom mostra como a democracia ocidental acolheu inconscientemente idéias vulgarizadas de niilismo e desespero e  de relativismo disfarçado de tolerância”. Segundo o comentarista, essa obra Bloom é uma extensa análise das correntes intelectuais contemporâneas em voga na atualidade.
Fiquei bem impressionado com as fotos que enviou de suas pinturas mais recentes. Elas nos fazem ver uma plasticidade instigante. Fiquei contente em constatar que os desafios que havia se proposto e as experiências que vinha realizando com um diferente processo pictórico, chegaram ao ponto de efervescência inspirador. Estou curioso para ver pessoalmente as novas obras. Só posso lamentar que as grandes exposições de arte, como a que ontem se inaugurava no pavilhão do museu, estão submetidas ao direcionamento ideológico simplista. Ainda levará um bom tempo para que esses eventos sucumbam de vez. Sabemos  que o modelo de mostrar a arte em Bienais e espetáculos grandiosos afins, não dão mais conta de expor a pluralidade da criação artística de nossos dias. As reedições infindáveis do mesmo modelo apenas denotam  os desígnios dos gestores culturais  diante de uma massa falida irrecuperável. Não é apenas por ignorância, vaidade ou fervor por poder cultural que os gestores se apegam ao modelo. Não podemos desprezar o fato de que essa função é uma frente de comercio que proporciona o acesso fácil aos recursos públicos. É um campo de restrita concorrência. Sabemos o quanto é difícil, mesmo para uma vitima da contemporaneidade circunscrita ao ultimo segundo, aceitar a morte de uma instituição de cultura, ainda que ela seja uma remota réplica passadista. Bloom tem razão ao dizer que: “as idéias vulgarizadas de niilismo e desespero, de relativismo disfarçado de tolerância” é a marca do nosso tempo.
Por falar nele - no TEMPO – envio agora o link que prometi te enviar - Tempo Histórico e Tempo Lógico- do filósofo estruturalista francês de origem alemã  Victor Goldschmidt  http://www.consciencia.org/tempo-historico-e-tempo-logico-na-interpretacao-dos-sistemas-filosoficos-victor-goldschmidt
Nesse ensaio ele faz uma interpretação dos sistemas filosóficos. É bastante interessante a forma que ele apresenta as distintas maneiras de interpretar um sistema. Seja interrogando sua verdade, sua origem; ou as  razões que levam o individuo a  buscar suas causas.

Abraço
Frederico Nimbus




Ao fechar a caixa de mensagens Timothy lembrou que ontem, antes de cair no sono, escreveu algumas anotações no seu moleskine. A curiosidade o fez ler aquilo como uma leitura inédita.
Encontrou isso:
Lembra-te de esquecer
Kant
Na página ao lado viu uns caracteres amontoados desordenadamente que não reconheceu como letra sua.
Mesmo assim leu o que estava escrito:
Três minutos sobre um ringue de boxe, tão rápido para nós na platéia, é infinito para um lutador durante a porrada e a dor. Só um grande poder de esquecimento mantém a mente do boxer desperta e seus reflexos ligados ao gestos do oponente. Esse é o moto que impulsiona seu desejo de permanecer lutando. Esse poder, revigorado nos intervalos, o lembra que precisa se esquecer de si mesmo para retornar ao ringue no próximo assalto. De um round pra outro ele tenta desesperadamente se refazer. Nesses preciosos segundos o poder de esquecimento é sua única esperança. É esse esquecimento da dor e do sofrimento que sempre me encantou na luta de boxe. Lembro da covardia cometida pelos agentes do entretenimento quando colocaram Maguila diante de Holyfield. Imagino o espanto do Maquila quando viu a montanha Holyfield se erguer à sua frente. Se por acaso ele hesitou em ir adiante eu não notei. Acho que naquele segundo ele se esqueceu de tudo. Da mãe, da sua cidade natal e dos amores da sua vida.
Só o esquecimento explica tamanha ousadia. Os contos populares chamam isso de coragem ou bravura. Eu, o ligo ao esquecimento. Repare nos detalhes. Constate você mesmo. Raramente assistirá um boxeador de alta estirpe, ser atingido por uma porrada violenta e tentar automaticamente bloquear com a luva o sangue que jorra do corte. Nós fazemos isso por reflexo. Eles não! Não podem se dar a esse luxo,um descuido sequer,seja no gesto mais natural de estancar o sangue que jorra, será seu fim. Quando a dor em nós se manifesta nossas mãos partem para o local atingido e em frações de segundos, gritamos. O boxeador que cometer essa falha estará derrotado. É por essas e outras que não dou o menor crédito  aos ditos populares ou mesmo para as razões que explicam em detalhes o que jamais foi vivenciado pelo narrador.

quinta-feira, setembro 23, 2010

A Clínica da Razão Pura











-Para clínica da razão pura, por favor.

-Kant Strasse, não é? Perguntou o motorista.
-Sim!Kant Strasse. Respondeu Timothy.
-Tomara que o senhor não esteja com pressa. Hoje é a inauguração da Bienal de Königsberg. Para chegarmos a clinica somos obrigados a passar pela Alameda do Idealismo, contornar o Boulevard do Empirismo e pegar um atalho pelo Beco do Juízo Estético. O trânsito por aquelas bandas está caótico.
-Oh! Meu amigo. Não me fale 
em caos. Por favor!
-Perdão! Não era minha intenção aborrecê-lo.
-Não leve a sério. É apenas uma piada. Acabo de sair de uma conferência no museu que por pouco não me levou à loucura.
-Lamento dizer; uma rádio informou  que o engarrafamento ja alcança cento e dois quilômetros de extensão nas cercanias do pavilhão.
-Fazer o que!Lastimou Timothy ajeitando-se na poltrona a fim de enfrentar o demorado trajeto. Enquanto divagava olhava o mar de carros, luzes e anúncios que cintilavam lá fora e se arrependeu de não ter ido mais cedo para clinica,quando ainda era dia. Nesse embalo mental os fluxos do seu organismo se harmonizaram e sobreveio uma súbita sensação de conforto e bem estar. 

Relaxado, estendeu a mão sobre a poltrona e tocou o envelope cheio de publicações que havia recebido antes da palestra de Carlos Sacci. Não se lembrava de todos os folders, catálogos e livros que lhe haviam dado. Abriu o envelope e consultou o espólio. Num flash, veio-lhe à mente a cena  em que Sacci, puxando-lhe pelo braço, o conduziu a uma mesa onde fez uma dedicatória no livro As Vísceras do Divino de Eunuco Hanus, no qual ele escreveu o prefácio. Na ocasião Timothy simulou ler a dedicatória e agradeceu o presente. O engarrafamento é ocasião ideal para ler. Poderia ser um passatempo divertido, pensou.
Após deslizar suavemente a mão sobre a agradável textura da capa do livro, abriu o luxuoso exemplar e tentou decifrar a caligrafia de Sacci. Na terceira tentativa conseguiu ler o que aqui reproduzo: 
Prezado Timothy 
É com orgulho que lhe dedico o livro do mais importante artista visual da America Latina. Sua obra e ideias descortinam [nesse ponto a caligrafia deu lugar a uma linha sinuosa inelegível para mais adiante tornar-se um pouco mais legível] para o patrimônio artístico da humanidade o qual tive a imensa honra de escrever o modesto prefácio. 
Com toda a admiração de Carlos Sacci. 

Timothy abriu o livro e  foi direto ao prefácio:"O experimentalismo revolucionário" por Carlos Sacci. Uma pequena parte da introdução desse prefacio está transcrita abaixo da ilustração








"A vanguarda contemporânea é justamente aquele campo onde se inventa pelo tesão de inventar. Para dar voz e visibilidade ao campo um especialista da contemporaneidade se cala sobre aquilo que é óbvio e se desdobra em falação sobre o que  desconhece. Graças a esses fatores conjuminados, o impulso transformador da criação artística dos nossos dias atingiu seu apogeu. Um apogeu vital para a liberdade criativa e que se consolidou no correr dos últimos trinta anos. Esse prodigioso advento é o resultado da luta sem tréguas para o desmantelamento da critica fundada em princípios e procedimentos rigorosos. É, convenhamos, uma conquista que deve ser creditada, sobretudo, ao empenho de alguns artistas, curadores e agentes culturais comprometidos com a transformação. 
Tempos atrás, grupos remanescentes do modernismo exerciam uma força negativa contra a arte rebelde e transformadora. Naquela ocasião o desejo de transformação era um sonho inatingível e motivo de angustia e sofrimento para um artista dedicado. Foi um período histórico cruel e opressor. Um tempo em que o homem, cativo da ética, viu-se tolhido por procedimentos seletivos e castradores que achincalhavam  o poder transformador da arte experimentalista. 
Um autor, cheio de ideias originais, senhor de grande talento e poder criativo,era cruelmente vetado em uma editora pelo simples fato de sua escrita não atender as regras gramaticais elementares. Isso ocorria com freqüência porque uma casta de doutos prepotentes e preconceituosos definia quem sabia ou não escrever corretamente. Quantas invenções foram negadas ao mundo por puro preconceito e extremo rigor intelectual. 

Hoje, isso não mais existe. Em que período da historia da cultura um curador de museu escreveria o que escrevo há mais de dois anos nos jornais sem que fosse  vigorosamente contestado ou mesmo insidiosamente  escorraçado  por diversos segmentos culturais e pelas editorias dos jornais ? 
Hoje, isso não mais acontece. 
Segundo as antigas regras eu não seria sequer cogitado para integrar o júri do Salão dos Artistas Mirins do Rotary Club. Todavia, desde o descarte dos grilhões da erudição modernista, assistimos a expansão da liberdade, do pensamento estético e do fazer artístico. 
Não mais existem parâmetros repressores. Os novos paradigmas os substituíram a contento. À medida que um determinado paradigma se esgota outro, mais flexível ainda, o substitui. A esplendorosa flexibilização dos critérios estéticos, éticos e culturais permitiu a universalização da experimentação transformadora. É essa transformação que vem fazendo caber no campo da cultura o que antes não cabia. Mesmo contra o desejo dos reacionários e conservadores o mundo atravessa um período de extraordinária transformação. 
A cultura, ao incorporar as variações oriundas da arte experimental, abre fendas no campo fechado da conhecimento, ampliando e transformando, inexoravelmente, em nova cultura. 
Não pensem que o que disse acima é um enigma. O que afirmo é uma verdade. 
A arte enquanto exercício experimental nos faz ver coisas que antes não conseguíamos ver. 
Jean-Luc Godard dizia  que “a cultura é o âmbito da regra, onde somos moldados a agir e a comportar-nos de determinada maneira, onde aprendemos como nos vestir, comportar, comer, participar e como se relacionar com o outro”. 
Todavia, em contraponto à cultura, a arte experimental é o campo da coesão com as balizas do real, é a esfera que se contrapõe ao espaço da contra cultura a fim de atingir a consagração imediata da cultura dominante. Nesse contexto, ser experimental é evitar confrontos, se imiscuindo e camuflando por entre simulacros do real. Para ser coerente com a única regra experimental o autor deve contestar outras regras, de preferência todas as que não sejam a sua. 
Alguns experimentalistas radicais desprezam, inclusive, eventuais regras do seu próprio processo experimental. 
Nas muitas experiências no campo da curadoria multinacional sempre foquei a arte especificamente experimental. Não tenho nenhum interesse na arte que comenta a política e os conflitos. Muito menos àquela que se aprofunda em questões estéticas e insondáveis ou se mete com mistérios complexos da criação. Essas produções são por demais subversivas, não se adéquam a rótulos e,portanto, não se alinham ao meu conceito. No meu juízo, seus autores são prepotentes e se consideram senhores de grande autonomia intelectual e estética. Por isso se lixam para as regras culturais dominantes. São rebeldes demais para serem somente experimentais como gostaria que fossem. O que me interessa na arte é o efeito imediato que ela produz. Isso é que é dinâmico e transformador. Obras que por força de intensa beleza, apuro ou mistério, despertam no público estímulos amplos demais e demandam introjeção e reflexões aprofundadas são nocivas e não possuem o poder de comunicação social imediata. 
Esse tipo de experimentalismo é arcaico, pois ocorre apenas no âmbito do individuo e repercute sutilmente na sua obra. Não são espetaculares, muito menos midiáticas. Em vista disso, apenas pessoas sensíveis as percebe. 
Sendo,portanto,elitista.
É bom lembrar que a eficiência do experimentalismo objetivo se dá através da intima vinculação às demandas dos meios de comunicação de massa. 
Reconheço que existem graves problemas na arte. Porém, dentro dos limites do conhecimento de uma equipe curatorial  economicamente beneficiada,não existe problema que não tenha solução. Cada curador conhece aquilo que a sua história lhe permite conhecer. Se não conhece coisa alguma também não tem a menor importância, dado que o novo é sempre aquilo que se desconhece. Eu sou brasileiro e acabo por não conhecer tão bem a arte indiana ou da Tailândia, dos Estados Unidos, do Canadá, da França, da Alemanha, da Itália, da Inglaterra, do Cazaquistão ou mesmo do Brasil e suas províncias. Todavia, esse dado é irrelevante porque sempre haverá uma troca de interesses comuns entre curadores das mais remotas regiões do planeta. Estou convencido de que é essa abertura que permite a uma Bienal estar sempre em compasso com o estilo artístico global dominante na ocasião. 
É essa dimensão global que os artistas mais importantes da atualidade perceberam antes dos demais. 
Afinal, mesmo sem ter um profundo conhecimento da historia da arte, qualquer individuo sabe que o experimentalismo é o novo.O novo capitalismo está ai para nos confirmar as velozes transformações por que passamos. Essas transformações ocorrem da decisiva atuação do experimentalismo estético em consonância com a agilidade dos financistas internacionais. Esses dois segmentos recusam se submeter a regras limitadoras da ética, da estética e outros princípios arcaicos de pacto social. São eles que lideram as grandes transformações da vida contemporânea. 
Arte pela arte é coisa do passado. 
O experimentalismo pelo experimentalismo é  transformador. 
O hercúleo desafio de tal proposta exige do artista da vanguarda contemporânea, cônscio de sua função social, uma renúncia radical a tudo que não é experimental. 
Apenas uma intensa convicção ideológica pode manter um artista coerente com a prática do experimentalismo. 
Até mesmo nas suas atitudes mais banais da vida cotidiana, na difusão de suas ideias na imprensa e nos salões refrigerados de uma galeria de arte, o artista experimental sempre terá algo inusitado e contundente a dizer contra a hipocrisia cultural. 
É essa singular convicção que torna inócua e desprezível a inflexível critica dos reacionários. 
Eunuco Hanus, é um exemplo vivo dessa nova vertente da arte. 
Além do enorme talento, Eunuco tem características impares que o diferencia da média dos artistas globais. Ter nascido num país da America Latina não tolheu sua grandiosa ambição. Ele é competente na arte e na sua atuação social. Tem grande conhecimento do percurso que um artista contemporâneo deve trilhar para reforçar sua rede de relacionamento instrucional. Além disso, ele é senhor de uma pontaria infalível no que tange as... estratégias de marketing cultural e visibilidade na imprensa. ...Em suas entrevistas é generoso a ponto de se abrir, sem reservas, a comunicação com o público... Sempre atuou e, no auge da fama,... continua atuando na construção de fortes parcerias que lhe acarretam... incontáveis benefícios... Sua arte e seu pensamento exprimem a totalidade do contemporâneo xcmbp, glgo hlçonmb..."

 

-Senhor, senhor! Acorde, chegamos à clinica. 
-Oh Deus! Obrigado!Eu estava velejando num lindo mar azul. 
Na recepção Timothy foi cordialmente atendido. Antes de se encaminhar aos aposentos do SPA A Fusão da Matéria e Sentido, pegou seu surrado moleskine e anotou a frase escrita embaixo do relógio do saguão: 
Lembra-te de esquecer.
Kant

domingo, setembro 19, 2010

A Possibilidade da Morte na Mente de Alguém Vivo

foto: Ricardo Apparicio

Após a conferência de Frederico Nimbus, Timothy se sentia revitalizado. Pensou duas vezes antes de sacar do bolso do paletó seu inseparável cantil de uísque e sorver uma talagada do precioso liquido como um brinde solitário à inteligência. A palestra de Nimbus foi um bálsamo para seu humor.
Não!Nada disso! Tomarei um bom uísque mais tarde. Afinal, sou o único entre o grupo de amigos a não recorrer ao AA ou terapias para atenuar a dependência etílica. Um alcoólatra consciente deve se esmerar mais que um amador descontrolado. O pensamento bem-sucedido empurrou Timothy até a cafeteria do museu onde sorveu um expresso cremoso. O café despertará meus neurônios preguiçosos e me animará a assistir à segunda palestra da noite que será proferida por Carlos Sacci. Pensando assim, após o café, Timothy vagou pelo saguão do museu absorto em seus pensamentos. Pelo canto do olho vislumbrou os banners promocionais que anunciavam as exposições em curso. Enquanto transitava pelo saguão refletia sobre os problemas enfrentados com a nova técnica que incorporara ao seu repertorio pictórico.
Ao contornar a coluna monumental que divide o salão em dois ambientes ele não viu mais nada. Foi subitamente atacado por um gigantesco banner intitulado The Physical Impossibility of Death in the Mind of Someone Living. Suas habilidades em artes marciais o fez desviar da boca aberta de um tubarão, todavia, o extremo domínio da técnica de leitura dinâmica lancetou sua mente com o aforismo afixado sobre a imagem do mais temido dos predadores marinhos, exposto ao ridículo papel de um bicho débil e inofensivo, afogado em formol e enfiado num enorme aquário. O impacto roubou seus devaneios e despertou sua ira. Tentou escapar pela tangente penetrando por entre as estantes da livraria. A escapada só piorou as coisas. Timothy se viu lançado num mar de tubarões flutuando em formol estampados na capa de centenas de livros que ocupavam todas as vitrines da loja.
-Isso é uma conspiração. A museografia contemporânea é uma cilada contra o individuo. Não há escape. A quietude e a concentração não pertencem mais a esfera do sujeito. Não bastam os espaços públicos, as ruas e parques abarrotados de propaganda, os espaços de arte, templos e instituições se transformaram em becos escuros onde bandoleiros atacam o passante para lhes surrupiar não apenas dinheiro, mas, sua mente. Resmungou.
-Desculpe senhor, sinto dizer que não concordo com sua opinião.
Timothy girou lentamente sobre o calcanhar buscando a dona daquela voz suave que ousou contestar sua intima reflexão. Quer dizer, não tão intima assim. O tom com que a proferiu pôde ser ouvido até pelo caixa do estabelecimento que ficava a uma boa distancia do ponto onde Timothy se encontrava.
Enquanto girava no próprio eixo Timothy escolhia, entre as muitas grosserias, qual a mais abominável para responder aquela voz que ousara se infiltrar em seus devaneios. Ao completar o giro viu-se frente a frente com a beleza plácida de uma moça asiática .Durante alguns segundos de eternidade Timothy teve uma visão de muitos juncos cruzando harmoniosamente o leito do rio Yangtzé. Ouviu o som das águas resistindo ao calado das embarcações e notou as montanhas ao fundo que se assemelhavam a enormes vasos de cerâmica avermelhada afundados na terra e cobertos por exuberante vegetação. Uma deliciosa fragrância floral invadiu seus sentidos. Extasiado pela maravilhosa sensação mal conseguiu balbuciar alguma coisa. Temeu extinguir os efeitos do encantamento:
-Como assim? Perguntou delicadamente Timothy.
-Sou mestranda em museografia. Ao contrário do senhor creio que essa especialidade é um elo de ligação importante entre a arte, o acervo histórico cultural e o público. Além disso, o que seria dos museus se não pudessem projetar impecavelmente uma exposição de arte contemporânea, por exemplo, adequando tonalidade, dimensão e característica técnica dos painéis expositivos, vitrines e outros artefatos de apoio à estética das obras apresentadas. A museografia contemporânea é um saber complementar sem o qual os museus seriam estruturas anacrônicas desvinculadas da contemporaneidade.
-Han! Han! Consentiu Timothy
Seu cérebro ainda estava sobre os efeitos do encantamento. Uma vaga intenção de contestar as palavras da moça não teve eco em sua mente. Qualquer insinuação poderia evaporar a sensação agradável de ouvir o que ela dizia. Não há antagonismo explicito que supere essa experiência. Por um momento ele chegou a conjecturar que a moça falava muito. No entanto, o tom de sua voz,o ritmo de suas palavras e as sutis mudanças de sua expressão facial compensaram sua omissão.
-Desculpe minha ousadia em interpelá-lo. Às vezes me excedo.
-Ora! Não se desculpe. Houve um mal entendido entre meu cérebro e minha fala. Eu poderia jurar que estava apenas resmungando com meus próprios neurônios. Não obstante, eles me traíram de novo. Não é a primeira vez que dão ordens a outros departamentos sem minha prévia permissão.

Ela riu educadamente e em seguida perguntou:
-O senhor veio assistir a palestra de Sacci?
-Não! Quer dizer, não a palestra dele, explicitamente. Vim para assistir a conferência de Frederico Nimbus.
-Já tive oportunidade, em outros eventos, de ouvir o professor Nimbus. Seus pensamentos sobre a contemporaneidade são estimulantes, polêmicos e originais. Nesse seminário apenas me inscrevi para as palestras de curadores latino americanos. Meu objetivo é entender um pouco mais as características locais, pois estou participando de um grupo de trabalho que montará uma grande exposição de arte contemporânea num país da America Latina. O senhor irá assistir a fala de Carlos Sacci?
-Estava me animando para isso até nosso incidente. Respondeu Timothy.
Nesse ínterim, uma voz onipresente, como as que ressoam nos aeroportos para anunciar a partida ou chegada de aeronaves se difundiu no ambiente. A locutora informava que às vinte horas e trinta minutos, no auditório B do setor oeste do New Museum, teria inicio a palestra de Carlos Sacci.
Timothy consultou de relance o relógio notando que passara cinco minutos das dezoito horas.
Essa constatação agregou mais um item para sua seleção.Ainda não havia decidido se assistiria ou não à palestra de Sacci. Agora, um encontro fortuito, acrescentara algo de inesperado ao cardápio de opções.
Como não cortar abruptamente uma sensação encantadora?
Nessa circunstancia é impossível visualizar uma agenda. Especulava Timothy.
-Mudaram o local da palestra. No programa consta que esse seminário seria nos auditórios do núcleo central do museu. Ainda bem que cheguei mais cedo.Pretendia ver algumas exposições em cartaz antes da palestra. Falava a moça enquanto Timothy explorava novas escolhas.
Subitamente, movidos por uma coreografia imaginária, os dois se puseram a caminhar lado a lado abandonando o espaço da livraria e parando diante de um enorme mapa de orientação museográfica. Naquele segundo Timothy percebeu que a medida mais sábia seria não esboçar resistência e se deixar guiar pela jovem. Ela apontava para o gráfico comentando algumas exposições anunciadas no painel. Ele ouvia, balançava a cabeça e seguia com atenção a ponta dos dedos dela que apontavam o trajeto de uma para outra mostra. Na realidade ele concentrou sua atenção nos gestos dela, absorto no itinerário digital. Pouco ou quase nada, entendeu dos comentários que ela fazia sobre cada exposição. Quando deu por si Timothy percebeu que havia escolhido, em comum acordo com ela, ir ver uma exposição intitulada Carne, Tripa & Miúdos na Arte Contemporânea, em cartaz no setor sul, ala D, do Art Kids Museum.Para não se mostrar desinteressado no papo e, muito menos, surpreso com as artes e museus de configuração geracional, Timothy comentou que seu filho de doze anos, hábil navegador na rede virtual, lhe mostrou uma vez o blog Tate Kids que agrega em suas paginas joguinhos cults. Falou dos gadgets Explore e jogue no Jardim de Escultura e cace o tesouro, Bring The Little Dancer to life! E do Get creative. Get painting.Timothy sentiu que esse seria o momento ideal para checar a fluidez da conexão entre os dois. Certo disso mandou seu primeiro comentário personalizado;
-Sabemos como os ingleses amam suas crianças. É uma sociedade sofisticada que incentiva, desde a infância, a inserção nos mais complexos temas da vida social. Afinal, amanhã essas crianças estarão na ponta do consumo. A arte e seus produtos têm que se esmerar em gerar demanda. Pouco importa que as ilações comerciais ou as políticas culturais voltadas para o mercado, tenham se sobreposto à educação artística. O que interessa hoje é que na hora de distribuir seus ganhos em bens de consumo, o cidadão reserve um punhado de dinheiro para as artes.
- Interessante seu ponto de vista. Espere-me um momento! Tenho que comprar algo naquela farmácia.
Os dois estavam nesse momento na interseção da Aléa Matisse com a Aléa Claude Monet, seção divisória entre o Old Museum e o New Museum. Haviam deixado para trás, ao cruzarem a Aléa Joseph Beyus, o Art Revolution Museum.
No atrium da seção onde se encontravam os estabelecimentos reproduziam uma rua parisiense do século XIX. Os restaurantes, farmácias, livrarias, agencias bancarias e de viagens, cafés e etc. eram inspirados nas fachadas de época. Eram cenários que reproduziam quadros famosos do Impressionismo. Os atendentes trajavam réplicas ordinárias das roupas que se usava naquele período histórico.
A fim de se localizar melhor Timothy fixou seu olhar nas frenéticas luzes que piscavam sobre um enorme bichinho gordo e sorridente, estampado com flores, círculos e triângulos coloridos, instalado entre a entrada do Mc Donald’s e o acesso ao Kids Museum. Timothy logo reconheceu a escultura. É o logotipo do museu. Sabia disso porque essa imagem não sai das paginas dos cadernos culturais. Timothy deduziu, então, que estavam muito próximos da Aléa Takashi Murakami.
Nesse ínterim a moça acabara de sair da farmácia Van Gogh. O detalhe curioso dessa loja é o fato de concentrar na praça frontal um grande numero de pessoas apreciando a monumental escultura de uma orelha, feita em carne, pele e sangue sintético, sensível ao toque. Quando um espectador a toca ela emite sons que remetem a dor, angustia e desespero. Ao tocá-la duas vezes o sangue flui por um visor de plasma onde o publico tem acesso a correspondência trocada entre o artista e seu irmão Theo. Narrada ao estilo de noticiário televisivo se transformou num rap de grande sucesso. Essa obra é responsável pela enorme visibilidade de um escultor argentino da vanguarda contemporânea.
-Perdão! Ainda não me apresentei. Eu me chamo Liu Jing. Nasci em Guiyang, capital da província de Guizhou, no sudoeste da China. Moro aqui desde meus seis anos.
-Bem, eu me cha...
-O senhor não precisa se apresentar. O conheço não só de nome, mas, também por suas obras. Além disso, já li inúmeras entrevistas suas. Interrompeu gentilmente Liu Jing.
-Ora, então, nesse contexto, estou em desvantagem. Represento o passado. Uma circunstância temporal que não mais surpreende ou encanta. Disse com gentileza Timothy.
Os dois riram e seguiram caminho em direção ao Kids Museum.
Ao adentrarem o enorme salão se viram diante de um manequim feminino, quase humano, trajando o que seria um vestido de gala, feito com retalhos de carne costuradas por grotescos pontos cirúrgicos. Mais adiante uma enorme instalação reproduzia uma sala de estar em que o mobiliário era todo construído com ossos humanos. As cadeiras eram esqueletos completos, alguns mostrando áreas de mutilação óssea originadas por tiros, machadadas ou golpes de facões. Sobre a mesa dois crânios humanos representavam a hierarquia familiar há muito abolida. Era a instalação preferida das crianças. Elas interagiam com a obra puxando, qual marionete, tendões e nervos dissecados que serviam de cordão manipulador. Mais adiante um grande livro, feito de pele humana e com a capa em couro cabeludo de onde pendiam mechas e tufos de cabelos de diferentes procedências étnicas. O texto, uma miscelânea de recortes do Tora, da Bíblia, do Alcorão,do Tripitaka, do Bardo Thodol, do Tratado dos Direitos Humanos, da Constituição Americana, poesias avulsas, manchetes de jornais,anúncios etc. - era transcrito com sangue humano em letras góticas. Ao lado, numa vitrine, as ferramentas de trabalho que confeccionaram o Último Livro da Vida, titulo da obra. Expostas sobre veludo negro o visitante via as agulhas feitas de osso, os cabelos que costuraram os cadernos e uma costela feminina polida. Acima, no topo da vitrine, uma foto 3D da artista e doadora dos ossos e um texto em que ela explicava seu processo de trabalho. Através desse texto o público ficava sabendo que a artista extirpou sua própria costela, lapidou as extremidades de maneira que se tornassem tão finas quanto a ponta de uma pena. A costela era um simulacro de uma pena de pavão. Pra quem não sabia o que era um pavão a artista empalhou um exemplar e o colocou sobre a vitrine.
Mais adiante, uma performance permanente era considerada pelos visitantes como a obra mais política da exposição. Uma jovem artista estava instalada há três anos no que seria o habitat ideal dos lobos. As arvores, pedras, riacho e plantas eram tão naturalistas que o espectador se sentia compelido a tocar os elementos a fim de comprovar se eram de fato reais ou sintéticos. Enquanto admirava a obra Timothy presenciou uma caça ao coelho. O bicho branco como a neve foi empurrado à força para fora de uma caverna. Paralisado pela cena não sabia para onde correr. Três lobos adultos o perseguiram ferozmente, contudo, a jovem artista o capturou mais rapidamente atraindo o bichinho para uma toca que tinha o sugestivo titulo de Cilada Afetiva. Ali mesmo, na frente de todos, ela o devorou sob os olhares raivosos dos lobos e sobressalto dos espectadores.
Nesse momento de grande êxtase dos espectadores, Liu pegou Timothy pelo braço e os dois se encaminharam para a saída. Andaram em direção as áleas Matisse /Claude Monet até chegarem a praça de degustação Van Gogh. Lá chegando procuraram um lugar no interior do café Lapin Agile e se instalaram confortavelmente.
Ela pediu uma taça de champanhe, ele um uísque.
-Veja só, Liu, exclamou Timothy, meu primeiro estúdio em Paris era muito próximo do Lapin Agile. O original. Claro! Eu morava na Rue de Bachelet e o famoso cabaré é na Rue des Saules, poucas quadras acima, em Montmartre mesmo. Quando lá morei o cabaré era uma referência da boemia artística do modernismo das primeiras décadas do século XX. Portanto, para mim, era uma parte do passado que guardava uma memória que não me pertencia. Melhor dizendo, não pertencia ao meu tempo. Mas,isso não impedia que me encantasse pelas idéias que suscitava. Antes de ter o sugestivo nome de Lapin Agile se chamava Cabaret des Assassins. Não creio ser possível estabelecer um ponto de convergência entre assassinos e coelhos, contudo, o dono do estabelecimento achou, por razões que desconheço, que deveria dar uma chance aos coelhos. Quanto mais ágeis, mais chances teriam,concorda?
-Sim, claro!Balbuciou Liu.
-Pena que o coelhinho da performance não tenha tido essa sorte. Torci por ele, mas, ele perdeu. Não há agilidade que supere a covardia.
- Concordo, disse Liu.
Talvez, querendo retribuir o encanto pelo encontro casual com Liu, que o levou por recantos do museu que nunca teve a mínima vontade de entrar, Timothy deu inicio a uma historia que, para ela, a principio, parecia sem pé nem cabeça e um tanto nostálgica.
-Apollinaire, um dos célebres habitués do Lapin Agile , foi preso sob suspeita de ter roubado a Mona Lisa. Depois de uma semana preso, foi solto. A titulo de performance, piada ou traição, sei lá, Apollinaire resolveu comprometer Picasso em roubo de obras de arte. Os dois eram amigos e frequentadores assíduos do cabaré. O pintor catalão foi levado para interrogatório e também se desvencilhou do problema. Contudo, as fantasias libertarias de Apollinaire quanto a destruição simbólica dos templos sagrados da arte o levaram a divulgar, entre outras provocações, um hipotético incêndio catastrófico no Louvre. Essas coisas chocavam o 'establish' cultural da época e...
Antes que Timothy completasse sua historinha foi interrompido por uma observação de Liu que ele ouviu atentamente.
-Em sua última entrevista ficou claro para mim que você adora falar através de metáforas. Entendo que esse seja um recurso sedutor para os artistas. Em certo sentido ao conduzi-lo a transpor fronteiras que em condições normais não atravessaria, também usei um recurso indireto para substituir a palavra, a idéia ou teoria. Esse trajeto que fizemos exprime a condição atual da arte.Entretanto, confesso que me surpreendi, pois esperava que antes de chegarmos a essa praça de alimentação você já teria esbravejado contra a contemporaneidade e a banalização do sistema da arte. Não, você não fez nada daquilo que eu esperava que fizesse. Seguiu o percurso calado e, ao entrar no Kids Museum, passeou por entre as obras expostas sem manifestar nenhuma objeção. Ao citar Apollinaire e sua rebeldia contra a canonização da arte você toca na ideia central da vanguarda histórica. Em sua ultima entrevista você afirma que a vanguarda contemporânea, que você chama de vanguarda histérica, não propõem a destruição dos templos sacralizados da arte ou busca caminhos inusitados. Ao contrário, os endossa e cristaliza. Para você o que está em jogo é a destruição do imaginário humano. Não posso concordar com isso. Penso que matéria e sentido se fundiram de tal forma na concepção artística contemporânea, que hoje se revelam indissociáveis. A matéria gerou raiz semântica e deu origem a novas linguagens. A compatibilização dos meios de expressão atingiu tal magnitude que resultou na completa extinção das fronteiras da estética e da plasticidade. Procedimentos de apropriação, fusão e equalização, entre sublime e grotesco, deram fim ao que restava de hipocrisia, tanto da ética quanto da estética.
Liu deu uma trégua em sua fala. Um pequeno gole na champanhe e permaneceu por um tempo com a taça tocando o lábio inferior. Olhava fixamente para Timothy como se estivesse a espera de uma resposta que não veio. Então,abaixou o olhar para a mesa no mesmo ritmo em que balbuciou:-"O Sábio não tem conceitos inflexíveis.Adapta-se aos dos outros".Esse aforismo  de Lao Tze  preferido da minha mãe é também o meu.
- Entendo.Disse Timothy.
Após um breve silencio ele continuou:
-Contudo, a parte visível desse amalgama é, sobretudo, a circunstância de que a arte hoje só se concretiza tendo como espelho o real, suas operações técnicas e pragmáticas. É nesse sentido que a condição atual da arte se submete ao real naquilo em que ele anuncia como código dominante. Tal circunstancia é uma forma de submeter a criação a fatores técnicos e objetivos. Todavia, não discordo que esse é o pensamento vencedor. Não sou um idealista. Sei que uma das metas do pensamento vencedor de uma época é consolidar uma estética própria, massiva e dominante. Não me surpreendi com as obras que vimos porque elas são pensadas e feitas para não nos surpreender. Tampouco as desprezei, porque desprezá-las seria uma forma pueril de contestar o real. Elas são a afirmação estética de uma face do real previsível e prontamente assimilável . Não sou um adepto das citações.Em geral são sequestros cults do pensamento alheio. Na maioria das vezes só servem para polir as conversas de salão ou engomar com erudição medíocres textos de arte. Henry Miller é um artista que não se presta a esse tipo de uso. Em Sexus ha um trecho que jamais esqueci: Há uma elasticidade cósmica, se assim lhe posso chamar, que é extremamente enganadora. Dá ao homem a ilusão temporária de que é capaz de mudar as coisas. Mas o homem acaba sempre por tornar a cair em si. É aí, na sua própria natureza, que pode e deve praticar-se a transmutação, e em nenhum outro lugar.
Nesse momento a voz onipresente retornou aos alto falantes para informar que a palestra de Carlos Sacci teria inicio em dez minutos.
Ao se encaminharem para o auditório Timothy se despediu de Liu Jing dizendo:
-Liu significa fluir. Jing quietude. Liu Jing, foi um prazer conhecê-la.