terça-feira, março 04, 2008

A Teimosia do Efêmero


Adriano de Aquino
novembro de 2007
A arte era o espírito materializado, o material na arte era o meio para alcançar a extremidade espiritual.Donald Kuspit
Hoje é difícil encontrar alguém que defenda a idéia de que a arte deve ter, antes de tudo, compromisso com a inovação, com o meio sócio cultural ou qualquer outro fator que lhe empreste significado. Para muitas pessoas o choque do novo em arte foi definitivamente esgotado nos anos sessenta, mesmo antes. O discurso e atitudes da vanguarda contribuíram para esvaziar essa idéia. Contudo, os formatos expositivos que presenciamos parecem afirmar que a “idéia do novo” permanece como uma regra geral. Personagens irmanados com essa proposição desfrutam de maior prestigio que os artistas que deram corpo a complexos processos criativos no alto modernismo. Alguns acreditam que o gradual desprezo pela critica foi um fator preponderante para consolidação do atual sistema de arte. Outros afirmam que um curador, especializado ou não, se tornou mais importante do que os críticos. Será que a atividade curatorial é mais branda e flexível na intermediação entre os fazeres e saberes da arte contemporânea e o publico? Essas questões se desdobram em alguns itens: o que credencia a produção artística contemporânea - as instituições culturais e seus agentes, os comentaristas da grande imprensa, o promoter, o mercado?
As sucessivas e velozes substituições de conceitos e estilos anunciam que algo “novo” está entre nós. Apenas anunciam, porém, não revelam de fato um literal abandono dos paradigmas anteriores, especialmente quando enaltecem tendências estéticas, preço e valor das obras de arte reeditando as velhas formas do bom negocio que, endossado pelas teses de um grupo de notáveis, estimulam alguns artistas a aderirem, mesmo de forma involuntária, a lógica cultural hoje dominante. O público, soterrado pela avalanche de modos e conceitos, acaba por considera-los banais. Não é raro vermos visitantes em grandes exposições atravessarem uma proposta estética e penetrarem outras absorvendo os diferentes estímulos, alheios a qualquer juízo de valor. A propósito, essa característica marcante de consumo de bens culturais na pós-modernidade nos reporta a uma citação de Nietzsche.:...juízos, juízos de valor sobre a vida, a favor ou contra, nunca podem ser, em ultima instancia, verdadeiros: não possuem outro valor senão o de sintomas -em si tais juízos são imbecilidades.
A crescente pressão da concorrência generalizada e a flexibilização dos mecanismos da nova economia vêm se apoderando de todas as categorias de produção. A ciência e as artes não ficaram de fora. O artista que se pretende livre precisa dobrar seu esforço para não ser abruptamente engolido. Se no âmbito mais amplo da sociedade essa mudança provocou grande impacto, no ambiente artístico cultural ela foi contundente. Hoje, a constante visibilidade de um artista na mídia, sua participação em eventos realizados por um pool de galerias, em instituições publicas e privadas, segue as mesmas estratégias de estimulo do mundo da competição.
A descentralização da economia, que a tornou mais poderosa, e os novos meios tecnológicos que trouxeram maior mobilidade para a comunicação são os principais vetores das mudanças pelas quais passamos. A arte e as coisas do “espírito” foram para planos secundários. Para os adeptos das mudanças atuais não há o que criticar, pelo contrário, eles comemoram os avanços e as conquistas do novo tempo. Para eles a superfície da pós-modernidade reflete prosperidade.Contudo, os benefícios alardeados não conseguem ofuscar o fato de que vivemos um tempo da supremacia dos meios sobre os fins. O culto à celebridade e ao consumismo não é mais uma característica especifica de uma classe social mais pobre ou menos culta. Ele se alastrou por todas as camadas sociais. Um bom exemplo vem na citação de Donald Kuspit- professor de Historia e Filosofia da Arte na Universidade de Michigan e Ph.D. de Phil.D. Universidade de Frankfurt. : Deitch e Mera Rubells se instalaram recentemente entre os membros da associação de arte de uma faculdade ao lado de Jerry Saltz e Peter Plagens, dois críticos de arte. Isso confirma o que o dinheiro pode fazer sobre o exame critico da arte. Deitch e o Rubells nunca perdem, os críticos de arte são os perdedores intelectuais (a profissão declinou desde os dias de Greenberg e de Ruskin). É o dinheiro do novo rico que encontra um novo sentido na arte velha e um sentido velho na arte nova, com suas perversas introspecções e profundo desconhecimento crítico.
Contestar ou criticar os eventos do mundo sobre qualquer aspecto tornou-se hoje uma fala sem interlocução e uma forma de pessimismo.É mais conveniente enfrentar o mundo real com otimismo e esperança.Os miseráveis não têm outro remédio a não ser a esperança,como disse Shakespeare.
Para Luc Ferry,os ataques aos “ídolos”, base do pensamento desconstrucionista -um caminho aberto por Nietzsche, Marx e Freud - findou por sacralizar a idéia de mundo tal qual é. O prolongamento indefinido (dessa corrente de pensamento) dificulta pensar por meio de novos investimentos, não “como antes”, mas ao contrario, depois e à luz da desconstrução. Ainda segundo Ferry (...) não podemos atuar continuamente nos dois campos: defender com Nietzsche o “amor fati”, por amor ao presente tal como ele é, pela morte feliz dos “ ideais superiores” e , ao mesmo tempo, chorar lagrimas de crocodilo pelo desaparecimento das utopias e pela dureza do capitalismo triunfante. Para ele os milhares de fieis seguidores dos três notáveis personagens deram continuidade ao desconstrucionismo que ainda exerce grande poder no pensamento atual e nas mais surpreendentes formas conciliatórias que hoje vemos.Nos domínios reservados dos diretores e curadores das grandes mostras publicas e de alguns militantes da critica de arte as coisas, guardando as devidas proporções, não se diferenciam muito. Sugiro que comecemos dando uma olhada rápida no calendário das correntes estéticas do século XX. A descontinuidade de estilos pode esclarecer muita coisa. A pop art que surgiu na Inglaterra de meados dos anos 50 realizou todo o seu potencial na Nova York dos anos 60. O expressionismo abstrato dominou as décadas de 1940 e 1950. O minimalismo desenvolveu-se durante os anos 50/60 etc...Essas tendências que descortinaram novas experiências se atacavam reciprocamente e criticavam, uníssonas, o regime estético do modernismo. Entretanto, suas referencias eram o próprio modernismo.Respirava-se, nesses períodos, o ar renovado das mudanças. É, portanto, no mínimo curioso que a produção artística oriunda do final dos 90, que se autodenomina plural e transitória, desvinculada de regimes ou sistemas se apegue tão longamente ao formato das instalações sob alegação de ser esse o meio mais “condizente” de se fazer arte no presente. É fato incontestável que a fascinação pelos feitos transitórios se reflete em eventos e objetos igualmente efêmeros, comuns a vários artistas e celebridades que transitam no ambiente artístico. Porém, isso é apenas uma pequena parte do problema. Relevante de fato é a teimosia e a conivência dos curadores com um modelo mundial de arte que já dura cerca de vinte anos, ou seja, se mantém bem acima da média de vida das mais importantes atitudes artísticas do século XX. A insistência em não admitir o esgotamento das suas propostas e a passividade critica sobre esse fato está levando grande parte da produção contemporânea a procedimentos quase mecânicos e a ostensiva banalidade. Por sua vez as instituições culturais que a abriga se tornaram circo de atrações requentadas. Uma onda de cultura mundialista arrebatou as mentalidades que se refugiam na mesma pratica, consolidando uma escola de duração indefinida.
Sou contra as opiniões que enxergam apenas no passado os mais altos valores artísticos.Alguns artistas da atualidade são criadores de admirável talento.Suas obras transcendem os meios que usam para se expressar.São raros, é fato, mas existem.Todavia, constatamos que as “novidades” artísticas na maior parte das vezes se restringem apenas a idéias sem corpo, sem mistério e sem alma. Amigos me perguntam: Mas não foi sempre assim?
Prefiro deixar essa questão sem resposta, pois, para mim, somente uma critica aguda advinda dos próprios artistas seria capaz de perfurar as camadas de interesses e apatia que mantem a produção artística contemporânea em cativeiro. A partir daí seria possível ver brotar experiências estéticas recalcadas por um modelo perverso e estagnador.
Para o artista que preza o valor intrínseco de sua obra e deseja preservar uma certa autonomia, o atual momento impõe uma árdua tarefa. A começar assegurando que sua produção seja menos exposta às pressões, demandas e estímulos externos, não se tornar um vassalo das agendas promocionais, um convertido convicto dos fundamentos imediatistas e um submisso aos meios em voga e, ainda assim, sobreviver.
A pergunta que se coloca é: vivemos uma época de liberdade ou estamos imersos em uma superfície reluzente, em lugar nenhum, onde o “novo” é apenas slogan para uma vitrine de produtos artísticos ou dos mais novos equipamentos de tecnologia de ponta?
Os que hoje acreditam na transgressão ou no exotismo recondicionado por uma nova onda estética podem se fascinar apenas pelos reflexos da arte. Nesse contexto a liberdade criativa é apenas um item, ou se preferir, um acessório, agregado à estética contemporânea.
As muitas estratégias de um mercado de arte ávido por êxitos financeiros e uma certa negligencia em contestar os novos ícones produziram um curioso paradoxo: uma gigantesca quantidade de objetos, coisas e gestos surgem a cada estação, suprem a demanda pautada pelas agendas institucionais e por um reduzido numero de consumidores e, rapidamente, desaparecem. Obras notáveis são trocadas de dono por preços mirabolantes e, apenas por esse motivo, ocupam as paginas dos jornais. Seu verdadeiro valor, suas qualidades intrínsecas pouco interessam. Sob essa ótica o mundo artístico ficou mais miserável. Uma miséria em tudo diferente daquela produzida pelo abandono, pela falta de cuidados e pela escassez de alimentos que matam as pessoas de fome. Nesse ambiente proliferam os produtos e a fome é apenas uma sensação passageira. Tal miséria resulta da proliferação dos poderes de intermediação sobre os objetos, coisas e gestos estéticos que manipulados por interesses difusos induzem o espectador ao esgotamento e restringem a experiência com a arte.