sábado, setembro 20, 2008

Forma Magnética Transitória


Luiz Eduardo Meira de Vasconcellos

As obras aqui expostas pertencem à série Formas magnéticas transitórias, surgida em 2007. Feitas sobre chapas de ferro e aço carbono, recriam-se pela aposição de mantas, acetatos e acrílicos magnetizados, cujos deslocamentos possíveis traduzem modos pelos quais a pintura se define ao longo do tempo; por intermédio do artista ou do público, chega-se a situações em que o movimento, tanto das formas quanto das cores, deixa de ser exclusivamente interno a cada uma delas, pois o que se oculta ou se revela do que foi pintado sobre o suporte depende seja de uma participação manual que contrasta com a perenidade característica das manifestações da arte, seja do ambiente e, sobretudo, da luz.
Os recentes recursos pictóricos utilizados pelo artista não se limitam à atualização tecnológica advinda do uso de pigmentos e substratos de alta tecnologia, como o poliuretano urethane e o poliéster, e de objetos corriqueiros amplamente disseminados por uma cultura consumista, impregnada de sinais e informações – as mantas, antes de seu revestimento ou da intervenção pictórica, são como ímãs de geladeira. Esses recursos cumprem uma dupla função. A primeira decorre da pesquisa e da experiência prévias do artista, mesmo que possa refazê-las; embora quebre a solenidade de hábito associada a pincéis e telas de linho, reabilita o poder de encantamento da própria pintura. A segunda não se furta ao diálogo formal com novas possibilidades materiais, em que a voz do público e, por extensão, da crítica tem papel decisivo.
À direita deste texto, há uma placa de aço carbono e uma manta, a única que, no contexto desta exposição, pode ser manuseada. Elas têm o objetivo de oferecer ao público a possibilidade de apreender a resistência do magnetismo aplicado como meio de criação ou propriedade da atração que informa, isto é, que impõe formas ao mundo material. Na galeria, duas outras escolhas merecem algumas palavras. O painel móvel em forma de cruz, elemento recorrente no trabalho de Adriano de Aquino, muda de local a cada semana da exposição. Sua construção derivou de algo vivido na primeira apresentação pública desta série de obras, em que algumas pessoas, ao serem informadas de que as mantas podiam ser deslocadas sobre os suportes, quiseram mudar também as próprias obras de lugar. A mobilidade das pinturas que estão nesse painel busca, portanto, investigar se elas, em diferentes lugares, mantêm-se de pé junto às demais. No fundo da sala, por sua vez, há um trabalho inédito realizado digitalmente com laser, que simula a varredura de luz feita por scanners e visa indicar peculiaridades que decorrem da propriedade reflexiva do aço carbono e, por extensão, da pintura. Ao passar por esse trabalho, você poderá não só ver sua silueta projetada na placa de aço escovado e experimentar como a incidência da luz altera a percepção da cor de acordo com o ponto de vista, como também se sensibilizar para a linha divisória que separa duas formas pictóricas.

Nas obras iniciais da série, ainda se vê na pintura o gesto, ou seja, o trajeto do pincel e a caligrafia do artista, dos quais se conseguem intuir a sucessão temporal e o ritmo da memória. Nas mais recentes, contudo, conforma-se um embaraço, nos sentidos de obstáculo e gestação, que se pode esboçar nos seguintes termos. Ao passo que nas obras da série imediatamente anterior a esta, chamada de Divisões internas, via-se uma pintura que não queria ser logo vista e que intentava manter seus contornos permanentemente indefinidos, nota-se nas obras da segunda forma pictórica em jogo nesta mostra uma pintura que se constrói como contrapintura e só se apreende como uma sorte de decantação projetada pela suspensão do tempo próprio à ação pictórica. Em outros termos, uma pintura que, ao subtrair o gesto, tende a se dar apenas no presente e nos objetos vistos, ausentando-se do sujeito que olha. Mais do que transformar o mundo em algo pintado ou interpretar o real, tornando visível o que não se vê (a ilusão do olhar), ela faz o real ver, isto é, busca dar vez à luz que emana da própria matéria – aqui, o aço carbono, o poliuretano e o poliéster – e se põe a conversar com o mundo em que é encontrada (o olhar da própria ilusão).
Numa época em que se insiste em falar do sujeito tornado objeto, pouco ou muito afeito à reprodução desgovernada do capital, insinuam-se nessa contrapintura objetos tornados sujeitos, a um só tempo presentemente indeterminados e expostos aos permanentes embates sociais a que nos entregamos. Em face dela, a tarefa de peso não é esmiuçar a subjetividade politicamente transformada pela arte, e sim levar para fora de nós mesmos a criação reiterada de modos éticos e estéticos dos objetos virem à luz pelo emprego de nossas escolhas.

Transitory Magnetic Form




The works exhibited here belong to the series Formas magnéticas transitórias [Transitory magnetic forms] which came out in 2007. Made on iron and carbon steel plates, they recreate themselves by the placement of magnetic sheets, acetates, and acrylics, the displacements of which translate modes by which painting defines itself throughout time; by means of the artist or of the public, one reaches situations in which the movement, both of forms and of colors, ceases to be exclusively internal to each of these, as what is hidden or what is revealed from what has been painted on the support depends either on a manual participation contrasting with the characteristic perenniality of art manifestations, or on the environment, especially on the light.
The recent pictorial resources used by the artist are not limited to technological update stemming from the use of high-technology pigments and substrates, such as urethane polyurethane and polyester, and of commonplace objects widely disseminated by a consumer culture, impregnated with signs and information – the sheets, prior to their coating or to pictorial intervention are like fridge magnets. These resources bear a double function. The first stems from the artist's previous research and experience, even if these can be redone; despite breaking the solemnity of habit associated to brushes and linen canvas, it rehabilitates the power of enchantment of the painting itself. The second does not shy away from formal dialogue with new material possibilities, in which the public’s, and, by extension, the critics’ voices bear a decisive role.
There is, at the entrance hall, a carbon steel plate and a magnetic sheet, the only one which, in the context of this exposition, can be handled. These aim to provide the public with the chance to apprehend the resistance of magnetism applied as a means of creation or property of attraction which informs, that is which imposes forms to the material world. Inside the gallery, two other choices deserve that some words be said. The cross-shaped moveable panel, a recurring element in the work of Adriano de Aquino, changes place at every week of the exposition. Its construction has derived from something experienced in the first public show of this series of works, at which some persons, upon being told that the sheets could be displaced on their supports, wanted to change the place of the works of art as well. The mobility of the paintings which are on this panel strives, therefore, to investigate whether they, in different places, stand their own before the others. At the bottom of the room, in turn, there is a hitherto-unseen work, digitally done, which simulates a light sweep by scanners, and which aims to indicate peculiarities deriving from the reflective properties of carbon steel and, by extension, of the painting. When passing by this work, one can not only see his/her own silhouette projected upon the ground steel plate, and experience who the light incidence angle alters the perception of color according to the viewpoint, but also be made aware of the dividing line separating the two pictorial forms.
One can still see in the painting, in the first works of the series, the gesture, the stroke of the brush, and the artist’s calligraphy, from which one is able to imply the time succession and the rhythm of memory. In the most recent works, however, an embarrassment is conformed in a sense of obstacle and gestation, which may be drawn up in the following terms: whereas in the works of the series immediately prior to this, named Divisões internas [Internal Divisions], one saw painting that did not wish to be promptly seen, and which intended to keep permanently-indefinite contours, one notices in the works of the second pictorial form at play, painting which builds itself as counterpainting and which is only assimilated as a sort of decanting projected by the suspensions of the time proper to pictorial action. In other terms, painting which, by subtracting the gesture, tends to lend itself only in the present and in the objects seen stepping away from the on-looking subject. Even more than changing the world into something painted or to interpret that which is real, rendering visible that which is not visible (the illusion of the gaze), it causes what is real to see, that is, strives to make room for the light cast forth from the matter itself – here, carbon steel, polyurethane, and polyester – and sets out to converse with the world in which it is found (the gaze of illusion itself).
At a time in which one insists on talking about the subject rendered as object, little or quite enthralled with unruly capital reproduction, objects made into subjects slip into this counterpainting both presently undetermined and exposed to the permanent social struggles which one lends oneself to. Hence, the most critical task is not to detail subjectivity, politically changed by art, but take to the outside of our own selves the reiterated creation of ethical and aesthetical modes for objects to come to light by our use of choices.


terça-feira, março 04, 2008

A Teimosia do Efêmero


Adriano de Aquino
novembro de 2007
A arte era o espírito materializado, o material na arte era o meio para alcançar a extremidade espiritual.Donald Kuspit
Hoje é difícil encontrar alguém que defenda a idéia de que a arte deve ter, antes de tudo, compromisso com a inovação, com o meio sócio cultural ou qualquer outro fator que lhe empreste significado. Para muitas pessoas o choque do novo em arte foi definitivamente esgotado nos anos sessenta, mesmo antes. O discurso e atitudes da vanguarda contribuíram para esvaziar essa idéia. Contudo, os formatos expositivos que presenciamos parecem afirmar que a “idéia do novo” permanece como uma regra geral. Personagens irmanados com essa proposição desfrutam de maior prestigio que os artistas que deram corpo a complexos processos criativos no alto modernismo. Alguns acreditam que o gradual desprezo pela critica foi um fator preponderante para consolidação do atual sistema de arte. Outros afirmam que um curador, especializado ou não, se tornou mais importante do que os críticos. Será que a atividade curatorial é mais branda e flexível na intermediação entre os fazeres e saberes da arte contemporânea e o publico? Essas questões se desdobram em alguns itens: o que credencia a produção artística contemporânea - as instituições culturais e seus agentes, os comentaristas da grande imprensa, o promoter, o mercado?
As sucessivas e velozes substituições de conceitos e estilos anunciam que algo “novo” está entre nós. Apenas anunciam, porém, não revelam de fato um literal abandono dos paradigmas anteriores, especialmente quando enaltecem tendências estéticas, preço e valor das obras de arte reeditando as velhas formas do bom negocio que, endossado pelas teses de um grupo de notáveis, estimulam alguns artistas a aderirem, mesmo de forma involuntária, a lógica cultural hoje dominante. O público, soterrado pela avalanche de modos e conceitos, acaba por considera-los banais. Não é raro vermos visitantes em grandes exposições atravessarem uma proposta estética e penetrarem outras absorvendo os diferentes estímulos, alheios a qualquer juízo de valor. A propósito, essa característica marcante de consumo de bens culturais na pós-modernidade nos reporta a uma citação de Nietzsche.:...juízos, juízos de valor sobre a vida, a favor ou contra, nunca podem ser, em ultima instancia, verdadeiros: não possuem outro valor senão o de sintomas -em si tais juízos são imbecilidades.
A crescente pressão da concorrência generalizada e a flexibilização dos mecanismos da nova economia vêm se apoderando de todas as categorias de produção. A ciência e as artes não ficaram de fora. O artista que se pretende livre precisa dobrar seu esforço para não ser abruptamente engolido. Se no âmbito mais amplo da sociedade essa mudança provocou grande impacto, no ambiente artístico cultural ela foi contundente. Hoje, a constante visibilidade de um artista na mídia, sua participação em eventos realizados por um pool de galerias, em instituições publicas e privadas, segue as mesmas estratégias de estimulo do mundo da competição.
A descentralização da economia, que a tornou mais poderosa, e os novos meios tecnológicos que trouxeram maior mobilidade para a comunicação são os principais vetores das mudanças pelas quais passamos. A arte e as coisas do “espírito” foram para planos secundários. Para os adeptos das mudanças atuais não há o que criticar, pelo contrário, eles comemoram os avanços e as conquistas do novo tempo. Para eles a superfície da pós-modernidade reflete prosperidade.Contudo, os benefícios alardeados não conseguem ofuscar o fato de que vivemos um tempo da supremacia dos meios sobre os fins. O culto à celebridade e ao consumismo não é mais uma característica especifica de uma classe social mais pobre ou menos culta. Ele se alastrou por todas as camadas sociais. Um bom exemplo vem na citação de Donald Kuspit- professor de Historia e Filosofia da Arte na Universidade de Michigan e Ph.D. de Phil.D. Universidade de Frankfurt. : Deitch e Mera Rubells se instalaram recentemente entre os membros da associação de arte de uma faculdade ao lado de Jerry Saltz e Peter Plagens, dois críticos de arte. Isso confirma o que o dinheiro pode fazer sobre o exame critico da arte. Deitch e o Rubells nunca perdem, os críticos de arte são os perdedores intelectuais (a profissão declinou desde os dias de Greenberg e de Ruskin). É o dinheiro do novo rico que encontra um novo sentido na arte velha e um sentido velho na arte nova, com suas perversas introspecções e profundo desconhecimento crítico.
Contestar ou criticar os eventos do mundo sobre qualquer aspecto tornou-se hoje uma fala sem interlocução e uma forma de pessimismo.É mais conveniente enfrentar o mundo real com otimismo e esperança.Os miseráveis não têm outro remédio a não ser a esperança,como disse Shakespeare.
Para Luc Ferry,os ataques aos “ídolos”, base do pensamento desconstrucionista -um caminho aberto por Nietzsche, Marx e Freud - findou por sacralizar a idéia de mundo tal qual é. O prolongamento indefinido (dessa corrente de pensamento) dificulta pensar por meio de novos investimentos, não “como antes”, mas ao contrario, depois e à luz da desconstrução. Ainda segundo Ferry (...) não podemos atuar continuamente nos dois campos: defender com Nietzsche o “amor fati”, por amor ao presente tal como ele é, pela morte feliz dos “ ideais superiores” e , ao mesmo tempo, chorar lagrimas de crocodilo pelo desaparecimento das utopias e pela dureza do capitalismo triunfante. Para ele os milhares de fieis seguidores dos três notáveis personagens deram continuidade ao desconstrucionismo que ainda exerce grande poder no pensamento atual e nas mais surpreendentes formas conciliatórias que hoje vemos.Nos domínios reservados dos diretores e curadores das grandes mostras publicas e de alguns militantes da critica de arte as coisas, guardando as devidas proporções, não se diferenciam muito. Sugiro que comecemos dando uma olhada rápida no calendário das correntes estéticas do século XX. A descontinuidade de estilos pode esclarecer muita coisa. A pop art que surgiu na Inglaterra de meados dos anos 50 realizou todo o seu potencial na Nova York dos anos 60. O expressionismo abstrato dominou as décadas de 1940 e 1950. O minimalismo desenvolveu-se durante os anos 50/60 etc...Essas tendências que descortinaram novas experiências se atacavam reciprocamente e criticavam, uníssonas, o regime estético do modernismo. Entretanto, suas referencias eram o próprio modernismo.Respirava-se, nesses períodos, o ar renovado das mudanças. É, portanto, no mínimo curioso que a produção artística oriunda do final dos 90, que se autodenomina plural e transitória, desvinculada de regimes ou sistemas se apegue tão longamente ao formato das instalações sob alegação de ser esse o meio mais “condizente” de se fazer arte no presente. É fato incontestável que a fascinação pelos feitos transitórios se reflete em eventos e objetos igualmente efêmeros, comuns a vários artistas e celebridades que transitam no ambiente artístico. Porém, isso é apenas uma pequena parte do problema. Relevante de fato é a teimosia e a conivência dos curadores com um modelo mundial de arte que já dura cerca de vinte anos, ou seja, se mantém bem acima da média de vida das mais importantes atitudes artísticas do século XX. A insistência em não admitir o esgotamento das suas propostas e a passividade critica sobre esse fato está levando grande parte da produção contemporânea a procedimentos quase mecânicos e a ostensiva banalidade. Por sua vez as instituições culturais que a abriga se tornaram circo de atrações requentadas. Uma onda de cultura mundialista arrebatou as mentalidades que se refugiam na mesma pratica, consolidando uma escola de duração indefinida.
Sou contra as opiniões que enxergam apenas no passado os mais altos valores artísticos.Alguns artistas da atualidade são criadores de admirável talento.Suas obras transcendem os meios que usam para se expressar.São raros, é fato, mas existem.Todavia, constatamos que as “novidades” artísticas na maior parte das vezes se restringem apenas a idéias sem corpo, sem mistério e sem alma. Amigos me perguntam: Mas não foi sempre assim?
Prefiro deixar essa questão sem resposta, pois, para mim, somente uma critica aguda advinda dos próprios artistas seria capaz de perfurar as camadas de interesses e apatia que mantem a produção artística contemporânea em cativeiro. A partir daí seria possível ver brotar experiências estéticas recalcadas por um modelo perverso e estagnador.
Para o artista que preza o valor intrínseco de sua obra e deseja preservar uma certa autonomia, o atual momento impõe uma árdua tarefa. A começar assegurando que sua produção seja menos exposta às pressões, demandas e estímulos externos, não se tornar um vassalo das agendas promocionais, um convertido convicto dos fundamentos imediatistas e um submisso aos meios em voga e, ainda assim, sobreviver.
A pergunta que se coloca é: vivemos uma época de liberdade ou estamos imersos em uma superfície reluzente, em lugar nenhum, onde o “novo” é apenas slogan para uma vitrine de produtos artísticos ou dos mais novos equipamentos de tecnologia de ponta?
Os que hoje acreditam na transgressão ou no exotismo recondicionado por uma nova onda estética podem se fascinar apenas pelos reflexos da arte. Nesse contexto a liberdade criativa é apenas um item, ou se preferir, um acessório, agregado à estética contemporânea.
As muitas estratégias de um mercado de arte ávido por êxitos financeiros e uma certa negligencia em contestar os novos ícones produziram um curioso paradoxo: uma gigantesca quantidade de objetos, coisas e gestos surgem a cada estação, suprem a demanda pautada pelas agendas institucionais e por um reduzido numero de consumidores e, rapidamente, desaparecem. Obras notáveis são trocadas de dono por preços mirabolantes e, apenas por esse motivo, ocupam as paginas dos jornais. Seu verdadeiro valor, suas qualidades intrínsecas pouco interessam. Sob essa ótica o mundo artístico ficou mais miserável. Uma miséria em tudo diferente daquela produzida pelo abandono, pela falta de cuidados e pela escassez de alimentos que matam as pessoas de fome. Nesse ambiente proliferam os produtos e a fome é apenas uma sensação passageira. Tal miséria resulta da proliferação dos poderes de intermediação sobre os objetos, coisas e gestos estéticos que manipulados por interesses difusos induzem o espectador ao esgotamento e restringem a experiência com a arte.

quarta-feira, fevereiro 06, 2008

Adeus,guri



Jacob Klintowitz
São Paulo 2002

Provavelmente Rubens Gerchman é o único brasileiro dotado da graça da ubiqüidade.Tenho informações seguras de que na área artística somente ele é capaz de estar em dois lugares ao mesmo tempo. É comum o relato de pessoas que tem certeza de que Gerchman não necessita dormir e não o faz há exatos 40 anos, o seu tempo de pintor. Mas eu penso que isto já está no terreno da invenção, dessas verdades que no nosso país se aceitam sem qualquer prova. Aqui, adoramos mitificar. Dormir ele dorme, mas não se sabe se, à semelhança do personagem de Nélson Rodrigues, em “Sete Gatinhos”, com um olho só. Um dorme, o outro permanece acordado.
Nos últimos tempos ele foi visto, não se sabe se ao mesmo tempo, no Museu de Arte Contemporânea de Niterói, numa excelente retrospectiva (já?) de sua obra. Na galeria carioca de Jean Boghici, onde mostrou a sua criação de jóias. Na loja Forma, em São Paulo, onde pinturas suas em inesperados ocres dialogavam com a bela arquitetura de Paulo Mendes da Rocha. No Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, na sua mostra “Fumaça”, caixas pictóricas feitas a partir das caixas de charuto. No Museu de Arte de São Paulo no qual a sua pintura tratava do futebol. Numa galeria na av. Colômbia e numa loja de arranjos florais, que também promove arte, noutro bairro de São Paulo (neste caso houve ubiqüidade, sim senhor)
Rubens Gerchman é o cronista da vida carioca, o artista que registrou, interpretou e deu a sua versão, muitas vezes definitiva, do percurso emocional e psicológico da cidade mais artística do país, antiga capital da república e, até hoje, o centro de vida popular mais expressiva. Rubens Gerchman é um dos introdutores da linguagem pop no Brasil e um dinâmico agitador e questionador cultural, recuperando valores populares e abrindo a linguagem da arte a um público mais amplo.
Gerchman sempre pareceu gostar de ser o rei do mau gosto, título de um pequeno livro sobre ele editado pela Funarte. Isto se deve ao sadio desafio da juventude ao bom gosto burguês e ao fato do artista procurar os seus temas na vida popular, no cotidiano, o que dá margem a muitos equívocos. As coisas não são o que aparentam. Ou são. Oscar Wilde disse que só as pessoas superficiais não se deixam levar pelas primeiras impressões. Gerchman é um pantagruélico devorador do substrato carioca. Daí esta história de caixas de morar, do futebol, dos corpos na areia da praia, das bicicletas, dos personagens populares. E, em especial, sejamos francos, a “Lou”, uma assassina suburbana que foi transformada numa espécie de enigmática Mona Lisa brasileira.
Na verdade, Gerchman descobre, organiza e fixa a vida brasileira. O seu assunto é recolhido no universo anônimo, popular, nos jornais de crime, na vida diária. Gerchman mostra o que ocorre no banco de trás dos carros, numa noite perdida, diante da escura paisagem marítima. Ou nos pequenos apartamentos do Catete. E, também, nos estádios, na orla marítima, nos parques da cidade. Gerchman é um amoroso narrador da simples existência.
Quarenta anos de atividade artística. Chamar de carreira, como é comum, normaliza a criação artística. Não é o caso de Gerchman. Certamente, a sua trajetória, não é a de uma anticarreira, mas é inegável que ele caminhou tendo como núcleo central de seu movimento, a criação artística. Mesmo no período em que dirigiu a Escola de Arte do Parque Lage, a sua foi uma administração não burocrática e de implantação de perspectivas do processo artístico atual. Muito dessa atividade inovadora na didática da arte, foi “esquecida”. Isto se deve às disputas políticas na arte e ao desejo de construir uma história fictícia da nossa cultura.
Rubens Gerchman ama o futebol e é dos poucos artistas brasileiros que trataram do tema. É um assunto persistente na sua iconografia. E nisto ele está em boa companhia, com artistas como Vicente do Rego Monteiro, Aldemir Martins, Cláudio Tozzi, José Roberto Aguillar, Nelson Leirner, Roberto Magalhães.
Eu me lembro da sua grande exposição sobre futebol no MASP e da multidão presente. Lá estavam Anônimos da Silva e figuras ilustres e, na mesa, assinando um belo catálogo, o jornalista Armando Nogueira e o próprio Gerchman.
E eu me lembrei, de repente, da minha tentativa de reconstituir um parcialmente destruído painel do artista, encontrado no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, sobre uma multidão no estádio – a velha paixão - e que foi fotografado de maneira precisa pelo Rômulo Fialdini. Hoje a minha publicação sobre o muralismo serve de roteiro para o artista recuperar a sua obra.

Gerchman fez algumas incursões cinematográficas com super-8 e 35 mm na década de 70. Visões tão belas. Lembro de uma na qual a câmera fixava o movimento do mar e a progressiva construção da palavra amor. Uma pergunta: o que não fará logo mais com a tecnologia atual, leve e portátil?
Uma anotação que não quero deixar de fazer sobre o artista é que é notável em Rubens Gerchman a rapidez instantânea entre a vontade e a mão, entre o seu desejo de fazer alguma coisa e a concretização da intuição. A invenção do mundo individual através dos objetos, esculturas, gravuras, pinturas, cinema. A transmissão da sua percepção até o laboratório pessoal, local de criação de novas formas e suportes.
E esta exposição “Fumaça”! Dezenas de caixas de sonhos, suspensas por fios e flutuando sobre um grande espelho, revelando segredos, ocultos personagens, histórias interrompidas, memórias, fotografias, emoções quase perdidas. Evocações. Bandonión e Pixinguinha, drama e doce melancolia. Uma suíte sonhadora de um homem que tece os seus próprios sentimentos para contemplar a si mesmo.


terça-feira, janeiro 29, 2008

Desvio para o Eterno


Filósofos, sacerdotes e sábios, além de farta documentação apócrifa abrem o conhecimento sobre as múltiplas formas com que as culturas mais antigas enfrentaram a questão da morte. Hanna Arendt em seu livro A Crise da Cultura diz que cultura grega da antiguidade dispunha fundamentalmente de dois modos de encará-la, senão para vencê-la, pelo menos para vislumbrar os temores que suscitava. Segundo ela, o primeiro modo fundava-se na própria natureza, quer dizer, na procriação como forma de inscrição no eterno ciclo da natureza. Nesse modo o problema era enfrentado, potencialmente, no plano da espécie. Porém, um grande problema permanecia: a perenidade, na acepção individual, malograva, impedindo o homem se diferenciar das mesmas condições impostas às demais espécies animais. O segundo modo, mais complexo, consistia em realizar feitos heróicos e gloriosos que pudessem sobrepor à efemeridade do tempo. A repetição indefinida dos fenômenos naturais - dia que segue a noite que segue o dia, as estações do ano e tudo mais - garantem que o mundo natural como o conhecemos é o lugar dos acontecimentos imortais. Contudo, diz Arendt, todas as coisas que devem sua existência ao homem, como as obras, as ações, e as palavras são perecíveis, contaminadas, por assim dizer, pela mortalidade de seus autores. É precisamente esse império do efêmero que a glória devia permitir, pelo menos em parte, que se combatesse. Para Arendt, a tese tácita da historiografia antiga, quando, ao relatar fatos “heróicos”, tentava arrancá-los da esfera do perecível para igualá-los à esfera da natureza. (...) Se os mortais conseguissem dotar suas obras, suas ações e suas palavras de alguma permanência e retirar delas seu caráter perecível, então talvez essas coisas, pelo menos até certo ponto, penetrassem o mundo daquilo que sempre dura, e nele se fixassem e os próprios mortais talvez encontrassem seu lugar no cosmo, onde tudo é imortal, exceto os homens. É nesse lugar, digamos, que surge então a filosofia como uma terceira forma de responder aos desafios da imortalidade. (extrato manipulado de O que é uma vida bem sucedida? - Luc Ferry)






Adriano de Aquino

janeiro de 2008

As recorrentes alusões à efemeridade como condição inerente à vida e a arte tornaram-se uma espécie de proto filosofia dos artistas contemporâneos. Esta é uma breve reflexão sobre os conceitos encravados na mentalidade mais influente em nossos dias que pode nos ajudar a entender o modo como nosso tempo lida com o imaginário da imortalidade.Para um jovem que nos anos 60 dava os primeiros passos no mundo da arte um expressivo conjunto de valores da modernidade permeava a mentalidade da época colocando em questão a idéia ocidental de Absoluto e focando o caráter efêmero da vida e da arte. Em parte, as sucessivas marteladas de Nietzsche, que ainda ecoam como uma forma de desencantamento do mundo, a argúcia arrasadora de Freud contra as ilusões metafísico-religiosas e os fundamentos sócio-econômicos de Marx, tinham dissolvido no ar o que ainda restava de oculto nas crenças e nos negócios do mundo moderno. As colunas centrais da religião, das instituições acadêmicas e as velhas hierarquias econômico/social, alvos de contestações de toda ordem, balançavam. As ruas tornaram-se palco da insatisfação. Movimentos de jovens de todas as modalidades artísticas transbordaram das salas de concerto, museus, galerias, bibliotecas e espraiavam pelos campos e avenidas.Um enorme processo de desconstrução, que teve inicio na alta modernidade, encontrou nos jovens do século XX, sobretudo nos da geração dos anos 60/70, a voz e a potência para o confronto com toda autoridade constituída: Estado, família, arte, instituições, gênero,sexualidade, política, propriedade, ideologia, mercado, tradições, mente, corpo etc. No meu entender essa foi a derradeira agitação estético/cultural que, mobilizando e transformando inúmeros modos de expressão artística, curiosamente, não era em si, um movimento específico das artes. Não podemos esquecer que os grandes concertos de música, as polêmicas exposições de arte, a literatura, as leituras de poesia, etc. que empolgavam uma multidão de jovens ocidentais, não eram, ainda, fenômenos atrelados à indústria cultural ou submetidos a interesses econômicos mais objetivos. Essa geração se propunha reconstruir senão o mundo, pelo menos uma vida melhor, sobre as ruínas do passado.
Quando as utopias amainaram vimos que a paisagem havia se alterado substancialmente. As ideologias políticas perderam muito do seu poder sedutor, regimes autoritários entraram em colapso, e arcaicas estruturas institucionais desmoronaram por completo. Uma nova cultura econômica, aparentemente mais flexível, que acenava com a perspectiva de prosperidade para os povos surgiu no horizonte. Pouco importa o nome que se dê ao conjunto de forças políticas e econômicas que se empenharam nessa nova via. O fato é que a abundância de recursos trazidos por essas mudanças expandiu o mercado em todas as direções. Simultaneamente, uma embrionária rede tecnológica se expandiu e de forma magnífica transformou de um extremo a outro o panorama cultural. A dinâmica dos recursos oferecidos pela tecnologia da informação produziu um forte impacto em todo sistema produtivo. Na arte esse impacto é enorme. As modalidades de produção, as reações e a mentalidade que hoje se fixa no ambiente cultural dá margem a inúmeras considerações. A que aqui farei é apenas mais uma.
Parte da produção artística da atualidade, voltada para a produção de ícones, gestos, instalações, gadgets etc. e fundadas sobre a égide da efemeridade da vida e da arte é um bom ponto de partida. Os produtos artísticos mais em voga no momento se apropriam de itens inseridos no repertorio dos eventos banais e cotidianos. Parecem ao primeiro olhar, manifestações integradas ao complexo sistema de comunicação hoje disponível e um desdobramento conseqüente do impacto produzido pelos novos meios tecnológicos. Porém, se olharmos com mais atenção poderemos vislumbrar certo desconforto. Uma reação curiosa tenta ilustrar as virtudes de um novo mundo que conecta indivíduos de todo o planeta. O modelo de arte mundialista que nos últimos trinta anos enche as grandes mostras de arte internacionais parece afirmar que o desejo de ruptura das fronteiras geográficas, tão desejada pelos modernistas, tornou-se realidade. Enfim, artistas de diversas regiões do globo, oriundos de culturas há pouco tratadas como periféricas pelos grandes centros, se integraram ao Pantheon artístico universal. Para o otimista isso é uma constatação cabal de que as instituições se reinventaram e o ajustamento de suas políticas distribui saber e harmonia entre as diversas culturas do planeta. Tenho muitas duvidas sobre a positividade desse processo, porém, esse tema não é o foco de minhas reflexões nesse texto, ainda que o considere um importante player, no contexto do tema que pretendo abordar: a produção artística contemporânea.
Mais do que se imagina o surgimento das inúmeras ferramentas tecnológicas trouxe um grande problema para a arte. Incapazes de produzir, por meios tradicionais, estímulos aptos a fazer frente às trocas culturais disponibilizadas por novos recursos tecnológicos, uma parte da produção estética aderiu à demanda de uma nova fase promocional e mercantil, outra se fechou num circuito restrito. Contudo, as duas vertentes se submeteram a idéia de que uma aparente democratização das linguagens artísticas- uma espécie de vale tudo- era um recurso admissível. Contudo, essas iniciativas não responderam, muito menos ultrapassaram os expedientes repetitivos de anunciar a morte dos meios tradicionais de expressão: a morte da pintura, da escultura do desenho etc. Afinal, ninguém mais tem duvidas de que nada morre apenas por decreto. Além do mais, ao repetirem essas formulas se colocam diante de uma questão mais grave e urgente, pois, caso a morte das formas tradicionais de expressão artística fosse uma verdade, os modelos estéticos da atualidade teriam fatalmente que enfrentar a mesma sentença: seriam coagidos frente à dinâmica do presente. No entanto, essa duvida não é sequer cogitada. Ao contrário, vemos um modo de produção estética consolidado nos anos oitenta se perpetuar indefinidamente. Isso nos leva a supor que de 30 anos para cá a arte e o meio social atingiram perfeita harmonia. A longa permanência de um padrão estético levanta a suspeita de que a arte supostamente mundialista alcançou seu objetivo: recalcar o aparecimento de sucessivas experiências artísticas. Explico melhor: no sentido inverso dos artistas da vanguarda histórica que contestavam toda forma de conservadorismo, regulamentos oficiais e regimes estéticos um grande numero de artistas contemporâneos parecem satisfeitos com o padrão dominante e a regras institucionais seletivas. Em seu livro Du spirituel dans l’art Kandinsky dizia que o êxito de um grande artista é inevitável ainda que por determinado tempo seu reconhecimento seja apenas um horizonte possível. Para ele é através de um complexo processo de decantação que os procedimentos estéticos inovadores são extraídos de sua marginalidade transitória. As palavras de Kandinsky são úteis para explicar como o desconstrucionismo feroz que inspirava a vanguarda histórica, hoje nos transmite uma poderosa atitude, plena de lógica.
Em minhas considerações sobre a cultura mais difundida nas ultimas três décadas não excluo a possibilidade de sujeição da atividade criativa à crescente centralidade da economia na vida contemporânea. Ao contrário de seus precursores, um grande contingente de artistas pós–modernos enxerga na institucionalização precoce um benefício. Suas estratégias se montam a partir desse juízo. Os vários modos artísticos que surgiram no pós Segunda Grande Guerra herdaram e souberam usar a diversidade difundida pelos artistas da vanguarda histórica. Esses movimentos contestavam o sistema oficial de arte e a institucionalização pomposa. Os prodigiosos movimentos estéticos dos anos 50/60 são ricos, não apenas pelas obras que legaram e as questões que suscitaram, mas, também, pela abertura artística e cultural que disseminavam. Arrisco dizer que tal circunstancia permitiu aos artistas desse período inaugurar um fluxo produtivo fundado na autonomia criativa, ratificando, criticamente, alguns valores do modernismo e renovando a relação da arte com o imaginário da imortalidade. Esse último item é importante para entendermos melhor as repetitivas argumentações dos artistas atuais sobre a efemeridade como um enunciado estético que delineia as propostas da arte contemporânea. Ainda que o efêmero, anunciado como fundamento teórico da arte atual, pareça inédito ele não é. De fato, esse enunciado é um simulacro do imaginário da imortalidade diferenciado por sutis artifícios conceituais.
Alguns segmentos das artes plásticas conceberam uma versão própria do relativismo nietzschiano mesclado a teorias dispersas coletadas em vertentes do pensamento desconstrucionista. A ligação com a vida acadêmica levou alguns artistas a adição de aditivos excêntricos para rápida diluição de todo e qualquer critério artístico identificado por eles como reação conservadora. Munidos de fragmentos dispersos e convencidos da luta por uma causa nobre, artistas e teóricos partiram contra os focos de reflexão crítica e aptidão técnica, habilidades que vem sendo gradativamente desprezadas. Instalou-se, então, a crença de que vivemos hoje numa sociedade de homens livres e que todo individuo está apto a produzir o que bem entender sem mais se submeter a nenhum critério externo a si. Tal conceito se tornou um senso comum no campo artístico. Esse tipo de relativismo tornou-se o bálsamo para todos os males preenchendo de estratagemas a vaga idéia de que todo e qualquer procedimento estético tem o mesmo valor simbólico - a única coisa que os diferencia é a fama de quem os faz e o preço. Para consolidar sua permanência no meio cultural os adeptos dessa vertente falam da realidade como um fenômeno imutável e afirmam que a flexibilização dos meios de produção tornou possível a expansão da liberdade. Essas intervenções justificam nossa preocupação, porém, é bom lembrar que a confusão intelectual que se instalou é impotente contra a inevitável renovação crítica.
É até certo ponto compreensível, em uma sociedade altamente competitiva, a coexistência de grupos fechados. O recrudescimento das religiões, o consumismo galopante e outras formas de transferência imposta pelo cotidiano são dados que sempre levamos em conta quando refletirmos sobre a vida atual. A fragilidade das teorias dominantes que visam impor a idéia de que tudo que é avançado em arte é pleno de significado elevado e tem como objetivo a intervenção crítica imune às convenções, esbarra no fato de que o reconhecimento e a confirmação de suas investidas estão em conformidade com os pactos formais de que tudo que é identificado como avançado, inclusive o capitalismo avançado, espelham nossa época, a qual devemos nos curvar e não contestar. A soma desses fatores interage no imaginário do nosso tempo. No fundo, sobrevém a intenção de afirmar alto e bom tom que todos são parte do mesmo negócio. O negocio da arte! Essa é uma das razões que torna cada dia mais evidente que a banalidade de um gesto, objeto estético ou instalação, preconcebida para se destinar aos domínios institucionais, não consegue esconder sua mais contundente aspiração. Quando isso sobrevém a arte já se ausentou. Acreditar que a institucionalização e os altos preços de mercado é reconhecimento inconteste é depositar fé cega em algo indiferente ao interior da vida sensível.
Eis o dilema contemporâneo.
Os que conhecem a dificuldade não se iludem. Tentam abrir brechas que os permita viver e criar do modo mais autêntico possível. Deslizando por entre as beiradas dos sistemas, contornando as margens, onde de um lado se instalam os novos deuses erigidos pelo predomínio econômico sobre todas as coisas e, do outro, os homens que, em busca do conhecimento, descartam gradativamente os dogmas e se impulsionam a superar limitações. Foi o imaginário da imortalidade que deu partida a esse gigantesco movimento cultural e é ele - não as idéias de prosperidade, riqueza e fama, esses sim, conceitos efêmeros - que impele essa roda a se mover. Portanto, se formos leal à nossa vontade mais profunda continuamos insistindo, como criaturas efêmeras que somos, na renovação dos horizontes que herdamos e desse modo humano, viver com maior intensidade, alheios às sedutoras ofertas para que nos acomodemos confortavelmente nos domínios da banalidade consumada.

quarta-feira, janeiro 16, 2008

O Culto ao Banal e ao Cotidiano


Adriano de
Aquino
2008



... o inferno de nossos contemporâneos chama-se mediocridade, o paraíso que buscam, a plenitude. Há aqueles que viveram e aqueles que duraram.Pascal Bruckner


Se colarmos na janela de busca do Google a frase: 'o banal e o cotidiano na arte contemporânea' surgirão centenas de ensaios,textos e aforismos sobre os muitos artistas da atualidade que adotam signos,elementos,coisas e objetos apanhados na rede de produção de gadgets ofertados pelo monumental fluxo de banalidades que se amontoam no mundo.  
A maioria desses textos considera que parte dessa produção é absolutamente inovadora e as obras, eventos e outros meios, sinalizam uma ruptura com a tradição artística e com os códigos e significados herdados do passado. Contudo, seus autores não dispensam o hábito de remeterem suas analises sobre obras contemporâneas usando e abusando das citações de pensadores e artistas consagrados na modernidade e identificados, sobretudo, ao contrário da maior parte das propostas contemporâneas que endossam, pela busca extenuante de uma visão única e muito elaborada das coisas do mundo. Diante desse pormenor a ironia escapole:Oh!Sim,claro!Compreendo o quanto é irresistível para um artista que a apresentação de sua proposta estética se misture aos feitos artísticos de um Cézane,por exemplo. Afinal, o desejo de subir no podium da grande arte é bastante sedutor. Ainda que apenas para travar um embate desproporcional com a historia na tentativa de reverte-la em visibilidade ajustada aos padrões da comunicação da atualidade. 
Todavia, tal aquiescência diz muito mais sobre os hipotéticos feitos que anunciam um suposto desligamento dos regimes estéticos precedentes.Para leitores mais ardilosos essa prática, hoje corrente na maioria dos textos sobre arte, revela somente um artifício que visa destacar uma obra 'especial' dos milhares de produtos estéticos similares
Via de regra, todo esforço teórico não consegue denegar que grande parte dessa produção apenas reafirma a natureza dos fatos e dos objetos como coisas triviais, obviedades ululantes. Muitos textos atuais surgem e se multiplicam porque é capital que alguém se apresente para difundir e justificar um pensamento que opera para banir e manter à margem os modos de fazer artístico que não se alinham na esteira produtiva. Alguns articulistas parecem orgulhosos em explicar porque determinados nomes e um modelo estético que se estende por mais de duas décadas continua na 'vanguarda'. Mesmo um observador mais criterioso que tente penetrar nos meandros do processo criativo e na política dos grupos gestores da atualidade, encontrará dificuldades para chegar aos motivos que afiançam a contínua repetição do mesmo modelo nas grandes mostras públicas, nas instituições e na mídia cultural. O imediatismo, o consumismo, a complacência, o desprezo pela excelência e pela crítica se tornaram os mais importantes quesitos da vida contemporânea.
Eles encontraram seus correspondentes estéticos em muitos artistas da atualidade. 
Uma variante caricata do outsider tornou-se a reencarnação da avant-garde contemporânea. Ela encontrou nos ícones do cotidiano uma espécie de musa inspiradora da revolução estética de nosso tempo. Diga-se de passagem que os contemporâneos, ao corromperem os princípios da vanguarda histórica, constituíram uma corporação outsider, primeira escala de acesso   à  insider   upperclass capitalista das artes.        
Soma-se a isso o fato de no plano objetivo, melhor dizendo, no âmbito dos grupos gestores, a gradual assimilação descontextualizada do pensamento de Marcel Duchamp que, em síntese, cogitava o papel das instituições artísticas na legitimação da arte, foi de tal modo banalizado que qualquer coisa introduzida no circuito artístico torna-se arte. 
Nessa nova Meca só falta a figura do Rei Midas.   
Esse paradoxo se apóia na lógica inquestionável de que o mundo artístico é a esfera mais elevada para legitimação da arte. Para os artistas comprometidos com o fazer artístico acurado esse principio é a expressão de um desejo inconteste por autonomia e liberdade e também uma verdade da arte. Ter um pé atrás com a invasão de produtos diversos e achados estéticos fortuitos que aspiram legitimação artística, é uma atitude política correta tanto para o artista quanto para o publico. Conceder de mão beijada essa preciosa herança do modernismo a qualquer traste estetizado legitimado pelo mercado é o mesmo que verter sangue, suor e lagrimas no esgoto.
No entanto, o que vemos é uma passividade espantosa.
Se antes eram as instituições da arte,a crítica criteriosa e a história que decantavam os elementos transformadores de uma obra de arte ,hoje,basta um rótulo curatorial,uma equipe de marketing e a constante visibilidade na mídia para que um produto estético seja automaticamente legitimado. 
O que se pretende?
Purificar os pecados do mundo cruel,opressor, frustrante e demoníaco através 
da inserção indiscriminada de qualquer expressão como uma  manifestação artística? 
Até as religiões exigem mais dedicação de seus fieis. A arte atravessou séculos, desbravou saberes e fazeres para no século XXI se reduzir a condição de enfermaria onde uns internos "criam" e outros vendem? Essa é uma circunstância passivamente aceita por artistas e publico? 
Acredito que não. 
Para ilustrar minhas cogitações usarei uma paródia com as pesquisas cientificas que vem atuando na concepção da vida através de intervenções genéticas e no adiamento indeterminado da morte com uso de tecnologia de ponta e pela ação das máquinas. Tirante os pressupostos éticos que tolhem a atividade humana pergunto: maior conhecimento garante maior controle contra ações mal intencionadas?
Claro que não! 
Seria ingênuo acreditar que sim. 
Sabemos que o bem não é uma das dobraduras automáticas do saber. Se fosse, aceitaríamos de bom grado, por exemplo, que o cruel sofrimento e os milhares de mortos resultantes das explosões atômicas em Hiroshima e Nagasaki têm relação positiva, previsível e justificável, com os benefícios auferidos aos milhares de doentes amparados e curados pela tecnologia nuclear em uso na medicina atual. 
A realidade como hoje se apresenta também não é garantia de que a genética traga apenas benefícios para o homem. Se em estados democráticos já acarreta suspeição, imaginem em estados totalitários e nas mãos de corporações ultra poderosas. 
Alguém deposita confiança no desenvolvimento de projetos genéticos sem transparência e visibilidade?
O que impediria organizações publicas ou privadas de desenvolverem uma linha de produção de guerreiros invencíveis e inumanos? 
Apenas nossa boa fé na ciência? 
Essas cogitações servem apenas para ilustrar o quanto podem ser ambíguas as melhores intenções quando paralelamente aos avanços científicos ocorrem disputas sangrentas pelo poder econômico e o controle político.    
Da mesma forma as perguntas sobre o caráter das ações dos financistas,dos curadores,da mídia cultural e do marketing também podem ser entendidas como um controle externo sobre a criação artística. 
Por que não?
Conhecemos bem as gracinhas criativas de alguns curadores que usam em seus projetos obras de arte como subprodutos. 
Por isso,repito, essas questões tornaram-se mais sérias agora porque se instalaram no cerne da mentalidade corrente. O clima 'liberou geral' vem permitindo que alguns segmentos ligados à produção artística façam o que bem entendem com a arte. A única coisa que deles se exige é que sejam fashion e divertidos e financeiramente poderosos. 
Essas são algumas preocupações quanto às intenções veladas que hoje atravessam, de um extremo a outro, o ambiente artístico.Sabemos que fazer o mal de maneira explícita é sintoma de acentuado desequilíbrio.
Desconheço os que o façam assumidamente.  
Por isso, talvez, os atos muito humanos, vêm se confundindo com as coisas banais e com os fatos cotidianos mais insignificantes. As questões sobre o bem e o mal na política e nos negócios ou o bom e o ruim em arte ganharam a mesma dimensão que a dúvida quanto a escolha da marca de sabão em pó ou que código de área usar para acessar uma chamada telefônica interurbana. O que vemos é que no campo das ocorrências terrenas as parábolas angelicais que apareciam para modestas camponesas num campo de margaridas são similares as que empolgam a mentalidade contemporânea. Apenas uma diferença se impõe: “o milagre é o dinheiro, o dinheiro é o milagre”. 
A opção por milagres, traduzido na esfera mercantil como boom  é menos trabalhoso. Vai daí que essa opção é hoje a mais acessada, afinal, para uma mente moldada no pragmatismo, o sucesso é o fluxo preferencial por onde transitam a fortuna e o prestigio e seu gargalo escoa, naturalmente, na liberdade plena e maravilhosa onde vivem os reis,as celebridades e os afortunados. 
É esse paraíso que um outsider sonha frequentar. 
Esquema simples e muito eficaz quando se trata de coletar mentes e corações para um negócio que incidirá em projeção social e lucro. 
Atenção!
Não discordo que negócio é para dar lucro. 
Há muito torço para que o sucesso financeiro do mercado de arte escoe também para os bolsos dos artistas. 
Porém, afora raríssimas exceções,não é isso que acontece, não é verdade?
Os que questionam o modelo em voga e as obras dele provenientes, pouco importa como o façam, são prontamente identificados como reacionários. Realmente, temos que ser muito tolerantes para não considerar essa lógica autoritária. Até mesmo a modernidade, vista por muitos como coerciva em alguns aspectos, foi mais generosa e aberta com os confrontos entre estilos artísticos e ingerências externas do que o que presenciamos atualmente. Por questão de princípio, os modernos não construíram muralhas tão sólidas contra intrusos supostamente desprovidos de 'chaves' de entendimento artístico. 
Ao contrario, são conhecidas e muito divulgadas suas contundentes manifestações e mesmo algum deleite nas contendas contra as intromissões daqueles que questionavam suas obras e idéias. Essa foi uma das mais relevantes atitudes dos artistas modernos que contribuíram para a constituição de um acervo artístico de grande valor. Eles souberam, como hoje poucos parecem saber, que o confronto era uma forma de promover a introjeção das suas mentalidades e propostas estéticas no seio de uma sociedade até certo ponto refratária à mudanças. Podemos dizer que tais atitudes elevaram no sentido inverso ao religioso, os egos artísticos e suas vontades, conservando, entretanto, suas performances no plano do sensível e de alguma forma vinculadas à tradição artística criticamente processada. Suas propostas vivenciavam reais avanços sobre as fronteiras da convenção,   ampliando o horizonte da percepção e empolgando o público a participar de algo que era feito, entre outras coisas, para que participassem, contestassem e identificassem para, enfim, amarem com todas as filigranas complexas do amor por algo que de fato partilhavam.
Entretanto,os adeptos do vale tudo parecem alheios a uma realidade dia a dia mais complexa. Suas apologias redundantes nos revelam apenas uma atração pela mesmice e um desprezo estúpido pelo fazer artístico laborioso e dedicado. Suas atitudes deixam transparecer a ingenuidade de suas crenças fundadas numa compreensão equivocada de que a vida demasiado humana se traduz literalmente no banal e no cotidiano, quer dizer, na mediocridade. Suas obras, ações e gestos nada dizem porque nada tem para dizer sobre uma autêntica manifestação artística depois da morte de deus.
Não olho com desprezo nosso tempo.
Ao contrario, creio que vivemos uma época fantástica para o conhecimento e para as artes.
Me oponho a toda argumentação que pretenda limitar a perspectiva humana e a arte a um heroico passado histórico.      
Se não acreditasse já teria abandonado a atividade artística  ou melhor, a arte teria me abandonado,pois, se trataria apenas uma categoria sócio   econômica na qual fracassei.  
Concordo que partilhar obras de arte plenas de sensibilidade e inteligencia é uma experiencia cada dia mais rara,contudo,possível.
Creio que ainda ha muito a acrescentar ao que herdamos.
Para que isso ocorra é necessário esforço e dedicação,não apenas um monte de paradigmas "geniais" fundados no arquétipo do artista negócio uma sacada do Warhol que,de um tempo para cá, o elevou a categoria de "divino". 
A estratégia de Warhol imobilizou a critica contemporânea a tal ponto que tornou-se corrente entre seus admiradores compara-lo a Michelangelo. 
Ainda que alguns artistas que se submetem a esse modelo sejam bem    
sucedidos e cotados nas alturas é uma tolice conferir à banalidade e ao cotidiano virtudes que não possuem.
O real, esse sim, uma fonte renovável de sensibilidade,conhecimento e saber.
Acreditar que teorias espertas, marketing de ponta e lucrativo negócios 
detenham um poder capaz de engrandecer obras de mesquinhas dimensões é a porta do "inferno dos nossos contemporâneos".  

     



domingo, janeiro 06, 2008

Vitimas da Cena Contemporânea




Adriano de Aquino
2008

Toda obra de filosofia deve ser suscetível de vulgarização; do contrario ela provavelmente dissimula absurdos sob uma nevoa de sofisticação aparente. Immanuel Kant


Esse axioma é um desafio para que eu tente colocar minhas ideias de forma compreensível para o leitor interessado no assunto. É, também, um alerta contra aqueles que intencionalmente se favorecem da nevoa que oculta questões e esconde os propósitos que hoje perpassam a difusão de produtos artísticos e culturais e que hoje norteia os meios de comunicação.

Alguns leitores me questionaram sobre o ensaio Anotações sobre o Catecismo Pós Moderno, postado anteriormente aqui no HiperBlog. Uns entenderam que eu tinha sido duro demais com os curadores.Outros,acharam que eu estava “aliviando” os artistas da co-responsabilidade no laisses faire que se espraia no setor das artes.Outros mais disseram que eu estava jogando tempo fora e que deveria dedicar esse tempo ao meu trabalho de arte. Alguns, mais enfáticos, criticaram minha disposição em continuar insistindo em me meter na escalada artificial que se apoderou do mundo artístico.    

Se,por um lado, essas opiniões acham inútil contrapor tal realidade,por outro, revelam o acerto pelo meu gosto em partilhar ideias, contradições e dúvidas para além do meu circulo de amigos - razão de existir desse blog. Esta ferramenta tem me permitido discutir e obter respostas interessantes sobre assuntos que abordam temas importantes da vida atual,coisa que hoje seria dificílimo fazer de maneira presencial. Também temos que levar em conta que a grande imprensa reduziu o lugar outrora dedicado às ideias. As novas diretrizes editoriais não       conseguem responder à necessidade de obtenção de dados e reflexões mais aprofundados sobre um setor especifico. 
Por sorte, a informação descompromissada com as finanças e a competitividade empresarial encontrou nos novos meios tecnológicos um canal de comunicação extraordinário. 
Acho que é um desperdício não utiliza-lo.

Para iniciar minha argumentação tentarei responder a alguns leitores que, por não pertencerem ao meio artístico, pediram que eu apresentasse, mais   detalhadamente, meu entendimento sobre a “crise da arte da atualidade”.   
De inicio,como no texto anterior, reafirmo que não existe uma crise da arte, ou melhor, da criação artística. O que vemos acontecer é um formidável confronto de forças que atingindo todos os setores da vida social também atingiu a arte. É esse fenômeno que vem sendo confundido com o que chamam crise criativa ou a crise dos valores da arte. Que sentimentos esses confrontos de ideias estão produzindo em nós? Por que o desconforto diante de um tempo de abundante conquista tecnológica e acesso a informação, mas, onde o dinheiro se assemelha a deus? 
Por vezes nos perguntamos: para que serve tudo isso se ao mesmo tempo e na mesma velocidade a vida perde sentido e valor? 
Mesmo os indivíduos de mais posses, sensíveis,cultos e sofisticados, com acesso ilimitado aos bens culturais e de consumo, reclamam da perda de sentido na existência e apontam os mais recentes meios de produção, as pressões da nova economia, as incessantes mudanças de hábitos, a mercantilização da religiosidade e o descaso com a ética como um fator importante em suas indagações existenciais. 
Tentarei comentar alguns aspectos dessa crise, notadamente no campo da arte. Não estou certo de que responderei também àqueles que me questionaram sobre uma excessiva dureza com que tratei os curadores. 
Pode ser que sim,talvez tenham razão quanto o grau de responsabilidade pelo estado de coisas que imputei aos curadores. Explico: na minha interpretação a figura do curador tem um importante papel na crise anunciada. Em síntese: são suas escolhas que fomentam a impressão de uma crise artística. Devo esclarecer, todavia, que considero as recentes atividades - curadorias, marketing e mídia cultural e outros segmentos de intermediação entre arte e público, atividades complementares uteis para difusão dos bens artísticos. Exatamente por isso suas condutas merecem uma atenção redobrada. Lamento que o crescente prestígio dos curadores venha ocorrendo simultaneamente à perda gradual da reflexão crítica. Para ver com clareza a questão é necessário subir uma ponte ligando a perda da acuidade crítica ao fortalecimento das curadorias de forma a vislumbrar de um ponto neutro o que gerou tal inversão. No meu entender o relativismo cultural que hoje permeia as ações estéticas difunde uma aparente liberalização dos meios de produção e, por conseguinte, do próprio fazer artístico. Sob o titulo de pós-modernidade, ou qualquer outro que queiram adotar,o que parece claro é que uma variante de intermediações entre arte e público, ao invés de elucidar a complexidade das propostas estéticas, as reduziu a uma nota de pé de página desprovida de substancia que demanda a reflexão. As coisas surgem prontinhas e ajeitadas as intenções curatoriais. A recente projeção dos curadores concede-lhes um notável status profissional junto às instituições e aos artistas. Essa característica peculiar vem lhes permitindo preceder e em alguns casos sobrepor à própria criação artística. Talvez por isso muitas pessoas imaginem que a arte encontra-se a reboque de fatores alheios à criatividade e essa é uma das razões da crise. 
Discordo, e tentarei explicar por que. 
Para isso é importante embrenharmos em questões às vezes chatas, porém, necessárias. Coincidência ou não,o fato é que nos últimos trinta anos uma rede de curadores estendeu sua atuação e se consolidou na forma que hoje presenciamos . Suas parcerias estratégicas, locais e globais, ganham dia a dia maior importância nos centros acadêmicos, fundações, coleções, museus etc. Esse conjunto de fatores somado à flexibilidade de princípios, lhes confere grande mobilidade no sistema por onde o dinheiro escoa. Respaldados por esse conjunto de forças as propostas curatoriais se confundem com a própria criação artística e, em casos extremos, as superam. Exemplos da argúcia curatorial podem ser observados nas ultimas Bienais de São Paulo. Creio que as considerações sobre um exemplo concreto facilitam digressões mais produtivas. Dirigindo o primeiro foco sobre a concepção - melhor dizendo, o tema eleito pelos curadores para uma bienal e direcionando o segundo foco para rede de eventos que os ligam à política cultural estatal e ao sistema de arte e do mercado mundial, pela via das estratégias dos empreendimentos globalizados, indagamos: como um curador escolhe seu tema e define a proposta de trabalho?

Deixando de lado as criticas categóricas que afirmam que isso ocorre por força dos interesses pessoais dos curadores, suas ligações políticas, afetivas ou financeiras com grupos que os apoiam e vice-versa,essa premissa faz com que muitos artistas desprezem o problema, pois, se meter neles é uma tarefa árdua. Porém, ele existe. 
Que fatores determinam as “temáticas” da Bienal?
E as estratégias curatoriais,surgem de que forma? 
São reflexos do desejo dos patrocinadores e do marketing, tendo em vista a mídia cultural e atrativos sedutores? 
Não podemos desprezar o fato de que a opção por um tema pode ser entendida como um recurso para atender a agenda sócio-educativa exigida pelo governo que subvenciona o evento. As megas exposições, para se adequarem aos paradigmas globais, precisam ter um caráter espetacular ligado aos assuntos palpitantes do momento. Por exemplo: terrorismo, violência urbana e multiculturalismo, editado em seus opostos: tolerância e convívio, aliás, tema da edição passada da Bienal de São Paulo: “Como viver juntos”. Esse modelo se encaixa no que antes chamei de alavanca, agora, com ponto de tensão nas sub teses de antropologia cultural. 
Contudo, nenhuma dessas opções reflete de fato as questões internas à produção artística contemporânea. São artifícios em voga no circuito da comunicação,mas,não necessariamente,da arte. 
Melhor dizendo: o curador elege seu tema a partir das ideias que tem sobre parte da produção artística. Até aí nada de novo chama nossa atenção. Entretanto, à medida que seu tema se determina como programa de trabalho surge uma definição hierárquica dos protagonistas em jogo. Nesse momento surge o paradoxo: o tema ajustará as obras da mostra à visão do curador, forjando parte da produção na origem, quer dizer, no ato de criação? Ou, o curador, supostamente sensível ás várias vertentes da arte contemporânea, adequará, não importa o que, ao seu tema?

Outro exemplo, coletado agora no site da Bienal de São Paulo revela esse paradoxo de modo concreto. Ivo Mesquita, curador da próxima edição, reeditou o titulo de uma bienal de décadas atrás "Em Vivo Contato”. Nas palavras de Mesquita: "O Vazio- A exposição do espaço vazio do segundo andar do pavilhão será um gesto radical de afirmação deste momento para elaborar e analisar sobre o modelo das bienais, seu papel no mundo contemporâneo. Esse gesto simbólico toma o vazio como o lugar onde as coisas são em potência, por isso pleno e ativo, ao contrário de uma manifestação niilista, onde as coisas deixam de ser e perdem o sentido. Ele é fonte geradora, o território do devir, com possibilidades de múltiplos caminhos para ser cruzado."

Emblematicamente radical, pois,radical de fato é coisa difícil de ocorrer nos nossos dias,o que essa proposta pretende induzir?
De imediato o que se destaca é sua incapacidade de entender, desvendar e apresentar, o mais amplamente possível, os múltiplos aspectos da produção contemporânea que, em essência,é a grande questão artística de nosso tempo. Tempo que, não obstante, muitos adoram chamar de Babel. No meu entender essa ideia revela apenas uma forma nostálgica de processar de modo superficial os vários meandros do pensamento e da estética contemporâneas.

O que podemos entender como o vazio na proposta de Ivo? É um estado com o qual ele identifica a produção atual? Ou, o vazio para Mesquita se refere às próprias instituições culturais?

Não fica claro,ou melhor,não é para ser claro.

Isso para não focar a ilação ultrapassada entre o mito da tela branca "como o lugar onde as coisas são em potência." 

Será que Mesquita pretende exacerbar com essa proposta o poder de escolha do curador, excluindo em bloco a produção contemporânea sobre o pretexto de em seu lugar "materializar o gesto de reflexão." Com essa premissa  Mesquita torna um problema complexo em si, em barreira impenetrável a reflexão. A seqüência de perguntas que surge desses postulados mostram apenas a inutilidade de tentar entender o resto da sua proposta.

Além disso, a interpretação curatorial sobre "um vazio expectante, o território do devir", não esclarece coisa alguma, por isso, o entendo como um sintoma do choque entre vertentes do pensamento "desconstrucionista" em oposição a critica de alguns pensadores contemporâneos sobre o desdobramento e a prolongada permanência de um modelo estético(instalações/táticas de inserção,etc.)que se eternizou nas grandes mostras de arte. Isso sim um agravante na paralisia do sistema de arte. 
Nesse contexto acredito que uma mostra pública de arte que deixasse transparecer os confrontos no campo estético seria de grande valia. Isso não acontecendo os artistas e o público perdem uma oportunidade de dialogo e tornam-se vitimas de uma decisão institucional mal pensada. Nesse episódio o que salta aos olhos é que o curador é só mais uma vitima da cena contemporânea, Suas propostas deixam isso muito claro. Vejam:
Ao propor um ciclo de conferências organizado a partir de quatro grandes entradas, das quais cito apenas duas, Mesquita nos apresenta uma intenção em busca de consenso. Nas suas palavras:
1. A Bienal de São Paulo e o meio artístico brasileiro.
2. Agentes oficiais e privados da globalização reunindo agências governamentais, ONGs, fundações públicas e privadas, todas organizações fundamentais nas estratégias das bienais.
No item 1 seria mais produtivo que ele invertesse a proposta : o meio artístico e a Bienal de São Paulo. Não especificado dessa forma,vislumbra-se de imediato a indisposição de muitos  artistas em colocar seus pontos de vista.              
O que fica evidente nesses itens é a similaridade de estilo e conteúdo dessas propostas com as apresentações dos programas sócio-educativos da UNESCO e de algumas ONGs espalhadas pelo planeta.        
A comparação das propostas com a concepção dos parques temáticos que atraem multidões é inevitável. Sabemos que os parques temáticos pertencem a um novo ramo do entretenimento globalizado que promove tanto uma aventura lado a lado com a vida selvagem, quanto proporcionam a alegria de usufruir, num breve passeio, um compacto da história de Veneza, por exemplo, dispensando o esforço exigido pelas visitas aos museus e consulta aos livros. Além do mais os parques temáticos funcionam as mil maravilhas através dos (...) "Agentes oficiais e privados da globalização reunindo agências governamentais, ONGs, fundações públicas e privadas, todas as organizações fundamentais nas [suas] estratégias [corporativas]". O que depreendemos disso é que o curador clama a parceria dos artistas para melhorar o negocio e assim submeter os atores aos métodos do espetáculo.
Além disso,a Bienal ampliou seus problemas deixando claro para todos de que é incapaz de se renovar como instituição cultural voltada para a produção contemporânea e de se redimensionar como empreendimento artístico auto financiável.
Não podemos esquecer que a ideia de amarrar o evento a um tema há muito se esgotou. Contudo, permanece a inexplicável pretensão de dar ordem ao caos (Babel?) que sabemos é um fenômeno inerente à produção artística da atualidade, visível na diversidade de meios e estilos. 
As propostas dos últimos curadores da bienal me lembram os costumes dos antigos doutos que acreditavam que o Sol girava em torno da Terra. Essas atitudes refletem um desejo latente de alterar a relação de forças através de artifícios que permeiam a mentalidade vigente em diversos setores. Mesmo sabedor do enorme poder da cultura, ninguém mais se ilude do quanto é difícil mudar a natureza das coisas. Nesses jogos sofisticados às vezes o feitiço vira contra o feiticeiro e forças monumentais se liberam moldando uma crise espetacular. 
Isso vem ocorrendo no sistema de arte, sobretudo, nas grandes instituições como a Bienal de São Paulo pelo fato de negarem refletir as férteis questões que impulsionam a produção artística contemporânea. Por outro lado, a parte atenta e dedicada da produção, aquela que permanece do lado de fora do caldeirão mágico, ou seja, os artistas que não creem em ilusões oriundas de modelos arcaicos revestidos de ideologias mercantis,não engrossam o adesismo as ideias de ocasião. Clamam por uma reforma estrutural da Bienal.         
Por isso, muitos artistas continuam trabalhando para oferecer o que, aliás, a arte sempre ofereceu: obras de alta qualidade e se lixam para os artifícios do sistema. 
Sabemos, que o meio cultural, respeitoso das diferenças, fecha os olhos à mediocridade. Tem algo mais elevado com que se preocupar.Todavia, quando a arte se contamina demais com o lugar comum e as obras daí proveniente ganham uma dimensão desproporcional nos meios acadêmicos, institucionais, difusão e mercado, como agora vêm ocorrendo, a crise se agiganta. Quando isso acontece os descontentes com as manipulações de toda natureza, tanto do lado da produção quanto do público, confrontam as veleidades mesquinhas em seus curtos reinados de soberba. Por vezes, isso parece demorar demais e tememos que não ocorra em uma vida apenas. Então, intimados a conviver com a "crise do novo de novo", ou seja, viver um presente infindável, nossas mentes mortais se põe a imaginar o quão é enfadonho a ausencia de ideias que há tempos engessou as instituições de arte.