segunda-feira, janeiro 29, 2007

Notas sobre uma viagem à China














Luiz Fernando Marinho Nunes
dez.2006



Minha viagem à China surgiu assim, de repente, sem aviso prévio. Em geral são boas estas viagens que saem do nada. Lembro-me bem que no já longínquo ano de 1980 troquei uma passagem para Maceió, numa quarta-feira, por uma para Paris, na segunda seguinte, e assim, com cinco dias de aviso acabei ficando pela França cerca de um ano e meio. Boa troca.

Desta vez eu programava um fim de ano na doce monotonia bahiana, no máximo uma semaninha de férias no Rio entre Natal e Ano Novo e de repente, numa dessas reviravoltas, acabei metido numa seqüência de vôos intermináveis que me depositaram no aeroporto de Beijing onde me esperava, segurando um cartazinho, um motorista providencialmente contratado pelo escritório local da Petrobras. Imediatamente, com a facilidade de comunicação daqueles que sabem não poder usar palavras, ele me indicou que eu contornasse uma pequena multidão, gente esperando amigos, parentes ou outros viajantes como eu. O problema começou aí, pois quando me livrei daquela confusão toda o motorista tinha abaixado o cartaz e aí eu me vi com o difícil problema de identificar o chinês certo no meio de tantos. O cara era safo e logo me recuperou, juntou as malas e mediante outros sinais tão eficientes quanto os primeiros foi me indicando o caminho até o estacionamento.

O carro era novo, grande, confortável, estofado de couro claro, com jeito de sedan americano, mas chinês. Após umas manobras ousadas, uma fechada aqui e ali, outras tantas contramãos, tudo isso ainda dentro do estacionamento, ganhamos a rua. Pequim!

Aliás, a nova grafia Pinyin, que nos dá o “Beijing” no lugar de Pequim, é bem menos charmosa que o antigo sistema de Wade-Giles através do qual conhecemos o Mao Tsé-tung, genial, tenaz e insuperável guia, herói da Grande Marcha, mentor da Revolução Cultural, sintetizador do essencial á vida no seu livrinho vermelho, tão distante do insosso Mao Zedong que não impõe respeito a ninguém. Talvez isso aconteça pela infeliz introdução da sílaba ZE que nos dá um irremediável sentido de intimidade que o desqualifica, afinal é só mais um Zé Dong desses que andam por aí.

No trajeto do aeroporto ao hotel a nova China foi logo se desnudando sem muita vergonha. Progresso por toda parte, no sentido que se usava nos anos cinqüenta antes de sermos atormentados por tantos relativismos e visões contraditórias. A cada 500 metros surge uma grande obra. Edifícios modernos como não se vê no Brasil à exceção de alguns enclaves paulistas, mais ou menos na altura da Berrini, mas que não tem força nem para se espraiar por outras regiões de nossa maior metrópole. Pistas, anéis de tráfego periféricos, viadutos, o caramba! Aqui e ali um bairro antigo sendo posto abaixo com uma precisão cirúrgica digna dos melhores momentos de Lacerda, Jânio e Maluf (Haussmann também, por que não?) em suas fases de erradicadores de favelas. Notei logo que em todo o trajeto não havia uma só favela, nem um barracozinho solitário. Grandes conjuntos habitacionais se sucediam, aliás, com uma notória exposição de aparelhos de ar condicionado tipo split que eventualmente podem ser usados para calefação (haja energia elétrica se for isso mesmo).

Posso ir adiantando que esta imagem de cidades em violento processo de modificação foi o traço comum a todas as que visitei, e olha que foram algumas, em regiões diferentes: Nanjing, Hubei, Ychang, Zhengzhou, Yching, Baoding e outras menos votadas. Estão todas elas assim, sendo rasgadas por grandes avenidas, espetadas por milhares de arranha-céus, divididas por centenas de viadutos, pontilhadas algumas dezenas de outros grandes prédios de diversas repartições estatais que em geral tem o jeitão do nosso Ministério da Fazenda ou ainda um estilo nitidamente inspirado no Albert Speer. Nestes prédios oficiais a adoção de grandes escadarias é quase que obrigatória revelando talvez o uso ideológico da perspectiva para dar um sentido de disciplina e ordem, a semelhança do verticalismo das catedrais góticas que tornava irresistível a idéia da glória divina, ou apenas para cansar e colocar no devido lugar os que tenham de se dirigir aos referidos órgãos de governo. Numa vertente maquiavélica, quem sabe ainda, pela comprovada eficácia de uma escadaria caso na vida real se faça necessário repetir as cenas eisensteinianas da escadaria Odessa.
Muito se fala sobre se e como chegará o fim do processo de crescimento Chinês. Não tenho a pretensão de ser capaz de ler o futuro da China, com apenas alguns dias de viagem e sem analisar os verdadeiros dados econômicos que, aliás, não devem estar acessíveis nem mesmo a quem, ao contrário de mim, se dispusesse a lê-los. De toda maneira, acho que se alguma coisa der errada, vai começar tudo num engarrafamento. Creio que os chineses estão construindo, talvez sem saber, o maior, o mais colossal, o mais perfeito e indeslindável engarrafamento jamais visto, onde se aglutinarão ônibus, carros, motos, bicicletas, triciclos e pedestres todos sob o olhar complacente dos guardas de trânsito, que na China parecem sofrer de uma passividade bovina, numa contradição total com a imagem do governo forte e onipresente.

Já avisei aí em cima que não me dispus a estudar a economia da China e duvido que tenha a competência para fazê-lo. Aliás, se tivesse um pouco de vergonha não estaria sequer escrevendo essas notas sobre a viagem dada à precariedade de minhas observações, pois todo esse deslocamento se deu apenas em nome de algum pequeno interesse irrelevante na ordem das coisas. Viajei milhares de quilômetros em carros e aviões interessado num certo produto químico, o pentaeritritol, cujo nome, por respeito aos eventuais leitores, deveria mesmo omitir para não aborrecê-los. Ora, compreender um país complexo como a China observando-o pela ótica do pentaeritritol é ridículo, pelo que aconselho aos que chegaram a este ponto, reveladas agora as condições de observação, que abandonem imediatamente o texto e se dediquem a coisa mais útil. Por exemplo; reler o velho Marco Pólo e sua maravilhosa descrição da China da dinastia Yuan e a corte de Kublai Khan.

Se o alerta aí em cima de nada adiantou, melhor que eu faça como um desses advogados americanos especializados em eximir fabricantes de toda espécie de consequência pelos resultados aos quais os consumidores possam estar expostos pelo uso de seus produtos. Não assumo qualquer responsabilidade pelas informações, análises e previsões, que poderão - ou não - levar a falência ou expor ao ridículo aqueles as levarem em consideração.

Num curto circuito para o que serão as conclusões finais, acho que a China moderna é um sucesso espantoso. Simultaneamente é um fracasso de dimensões planetárias. Vamos em frente e veremos se os meus argumentos sustentam estas afirmações.

Comecemos pelas estradas; nós aqui que convivemos com o precaríssimo e prosaico tapa-buracos não podemos imaginar que um país esteja construindo auto-estradas[1] de 10 pistas de rolagem, milhares de quilômetros de tapetes asfálticos de deixar até os alemães e suas autobahns humilhados. Mas tudo isso reflete uma visão de mundo que tem no automóvel a figura central, o que, convenhamos, é um atraso. Do pouco que conheci dos chineses, e por acaso perto de meu hotel havia uma Feira do Automóvel com direito aos universais cambistas vendendo ingressos para os que não conseguiram ou não quiseram enfrentar as filas, eles adoram um carro. Há milhares de Audis, BMWs, Mercedes e todo tipo de carro de luxo andando pelas cidades, conduzidos por uma classe afluente com aspirações de consumo que tem como paradigma o mais comezinho ocidentalismo. Fica a pergunta: para que 5000 anos de história se você vai terminar desejando ardentemente uma bolsa Louis Vuiton?

[1] Não vi a cena tão comum aqui de um miserável com uma bandeirinha desbotada sinalizando distraidamente o início de uma obra na estrada. Lá, no país da mão de obra barata, isto é automatizado. Aliás, de maneira geral, não vi o uso excessivo de mão de obra aplicado em tarefas ridículas.

Falei dos prédios e devo dizer que me assustei com a ausência da inspiração arquitetônica. Mais de um bilhão de sujeitos e não produziram um Niemeyer, um Reidy, um Lúcio Costa? Será que o I.M. Pei saiu de lá e foi construir a pirâmide do Louvre sem deixar herdeiros? Dizem que mais de 50% do cimento de todo mundo está sendo usado hoje pela China. Podiam fazer melhor uso. Para compensar devo reconhecer que foram eles que, junto com os egípcios, começaram esta história de obras públicas, uns com as pirâmides, outros com a espetacular Grande Muralha. A Cidade Proibida também impressiona. Parece que o gosto pelas mega-construções, todo esse afã de erguer, concretar, edificar, ressurgiu num processo atávico com toda a força agora, mas sem a centelha do gênio.

Estes dois últimos parágrafos podem dar idéia de uma visão negativa. É verdade, mas não de forma absoluta. Senti uma simpatia e uma afabilidade no pouco contato que tive com a população. Eles têm bom humor. Respeitam a natureza humana e sempre que podem furam as filas. Guardam algumas tradições preciosas, como a de cuspir insistentemente nas ruas. O povo desenvolveu uma técnica aprimorada de recolher esmeradamente o melhor das secreções que as vias respiratórias superiores dos humanos podem produzir e num roncar de peito em crescendo disparar uma viscosíssima cusparada. Roonc-plaft. Senti nisso uma manifestação de liberdade, o escarro público é um espaço onde a ordem estatal curvou-se e aceitou uma manifestação do corpo, em geral tão reprimido.

Com relação aos filhos, o negócio de um por casal parece ter sido definitivamente incorporado pelo imaginário dos jovens, embora seja fácil imaginar seus desejos mais profundos. Esta política de filhos únicos gera crianças insuportáveis, em especial uma certa chinezinha que derramou suco de laranja em mim num vôo, sob o olhar complacente da mãe.

É notória a ausência de inocentes revistas de mulheres nuas e mais ainda das definitivamente pornográficas, embora as necessidades do marketing venham impondo a exposição de umas coxas e uns decotes onde se entrevêem peitos sensuais. Enquanto isso a Aids se espraia no país onde os homossexuais são tão reprimidos que não tem coragem de se medicar. Por outro lado, quando me surpreendi que Pequim tivesse mais cabeleireiros que Porto Alegre[2], foram logo me explicando que a metade deles são apenas fachadas para abrigar umas putas. A outra metade dá prejuízo...

[2] Porto Alegre é a cidade com mais cabeleireiros e salões de beleza por m2. O corolário disso é a inexistência de gaúchas que não tenham o cabelo pintado e arrumado.

Passeando numa noite de sábado pelos jardins que margeiam o Yang-tsé na cidade de Ychang foi simpaticíssimo ver centenas de pessoas, adolescentes jovens e velhos casais, homens sozinhos, donas de casa, dançando no parque, no ar frio da noite, embalados por uns aparelhos de som mixurucas que alguém levara. E tinha todo tipo de coisa, grupos focados em danças tibetanas, outros dançando ao som de gravações das big-bands americanas, hip-hop, valsas, tudo muito alegre e espontâneo. Nenhum sintoma de festa estatizada dessas que assolam periodicamente a praia de Copacabana.

Afastando-se das avenidas principais há um comércio de porta de rua com cara de muita vitalidade. O dinheiro circula, mesmo que seja pouco para a maior parte dos chineses. Não vi sinais ostensivos da miséria absoluta a qual nos acostumamos aqui. Isto é uma grande realização, digna do justo orgulho manifesto pelo povo chinês em relação a si mesmo. Mesmo no campo, e olha que andei cerca de 2.500 km de carro, as vilas dos camponeses tem umas casinhas razoáveis. Tudo é plantado. Um contraste com a paisagem brasileira é a falta de bois. Também aqui no Brasil tem mais boi que gente, cerca de 200 milhões de cabeças. O estranho é não ter boi até na portaria dos nossos prédios. Lá na China, de vez em quando se vê um búfalo e mais raramente um chinês de gravura, de chapéu de palha como um V invertido e carregando nas costas dois cestos equilibrados numa vara. São poucos e é capaz de estarem empregados só para ficar andando de um lado para o outro para os turistas não se decepcionarem.

É claro que todo crescimento acelerado um dia estiola-se, interrompe-se, dá errado. Por isso não há que tomar como profetas inspirados os que prevêm o “crack” chinês, já que é o óbvio ululante. É óbvio também que quando isso acontecer as condições gerais do povo chinês terão melhorado muito.

Além disso, o problema do fracasso chinês não será só dos chineses, pois não há país hoje que não tenha a sua economia atrelada de alguma forma ao desenvolvimento deles. Aliás, lembro-me de um sábio consultor dizendo que a explicação do mundo atual é dada pelas transações entre os produtores chineses de um lado e o Wal-mart de outro, sendo todo o resto detalhe.

As limitações da China são evidentes: observa-se gente trabalhando em condições sub-humanas, aliás em confronto direto com os padrões legais – a lei prevê menos de 40 horas de trabalho por semana, horas extra, os cinco seguros: saúde, desemprego, aposentadoria, moradia e educação. Há o problema do controle da poluição. Há o problema de geração de energia, fortemente dependente do carvão e das vidas consumidas para extraí-lo. Há o problema de incorporação das massas de camponeses à economia moderna de mercado. Há o problema da equiparação dos preços internos a padrões internacionais. Haverá, talvez, ainda de forma submersa, o anseio pela democracia que permita a expressão individual mais afirmativa. Mas são todos os problemas decorrentes do sucesso, da hiperatividade, de uma cinesia extremada, ao contrário os nossos, oriundos de uma paralisia, da omissão, do desinteresse, da preguiça ancestral e principalmente da falta de objetivos comuns. Uma explicação possível para a altíssima produtividade chinesa se comparada a nossa é que lá os homens não se distraem pelas ruas admirando belas bundas femininas, pela aparente ausência delas no corpo das chinesas, que por sua vez ficam assim desobrigadas de cultivá-las em intermináveis sessões de ginástica localizada.
Sendo esta explicação acima insuficiente, falta deslindar o segredo da China moderna. Tenho uma intuição de que tudo vem de um sutil equilíbrio entre transformação e valorização do passado. A longa história chinesa, assemelhando-se talvez àquela do Império Bizantino, parece ser exatamente a ausência da verdadeira história. É uma sucessão de intrigas palacianas, de invasões onde os novos dominadores logo entram em simbiose com os dominados, trocas de dinastias ocorrendo em função de divergências sobre critérios para admissão no serviço público imperial. Sempre houve, é certo, o sentido de unidade, de cultura própria, de grandeza. Tudo isso foi resgatado pelo Mao Tse Tung, que adicionou um grão de verdadeira história onde o confronto de classes teve lugar central. Ele conseguiu sustentar o sentido de identidade cultural da China e ao mesmo tempo dar uma perspectiva de igualdade aos chineses por mais desiguais que fossem. Mais que tudo acertou ao impedir que fossem governados de fora para dentro. O Mao, o Lin Piao, o Chu en Lai, o nosso Brizola e o Deng Xiaoping foram os únicos políticos a compreender integralmente o que são as “perdas internacionais” [1]. De fracasso em fracasso, como o “Grande Salto Adiante” dos anos 50, a Revolução Cultural dos 60, atingiram o sucesso com As Quatro Modernizações[2] e finalmente a Abertura Econômica.
1. Brizola tentou nos explicar as tais Perdas Internacionais em um memorável programa de televisão, se não me engano na campanha de 1994, mas os gráficos que ele apresentou eram incompreensíveis para simples mortais como nós.
2.Em 1978, o desenvolvimento econômico foi colocado como prioridade e uma nova política, a das Quatro Modernizações – indústria, defesa, agricultura, ciência e tecnologia – foi adotada.
Os atuais condutores da economia chinesa provavelmente renegam todos os conceitos que regem as nossas cabeças econômicas contaminadas pelo “pensamento único”. Devem rir quando alguém fala de superávit fiscal. Não posso imaginar de onde surge a poupança interna para financiar tamanho crescimento, mas imagino que ela não exista e seja apenas uma bolha de emissões de papel moeda carinhosamente administrada por sino-keynesianos radicais. Controlam o investimento estrangeiro nas áreas estratégicas, de tal forma que este não pode explicar totalmente o que está acontecendo por lá. Gerenciam a inflação, não com juros estratosféricos mas através dos cules, incorporando quantidades ilimitadas de mão-de-obra barata, que impede a subida dos salários. Completam o ciclo de investimentos com a falta de opções financeiras obrigando os empresários a reinvestirem os lucros em atividades produtivas.

É verdade que dentre todos os problemas alinhados está à questão fundamental das liberdades. Os chineses apostaram que não existe relação entre o capitalismo e a democracia. Provavelmente é verdade, mas talvez também seja verdade que o bem estar econômico gere um desejo incontrolável de liberdade. Como resolverão isto?

No fim, é certo que a coisa vai dar errado. Tudo dá errado. Sempre. Mas estará dando errado principalmente para nós ocidentais, justo naquele que seria o momento máximo de glória para a nossa cultura, a hora de sua universalização, a expansão final, o ocidente infiltrando-se nos corações e mentes dos bilhões de habitantes do Império do Centro. Infelizmente a dominação econômica e cultural que pretendemos, estendendo á China nossos padrões, é inviável. Por definição, como nos ensina a velha termodinâmica, o equilíbrio não pode ser universal sob pena da paralisia; qualquer fluxo pressupõe a existência de diferenças que o promovam. Além disso, o nosso modelo, se universalizado, requer o uso de recursos naturais em quantidades ilimitadas incompatíveis com o conceito de entropia.

Adiar o desastre depende da África aparecer se oferecendo uma segunda vez para ser mais cuidadosamente explorada. O perigo é que a África seja pequena demais para o tamanho das ambições combinadas de chineses e ocidentais. Aliás, os chineses já perceberam isso e estão procurando ganhar terreno por lá, olhando com carinho esta última fronteira do capitalismo. De toda maneira, a conclusão é de que o futuro é negro.

No fim de tudo, voltando ao que interessa realmente, informo que consegui, sim, encontrar uma equação viável para o pentaeritritol. Não será por isso que o Brasil claudicará. O resto é detalhe.